Bem vindos ao deserto do "petucanismo"

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"Todos nós sabíamos que enterrávamos o nosso herói, o mais capaz de nós. (...) Todos sofríamos de saber que morria exatamente aquele que podia fazer mais, que podia criar mais. (...) Um Glauber. (...) É alguém que como artista é capaz de exprimir o seu povo, é capaz de dar expressão não só à dor de viver, mas do gosto de viver do nosso povo."
(Darcy Ribeiro, depoimento sobre Glauber Rocha)


No enterro de Brizola, Lula foi recebido pela multidão com vaias e pelo trecho da música de Beth Carvalho: "Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão". O sentido desta traição não deve ser lido no plano de curto prazo do político-partidário, mas no processo de longa duração da dimensão estatal-imaginária, isto é, na disputa do imaginário público. Lula traiu Brizola ao abdicar desta disputa, ao ceder à visão imposta pelo consenso construído pela ditadura instaurada no golpe civil-militar de 1964. A redução da política à gerência - um fenômeno global, que tem sua ramificação brasileira no "petucanismo", termo cunhado por Gilberto Felisberto Vasconcelos - não pode ser separada deste vácuo no imaginário deixado pela deposição de armas do PT e do PSDB, pela recusa, que caracteriza a social-democracia, do conflito. Ou seja, o petucanismo não só abdica de um projeto para o país, como de disputar o imaginário. As duas coisas andam juntas. (Por isso, a importância que Brizola atribuía ao "golpe" de Golbery, que garantiu a conversão do PTB em uma sigla pelega - hoje nas mãos de Roberto Jefferson). A aceitação do imaginário imposto pelo capital vídeo-financeiro, para usar outro termo de Gilberto Felisberto Vasconcelos: não há como combater o poder financeiro, sem combater o poder videológico. Brizola tinha consciência disso. No documentário "Muito além do Cidadão Kane", de Simon Hartog, enquanto o "sapo barbudo" reclama vagamente do monopólio da televisão por um só homem (sem mencionar o nome de Roberto Marinho), o "velho caudilho" vai direto ao ponto: eleito presidente, diz, no primeiro dia, na primeira manhã do mandato, a primeira medida seria começar a desmontar o Império da Rede Globo. O resto é história: enquanto Brizola não hesitou em bater de frente com os donos do monopólio da aparência (não só os Marinho, mas os Civita, da Abril, de quem dizia serem os representantes coloniais do Império - e basta ler a Veja para ver o quanto nada continua sendo), recebendo como troco não só os editoriais nojentos do Jornal Nacional, mas uma tentativa de golpe eleitoral (o caso Pro-Consult), Lula, eleito presidente em 2002, co-apresentou o mesmo Jornal Nacional da escandalosa edição do debate de 1989 com Collor.

Neste sentido, a verdadeira morte do projeto nacional-popular varguista-janquista-brizolista não se dá em 2004, mas em 1981, com a morte de Glauber Rocha (que, convém lembrar, planejava, conforme lemos em seu Teztamento de 1976, realizar um filme sobre Jango). Eztetyka da Fome e Eztetyka do Sonho, primitividade e utopia: o cinema de Glauber Rocha se caracteriza justamente pela tentativa de escavar, através das imagens, na violência da fome, estilhaços de transformação revolucionária - de um tempo outro, de um tempo possível: "As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das forças irracionais das massas pobres. (...) A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora". "O Povo é o mito da burguesia": a Nação é sempre uma cisão, um ser e suas possibilidades de ser - "esse país tudo que podia ser e que não é", como disse certa vez, durante um choro convulsivo a Darcy Ribeiro -, o Povo não é um conceito unívoco, é uma construção, um conceito a ser disputado na esfera do Estado e, não menos, das imagens: "A cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas a linguagem popular de permanente rebelião histórica". O petucanismo não tem projeto para o país porque seus partidários não tem imaginação. Mais do à extinção da inteligência, como Paulo Arantes caracteriza a situação atual, assistimos à extinção da imaginação.

9 Comentários

Excelente a sua colocação mais uma vez, Alexandre. Eu me irrito profundamente quando me vejo quase obrigado a defender esse governo daqueles que se opõe a ele em nome de uma pretensa defesa da ética - defesa que eu tenho certeza que vai se transformar em fumaça no dia em que o PSDB/PFL retomar triunfalmente a Brasília. Minha irritação vem do simples fato de que minhas muitas objeções principais ao governo Lula continuam a ser ignoradas no pretenso "debate político" nacional que vive chafurdado em um udenismo moralista, nos obrigando a falar de honestidade ao invés de falar de ideologia, por exemplo. Uma dessas minhas objeções ignoradas no debate público brasileiro vem desse vergonhoso estelionato eleitoral, que é quase uma regra em um mundo "democrático" que vive uma crise agonizante que todo mundo finge que não vê: governo "gerencial" obedecendo às boas maneiras do consenso de Washington com todos os dogmas neoliberais absolutamente intactos. Basta ver o que aconteceu com o trabalhismo inglês para entender o que aconteceu com o PT de José Dirceu e Lula: rumo ao "centro", rumo ao vazio completo, rumo ao desastre.


Pois é, Alexandre,

Eu só fui entender a profundidade dessa traição do Lula "a quem sempre lhe deu a mão" quando assisti à entrevista de Denise Stoklos no programa Provocações, de Antônio Abujamra, na TV Cultura. Ela disse que se decepcionou com esse governo porque sonhava que, com Lula no poder, iríamos experimental uma mudança de paradigmas, os funcionários iriam trabalhar "em mangas-de-camisa" no Planalto Central do País. Ao que o velho Abu emendou algo do tipo viveremos num país tropical, finalmente. Nada disso. Exceto pela barba, no fundo, no fundo, até a estética continua a mesma da anterior. E não é a da fome, claro.


Nodari, o blog está bem bom.
Só hoje tive tempo para ler alguns textos. Gostei bastante daquele em que contrapõe as falas de Meirelles e Glauber. Interessante. De fato, não sabia desta entrevista do Meirelles... Em suma...
Bom trabalho pra vc aí.
Abraço


Paulo: obrigado pelo excelente comentário. De fato, o "udenismo moralista" funciona como uma camisa de força, uma espécie de retenção de todo debate válido. Sei que v. se interessa muito pela permanência da ditadura nas instituições democráticas, e acredito que nesta dimensão do imaginário político-público reside uma das heranças mais nefastas. Fazendo uma ponte com o também ótimo comentário do Beto, lembro do New Look (também conhecido como Experiência n. 3) do Flávio de Carvalho, da década de 1950: ele propunha a adoção de saias masculinas, mais adaptadas ao clima tropical. O curioso é que o "petucanismo" aceita mudanças nas esferas da imaginação individual - o faça você mesmo, a insistência nas ONGs, na mudança de consumo pessoal, etc etc - sem converter isso em uma mudança de paradigma (e sem ver o quanto isso não contesta, de fato, o consenso neoliberal). Basta ver, para dar um exemplo aparentemente menor, com o total descaso do governo com a Internet: não só ele é totalmente incapaz de utilizá-la como ferramenta de comunicação, como não tem nenhum projeto sério de software livre (o Gilberto Gil bem que tenta, mas com o ridículo orçamento da pasta de Cultura). O ministro das Comunicações é um fantoche dos interesses da mídia.

Vinícius: obrigado pelas visitas. Vi que o Flanagens voltou a ser atualizado. Bacana!

Abraços!


Nodari, sobre este teu comentário, é muito interessante de se ver como a gestão de empresas (o que, para pensar na política, é só um pulinho) cada vez mais se dá ao funcionário a escolha de pequenas decisões, por exemplo, escolher como preparar o sanduíche do cliente. Ouvi falar que no Canadá, tido por muitos como exemplo de democracia e qualidade de vida, os cidadãos têm assembléias constantes para regular o funcionamento de ônibus, entre outras questões, uma democracia participativa que funciona. Minha pergunta: de que adianta discutir o horário de ônibus e ser completamente impotente para não permitir o envio de tropas à guerra. Mas nisso não há problema, afinal existe o consenso fundamental.


Dávila: é a conversão da consulta popular em Serviço de Atendimento ao Cliente. V. tem toda razão quando conecta isso à idéia de "governança corporativa". O espectro político brasileiro dominado pelo petucanismo oferece ao eleitor Coca-cola e Coca-cola light, ou Coca e Pepsi, enfim, uma opção daquelas. Ou até mesmo o suco de laranja praqueles que se querem se sentir mais autênticos. PT, PSDB, PSOL. Creio que a política se reduziu ao seu sentido técnico: a escolha de meios para atingir determinado fim - nesse sentido que as empresas tem "políticas: uma política de relacionamento com o cliente é X ou Y, uma política de vendas é "agressiva" ou "ética", etc - onde o fim já está predeterminado e as opções de "meios" são tão restritas quanto à escolha entre Coca e Coca-light (e suco de laranja batizado). Gostei muito do seu post sobre o devir animal do esporte. Vou lá depois comentar. Abraço.


Oi Nodari, tudo bem?

O seu blog está brilhante! Olha só, seguindo seu conceito de censura a partir dos seus textos e nossas conversas, é possível então pensar que talvez o último grande gesto de censura do regime militar foi a anistia. O consenso sem qualquer possibilidade de reconstrução histórica, como você me disse sobre o Anjo Negro de Nelson. Veja bem, todo mundo foi "perdoado" indiferentemente de sua posição ou do que fez. Como resultado ninguém "sabe mais" quem matou quem, quem estuprou quem, quem torturou quem. Ora, para se perdoar, ou para que ao menos exista a possibilidade da impossibilidade de perdão, é preciso saber qual fora o ato cometido pelo sujeito a quem o perdão ou (im)possibilidade de perdão se destina. Na África do Sul, por exemplo, depois do Apartheid, fora concedida uma anistia geral como no Brasil, mas diferente do Brasil, pois as pessoas tinham que vir a público confessar seus crimes diante de um tribunal e de suas vítimas para requerer o perdão. É um processo também problemático, se baseia ainda nos princípios do direito, na confissão, no julgamento, no juiz, mas me parece uma tentativa de solução infinitamente melhor do que a essa merda de anistia que tivemos: que se tornou inquestionável, ou nos seus termos, consensual.

Um abraço

Rodrigo


Correção

Um erro, a frase “é possível então pensar que talvez o último grande gesto de censura do regime militar foi a anistia” era para ser uma pergunta:

É possível então pensar que talvez o último grande gesto de censura do regime militar foi a anistia?

Um abraço

Rodrigo


Obrigado Rodrigo. De fato, a Lei da Anistia cria este efeito de desdiferenciação e, portanto, a meu ver, é um ato de censura. Acho que ela só foi possível através de uma censura-consenso prévio (em 1974, Antonio Callado já dizia ter a impressão da internalização da censura pela mídia, ou seja, que a auto-censura funcionava a pleno-vapor e os censores oficiais nem eram mais necessários), e de uma censura posterior, a barreira de contenção que impede que qualquer um a questione sem ser taxado de revanchista. Existem "n" maneiras de derrubar a Lei de Anistia, revogá-la, julgá-la inconstitucional, etc. O governo está repleto de ex-guerrilheiros, mas a coisa não vai pra frente. É paradigmático que a oposição e parte da base de sustentação impediu que Greenhalgh fosse eleito presidente da Câmara, no episódio que deu na eleição de Severino. O irônico é que a mídia do senso comum lê a si mesma como baluarte da resistência à ditadura (o Estadão é o único jornal sincero do país porque admite sua posição), mas não quer saber de revisão da Anistia. "Passar a limpo" a ditadura implicaria desmascarar a conivência de grande parte da classe política, da sociedade civil, da própria mídia. Implica mostrar as cisões que havia no corpo social, mostrar a presença de índices de diferenciação, de identidades opostas, tudo que a censura apagou. O consenso que a ditadura obteve pela censura não precisa mais ser sustentado na força, ou na lei.

Mas eu diria que o último ato de censura da ditadura é seu próprio fim transicional - o governo Sarney é civil? civil com eleição indireta, mas é dentro do regime militar? o Sarney, que até ontem era da ARENA, da sustentação do regime, então de que natureza é o seu governo?.


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

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"a posse contra a propriedade" (dissertação de mestrado)

O pensamento do fim
(Em: O comum e a experiência da linguagem)

O perjúrio absoluto
(Sobre a universalidade da Antropofagia)

"o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas":
notas sobre o Direito Antropofágico

A censura já não precisa mais de si mesma:
entrevista ao jornal literário urtiga!

Grilar o improfanável:
o estado de exceção e a poética antropofágica

"Modernismo obnubilado:
Araripe Jr. precursor da Antropofagia

O que as datilógrafas liam enquanto seus escrivães escreviam
a História da Filha do Rei, de Oswald de Andrade

Um antropófago em Hollywood:
Oswald espectador de Valentino

Bartleby e a paixão da apatia

O que é um bandido?
(Sobre o plebiscito do desarmamento)

A alegria da decepção
(Resenha de A prova dos nove)

...nada é acidental
(Resenha de quando todos os acidentes acontecem)

Entrevista com Raúl Antelo


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