"Rapina" e "terror": o caso Battisti

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battisti.gif"A classe política italiana, com raríssimas exceções, nunca admitiu francamente que tenha havido na Itália algo como uma guerra civil, tampouco concedeu à batalha desses anos de chumbo um caráter autenticamente político. Os delitos que foram cometidos durante essa época eram, por conseguinte, delitos de direito comum e continuam sendo. Essa tese, com certeza discutível no plano histórico, poderia no entanto passar por inteiramente legítima, se não fosse desmentida por uma contradição evidente: para reprimir esses delitos de direito comum, essa mesma classe política recorreu a uma série de leis de exceção que limitavam seriamente as liberdades constitucionais e introduziram na ordem jurídica princípios que sempre foram considerados alheios a essa ordem. Quase todos os que foram condenados, foram incomodados e perseguidos com base nessas leis especiais. Porém, a coisa mais inacreditável é que essas mesmas leis ainda estão em vigor e projetam uma sombra sinistra na vida de nossas instituições democráticas." (Giorgio Agamben)

(Ilustração: Christiano Celmer Balz)

Sabemos que vivemos em um ambiente autoritário quando a gritaria por prisões, extradições, detenções, etc. etc., por parte da opinião pública (aquela que se publica) não só ofusca, mas impede ver o outro lado da moeda. Enquanto, por exemplo, um caso como o de Cesare Battisti mobiliza os jornalões e os semanários, fazendo com que a Carta Capital, que ainda mantinha uma pose de diferente, caísse no blá-blá-blá do senso comum que domina o nosso jornalismo, com Mino Carta vociferando em seu blog e na sua revista sobre o "caráter" do asilado italiano, sublinhando a quantidade de "rapinas" que este teria promovido, a prisão de um grupo de jovens franceses acusados de terrorismo, pelo simples fato de portarem a lista de horários de linhas de trens, passou totalmente desapercebida (Leneide Duarte-Plon escreveu sobre o descaso da mídia sobre este fato no Observatório da Imprensa, remetendo-se a artigo de Giorgio Agamben- em francês; a tradução ao português, por Vinícius Honeko sairá no próximo número do Sopro). O significante Terror, como já argumentei aqui, dualiza todo debate, capturando qualquer campo de indiferença no pólo da inimizade. No Blog do Mino, o editor de Carta Capital argumenta que os que se acham esquerdistas e defendem o asilo a Battisti (ainda que não concordem com a sua antiga forma de militância), são na verdade fascistas. Assim, Giorgio Agamben, que assinou um apelo pela liberação de Battisti quando de sua detenção na França, junto com outras 2200 pessoas, seria fascista (o apelo encontra-se no livro, disponível online em italiano e formato .pdf, Il caso Battisti - L'emergenza infinita e i fantasmi del passato, de Valerio Evangelisti, Giuseppe Genna, do coletivo Wu Ming I, entre outros - algumas informações deste post foram retiradas de lá). Assim, Mino desdenha de Dalmo de Abreu Dallari, talvez o maior jurista brasileiro vivo, dizendo que ele "não conhece a história e tampouco a geografia". Já que Mino conhece tanto de história e geografia, qual o tipo legal do crime de rapina que ele insiste que Battisti cometeu? Ele, um crítico da idiotice da mídia brasileira, deveria saber que no Brasil existe Furto (art. 155 do Código Penal) e Roubo (art. 157); Rapina é o tipo legal na Itália (art. 628 do Código Penal italiano) - ainda que a palavra exista em nosso idioma, em um debate onde o que interessa é a questão legal não faz o menor sentido, equivale a dizer que fulano cometeu Robbery. Ele que conhece tanto história e geografia deveria lembrar que um dos advogados de Battisti no Brasil, Luiz Eduardo Greenhalgh, não só é defensor de Daniel Dantas (que, por sua vez, entregou um dossiê falso a Veja sobre contas no exterior de integrantes do governo, estava por trás da privataria, etc etc - numa cadeia de eventos em que insinua que Battisti faz parte de uma conspiração contra Lula), mas foi um dos grandes advogados de perseguidos políticos pela ditadura (e daí o motivo de sua contratação por Battisti). Deveria lembrar também que Tarso Genro vive insistindo que os responsáveis pelo terror praticado pela Ditadura Brasileira devem ser julgados (Mino dá a entender o contrário) e que aqueles que são contra são favoráveis à extradição de Battisti -poderíamos, num exercício de caricatura, que Mino Carta tanto pratica, personificá-los na figura de Gilmar Mendes, que, aliás, votou a favor da extradição do Padre Medina, integrante das FARC, mesmo o Brasil tendo concedido-lhe asilo e que tende, por isso mesmo e pela recusa em soltá-lo, a votar a favor da extradição do italiano (pela lógica de concatenação de Mino, teríamos: Mino a favor da extradição de Battisti, Gilmar Mendes a favor da extradição de Battisti e contra o julgamento de militares brasileiros torturadores e assassinos = Mino contra a punição aos crimes praticados pela ditadura brasileira. Tudo fica fácil assim. Se Mino entende tanto de geografia e história, não entende bulhufas de Direito. Como bom jornalista que diz ser - e, de fato, costuma ser -, deveria conhecer o parecer de Nilo Batista (devo a informação ao amigo advogado Bruno Domingos): "O princípio da dupla incriminação proíbe a extradição de alguém cuja conduta, no país requerido, teve sua punibilidade (rectius, sua criminalidade) extinta pela anistia. Os delitos atribuídos a Cesare Battisti são anteriores à Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Todos os indivíduos, brasileiros ou estrangeiros, que os praticaram até aquela data (...) foram anistiados". Mas os erros mais graves de Mino Carta, a meu ver, são: 1) a insistência, compartilhada pela classe política e mídia italianas, de que os crimes cometidos nos anos 1970, foram crimes comuns (talvez Mino não endosse essa visão no todo, mas não se cansa de argumentar que Battisti era um "rapineiro" contumaz, não tendo praticado os crimes por motivação política) e; 2) a de que a Itália combateu o "terrorismo" da época sem recurso a leis excepcionais, sendo internacionalmente reconhecida por isso. O segundo erro é o mais grave: nos anos setenta pipocaram leis e medidas de exceção na Itália, incluindo um decreto-lei que aumentava o tempo da prisão preventiva, um decreto secreto do governo dando ao general Carlo Alberto Dalla Chiesa poderes especiais no combate ao terrorismo, um decreto interministerial instituindo o "cárcere especial", a Legge Reale, a lei n. 534/77 que limitava a possibilidade da defesa argüir nulidade processual em caso de violação de garantias do réu, a chamada "legge Cossiga", que possibilitava a detenção preventiva de suspeitos por 96 horas (sem a possibilidade de contatar advogado), o chamado "Decreto Moro", que acabava com o limite da duração das interceptações telefônicas, etc etc etc. A quantidade de decretos com força de lei, por si só, já seria evidência suficiente para se suspeitar de que o combate ao "terrorismo" não se deu no marco legal democrático de até então. A quantidade de direitos retirados dos "suspeitos" torna a evidência em prova cabal. Mino Carta, ao tratar do tema, invocou Hannah Arendt, como costuma fazer, para sublinhar que só lhe interessa a "verdade factual" (eu prefiro: "contra fatos, há Argumento"). Honestamente, não sei de onde diabos ele tirou que esse ponto é tão central a Arendt. Suponho que seja de uma leitura enviesada de Eichmann em Jerusalém. Como já indica o subtítulo, trata-se, antes, de um "relato sobre a banalidade do mal", isto é, de uma reflexão sobre como foi possível a um burocrata participar da indústria de morte nazista como se estivesse apenas exercendo a sua burocracia habitual, sem remorso, sem culpa, afinal estava apenas cumprindo ordens. Mino Carta deveria pensar em como a banalidade da exceção a converteu em regra. E em como o senso comum a respeito dos turbulentos anos 1970 italianos que ele subscreve ajuda na sua reprodução, na sua permanência. Nesse sentido, ele tem razão: as leis com que a Itália combateu a sua guerra civil não foram de exceção: afinal, muitas delas não foram revogadas até hoje.


12 Comentários

Pois é Nodari, o Mino realmente pisou na bola... Quando li aquele post em que ele citava a Veja (!!!) fiquei desapontado, mesmo não sendo um fã dele. Estava ficando cada vez mais difícil ler o blog e a Carta Capital (e ele não aguentou a pressão dos leitores e largou blog e revista!). Outro que está ficando chato (para dizer o mínimo) é o PHA. Não dá mais pra aguentar as críticas dele ao governo Lula, embora ele seja, talvez, o jornalista que mais bate no PSDB também.
E foi muito pertinente você trazer o Agamben para o caso Battisti. Fazia tempo que eu queria saber a posição dele. Só não fui atrás porque, realmente, fiquei de saco cheio com a história.
Agora, o mais interessante disso tudo ainda está por vir, não é mesmo? Quero ver o que vai acontecer no STF...
Abraço (e o futebol???)


Jef, eu não cheguei a encontrar nada do Agamben sobre o desenrolar do caso Batisti no Brasil; encontrei, por acaso, enquanto fuçava atrás das leis de exceção dos anos 1970 italianos, a assinatura dele no apelo pela libertação quando da prisão na França (à época em que Chirac reviu a doutrina Mitterand de concessão de refúgio aos ex-militantes que renunciaram às armas). O STF tende a arquivar a extradição, data venia (como os juristas adoram usar uma expressão em latim) o voto de Gilmar Mendes e talvez o do conservador religioso Carlos Alberto Direito. Eu também gostava do PHA e do Mino, mas não tem jeito, o jornalismo tende a recorrer ao senso comum - e no caso do Mino, sem xenofobia de minha parte, em um certo ufanismo quando o assunto é a Itália (bater no Berlusconi, como ele faz, é fácil, não é exceção, integra também o senso comum). Abração


Olá Alexandre, cheguei aqui por recomendação e gostei muito do seu blog (já baixei o PDF sobre o Bartleby).

Gostei também do texto, embora eu tenha algumas ressalvas. Ao meu ver a questão central do caso Battisti é menos a do asilo em si do que a caracterização política dos crimes que ele cometeu. Como eu já disse, nem todo crime praticado por militante político é crime político -- e embora tenha vigorado um Estado de Exceção na Itália, apesar do tema parecer controverso, isso não significa que o crime de Battisti tenha sido necessariamente político. É preciso examinar pontualmente a questão. Trata-se então de justificar a caracterização política que faculta o asilo.

Em todo caso, seu texto é bastante enriquecedor. Abraços



Meu caro Alexandre, concordo em gênero, número e grau. Creio que nessa questão de Battisti, o velho Mino Carta enfiou os pés pelas mãos vergonhosamente.

O ponto central de tudo isso não é nem que Mino não entende nada de Direito (o que é verdade), mas sim que ele simplesmente ignorou o Direito nessa questão toda e fez um julgamento politicamente sectário, usando o episódio para justificar eventuais "desilusões" políticas suas - e com isso conseguiu, na verdade, endossar mais ainda a tese da defesa de Battisti.

Outros como o juiz aposentado Walter Fraganiello Maierovitch, agiu com uma descortesia e uma truculência absurda em relação ao Ministro da Justiça, o que prova simplesmente que muito do conteúdo dos argumentos anti-Battisti estão carregados pelo clima dos anni di piombo, dos eternos e penosos anos 70 italianos.

A verdade é que Battisti não teve direito a um julgamento que não fosse político na Itália daquela época, se exilou na França, foi protegido pela doutrina Mitterrand, sendo que depois de sua vergonhosa reinterpretação durante a era Chirac, teve de fugir pelo mundo, vindo parar no nosso Brasil varonil. Creio que qualquer raciocínio razoavelmente jurídico leva a não extradição de Battisti, mas o que eles querem não é justiça, mas sim vendetta, logo, o direito novamente está sendo posto de lado, só espero que o STF não desça tão baixo.


Muito bom, um blog escrito por gente de peso sempre faz diferença.

Só deixo uma singela sugestão: trocar o fundo e aumentar a letra. Ajuda pacas.

Boa sorte e vida longa ao blog.


Antes de tudo, informo que até o momento não conhecia esse blog. Devo a informação ao "Cloaca News", que visito diariamente.Acabei entrando no "Cultura e Barbárie" para ver se há a tão alegada ofensa a Mino Carta, pois não vi nos outros blogs tais como "Óleo do Diabo", "Abundacanalha" e o citado "Cloaca News". Continuo achando que a "carta de despedida" do grande Mino Carta tem um certo melindre (não acho palavra mais, digamos, delicada), pois a crítica é o grande instrumento da nossa blogosfera, tanto que os "colunistas" dos jornalões e da mídia golpista em geral não conseguem se sentir bem nela, mesmo abrigando seus "blogs" nos portais das suas empresas de comunicação. E pelo jeito, Mino Carta não consegue se sentir bem quando é criticado. Não se discute de forma alguma sua biografia, apenas ele deve entender que critica apenas se responde, ou se respalda. É isso.


Meu caro Alexandre, discordo de várias coisas que você escreveu. Classificar as leis italianas da década de 70 como leis de exceção foi uma bobagem, por vários motivos:

1) Como podem ser classificadas como leis de exceção se nenhuma delas representou o enfraquecimento das liberdades democráticas no país? Sim, houve medidas duras. Algumas delas restringiram liberdades individuais, mas sempre foram controladas pelo Parlamento e reguladas pelos poderes públicos. Não se pode comparar a Itália dos anos 60, 70 e 80 aos regimes de exceção ou aos tribunais especiais, como houve na América Latina, por exemplo. O que você chama de leis de exceção na verdade são leis de que aumentaram o rigor no combate a criminalidade. Simples assim. Aliás, o Brasil num passado recente já endureceu suas leis penais depois de alguns ataques do PCC.....será que estamos com leis de exceção?

2) As ditas leis foram responsáveis por desmontar grupo extremistas de direita, de esquerda e da Máfia.

Um outro ponto que não concordo é quanto a classificação dos crimes de Battisti como políticos. Não basta o cara entrar para um grupo armado político que automaticamente todos os seus crimes são políticos. Pelo menos 2 assassinatos pelos quais Battisti foi condenado foram feitos por vingança. Os outros 2 também fica muito difícil associar a uma causa política. Enfim, foram crimes comuns.


Agradeço aos comentários, vou tentar respondê-los um por um:

Leonardo: sou pela presunção de inocência. Como argumenta o Hugo Albuquerque o seu julgamento teve caráter político e, além disso, cheira - fede - a vícios. Vejamos: o processualista Pedro Ivo Iokoi, ao examinar a sentença foi taxativo, em seu depoimento na Folha de São Paulo de domingo, dia 08, ao dizer que "em nenhum momento a sentença considera qualquer elemento de prova produzido pelo acusado e não aponta nenhum meio de prova por ele requerido. Logo, não existe nenhum elemento que aponte que foi respeitado o direito à prova de Battisti". Além disso, há a chamada teoria dos frutos da árvore podre - como chegaram a Battisti? Se chegaram através das leis de exceção (por ex, falo em tese: se Pietro Mutti, o ex-chefe do PAC, que, devido ao instituto da delação premiada, é a principal testemunha do caso contra Battisti, ficou detido preventivamente com respaldo na Lei Cossiga, antes de delatar seu ex-companheiro) isso não vicia todo o processo? O que eu quero dizer é que se deve desconfiar desses julgamentos carregados pelo ar pesado dos anos de chumbo italianos. Não são só as condenações que derivam destes procedimentos de exceção, é todo um ambiente contaminado. Então, se um cara de um movimento político é condenado (e a testemunha principal era o líder deste movimento) nas circunstâncias em que Battisti o foi, eu presumo que ele foi condenado politicamente. Walter Maierovitch e Mino Carta ridicularizam Tarso Genro (com extrema grosseria, como notou o Hugo, justo ao Tarso que tanto defende o julgamento de militares torturadores da ditadura, o que prova, de fato, o quão carregado está o debate) quando este diz que Battisti corre risco de vida se extraditado, perguntando se por acaso a Itália se equipara a Darfur - como se a barbárie se restringisse à periferia do mundo e não habitasse o seu centro, como se o nazi-facismo tivesse acontecido há dois mil anos atrás em algum lugar do oriente desconhecido. Como se o governo Berlusconi não tivesse acabado de sepultar o sigilo médico, abrindo a possibilidade de delação de imigrantes ilegais por parte daqueles que deveriam tratar a sua saúde. Como se Berlusconi não tentasse impedir uma decisão judicial via decreto, e, não tendo a medida sido ratificado pelo Presidente, enviar um projeto de lei ao Parlamento para fazê-lo - e, se precisar, mudar a Constituição, para tanto.

Hugo e Moacir: de fato, Mino se passou e a despedida parece coisa de criança dona da bola que não quer mais que os outros joguem se ela é contrariada - e a culpa é dos outros. Gosto muito das posições dele, mas essa não dá pra entender.

Pax: obrigado pela sugestão. Estou pensando em mudar a fonte, pra ficar mais legível mesmo.

Adhemar: 1) sim, também temos as nossas, Regime Disciplinar Diferenciado incluído. No Brasil (não só), existe uma idéia disseminada de que novas leis resolvem tudo. Não é bem assim. Investe dinheiro no trabalho da inteligência e formação (por ex.: coleta de provas - as condenações penais no Brasil, malgrado a gritaria por causa da proliferação de grampos, se dão na sua maioria, baseada em testemunhos); 2) sim, e daí? E o milagre econômico dos anos 1970? e a economia alemã nos tempos de Hitler?

Abraços


Eu também tenho a impressão de que há algo obscuro, Alexandre, mas confesso que a justificativa pro asilo sofre maiores dificuldades. O processualista Pedro Ivo Iokoi disse isso, mas a Corte Européia de Direitos Humanos, que revisou o caso, não apontou nenhuma irregularidade. O que fazemos diante desse dilema? Imputar o sistema jurídico italiano é para nós algo trivial, já que somos civis, para para um governo é coisa mesmo grossa. Fica ainda mais difícil quando o processo é aferido e legitimado por uma corte internacional de direitos humanos.

Eu acho que há ânimos exaltados sim, o Berlusconi é um crápula fascista, o Mino se exasperou, mas a questão central é: os crimes foram mesmos políticos, conforme alegam os que defendem o asilo? O açougueiro foi morto num gesto político? Não podemos pensar que todo crime cometido por um militante político é um crime político.. e até agora, apesar dos bons argumentos que tenho lido a respeito do processo -- embora não sejam defiinitivos, porque não apresentam documentos ilustrativos -- quanto a questão na natureza política dos assassinatos, nada me convenceu ainda.

Em todo caso, continuo lendo. Abraços


É a velha lógica viciada de fazer moralismo com o Direito.
Vale lembrar também que no mesmo sentido do que o Nilo afirmou no parecer dele, creio eu que o último homicidio foi em 80, e mesmo os julgamentos são de mais de 20 anos atrás - o que fez tudo prescrever e, se extinta a punibilidade, não há porque sequer conhecer o pedido de extradição.


Alexandre


O problema é que apresentando a questão política e judiciária italiana com esse grau de subjetividade você está indiretamente colocando "em xeque" todas as condenações daquele período. Não só dos grupos armados de esquerda, quanto os da direita. Por exemplo, Vincenzo Vinciguerra, ex-membro do movimento neofascista (Avanguardia Nazionale e Ordine Nuovo) foi condenado à prisão perpétua pelo assassinato de três policiais, em um carro-bomba, em Peteano, no ano de 1972. Pierluigi Bragaglia, ex-militante do NAR (Núcleo Armado Revolucionário), radical grupo da extrema direita italiana, condenado a 12 anos de prisão por subversão, assalto, roubo a bancos e associação a grupo armado. Este último, o Pierluigi, encontra-se preso no Brasil, aguardando o julgamento do seu pedido de extradição.

E, afinal, como bem disse o Leonardo, essas questões envolvendo os direitos de defesa do Battisti já foi julgada pela Corte Européia de Direitos Humanos, que conclui pela negação do recurso do Battisti.


O Caso Batistti: Considerações Desde El Sur

Por: Antonio Carlos Mazzeo*

A decisão de conceder asilo político ao cidadão italiano Cesare Battisti, ex-militante do grupo de ultra-esquerda, Proletari Armati per Il Comunismo (PAC), vem suscitando um grande debate na Itália, debate esse acompanhado de manifestações e protestos políticos e ideológicos contra a decisão brasileira, algumas, com forte teor de passionalidade. Mas ao lado das manifestações “folclóricas”, outras, com teores político-ideológicos mais substanciais, acusaram o Brasil de “romper as normas vigentes na relação jurídica com o mundo civilizado”. Esse foi o caso do ministro do interior, Roberto Maroni, que afirma que essa decisão dificulta outras relações jurídicas entre os dois países ou do deputado Piero Fassino, do Partido Democrático - ex-PCI, ex-PDS, ex-DS - que diz ser essa decisão política do governo brasileiro um erro por desconhecimento da realidade italiana, culminando com a chamada do embaixador italiano no Brasil para “consultas” e o ridículo: a proposta estapafúrdia do sub-secretário das Relações Exteriores da Itália, Alfredo Mantica, de cancelar uma partida de futebol amistosa entre as seleções nacionais dos dois países!


Mas, para além de toda essa vociferação, o que temos de fato, é a tergiversação do problema central que envolve o “caso” Battisti, isto é, como foram conduzidas as investigações e seu julgamento. Batisti foi indiciado em crimes de assassinato a partir de acusações feitas por um ex-companheiro de organização, Pietro Mutti, que se valeu de um recurso jurídico italiano, conhecido como “delação premiada”, que da ao delator privilégios, como no caso de Mutti, a liberdade e uma nova identidade. O bizarro de tudo isso, é que Battisti é acusado de haver cometido dois crimes, ocorridos em duas cidades distantes uma da outra, no mesmo dia e apenas com meia hora de diferença entre eles, um em Milão e outro na cidade de Udine. Além disso, Battisti foi julgado in absentia, e chegou-se ao absurdo de se falsificar sua assinatura, (falsificação constatada mais tarde por exame grafológico) para nomear advogados indicados pelo governo que aceitaram um julgamento sem a presença do réu.


Não houve demonstrações de provas concretas, e todo o processo baseou-se apenas nos relatos de Mutti. Mas o que agrava o indiciamento e a condenação de Battisti é que existem indícios substanciais, e que ainda não foram aclarados devidamente, que essas “confissões” feitas pelos ex-guerrilheiros que colaboraram com o governo, conhecidos como pentiti (arrependidos), foram arrancadas sob torturas, conforme denunciou à época a Amnesty International e a escritora Laura Grimaldi. Cabe dizer, ainda, que naquele período prevalecia uma lei de exceção que concedia às investigações das organizações consideradas terroristas detenções de pessoas sem autorização judicial e que até hoje, dificultam qualquer tentativa de reabertura dos processos que envolveram as organizações subversivas dos “anos de chumbo”.


Mas para que possamos responder adequadamente essa questão, devemos buscar as “razões de toda essa “indignação” por parte do governo e de uma certa “esquerda” italiana. Sabemos que nos “anos de chumbo”, na Itália, entre 1969 e 1980, vários grupos dissidentes do PCI, então a maior força política da esquerda italiana, formaram organizações que propunham a luta direta pelo socialismo, questionando as posições do PCI, naquele momento, empenhado em construir o “Compromisso Histórico”, baseado numa aliança com a Democracia Cristã, numa clara posição de conciliação de classes, dentro de uma opção política institucionalista que apontava para uma posição de radical reformismo, mais tarde evidenciado e aprofundado com a destruição do PCI e a formação do PDS.


Muitas dessas organizações, fundamentadas em visões políticas distanciadas da realidade concreta italiana, optaram equivocadamente pela luta armada, dentre eles o mais conhecido grupo, As Brigadas Vermelhas, que em curto espaço de tempo, foi alvo de ações de infiltração policial e de outros órgãos de informação internacionais, como a CIA. O rapto e assassinato do Presidente do Conselho de Ministros e expoente da DC, Aldo Moro, por parte das Brigadas Vermelhas, desencadeou uma grande instabilidade política no país, fazendo inclusive, retroceder algumas conquistas de esquerda. O PCI, que se preparava para entrar no governo, dentro da concepção do “Compromisso Histórico” acaba, objetivamente, fazendo coro com a extrema direita, quando apóia medidas de exceção para o combate aos grupos de ultra-esquerda, todos considerados, a partir de então, como “terroristas”. È nesse contexto que cai sobre a esquerda que se encontra fora do PCI uma furiosa repressão, e é esse o escopo das leis especiais que permitem julgamentos sumários e informações de prisioneiros arrependidos que se lumpenizam e, para obterem regalias do governo, acusam-se mutuamente.


A introdução das leis especiais contra o “terrorismo”, de certo modo, ajudou a progressiva criminalização, não somente da esquerda que se opunha à política do velho e decadente PCI, que se desintegra em 1991, mas reforçou as posições de ultra direita. Por outro lado, os ex-comunistas fundam o PDS e passam a propor a “refundação do capitalismo”, sob o nome de democracia radical. Ambos os grupos, continuaram a sustentar as leis de exceção e a legitimar os julgamentos políticos feitos entre as décadas de 1970 e 1980.


Mutatis mutandis, essa situação continua até os dias de hoje. A socialdemocracia italiana nunca pôs em discussão a legislação excepcional anti-terror e nunca questionou a política internacional da Itália de alinhamento mecânico com os EUA. A postura pró-imperialista da socialdemocracia italiana, já havia provocado no primeiro governo Prodi rupturas com setores da esquerda antagonista, culminando com a saída do Partido da Refundação Comunista, PRC, do governo.


O PDS, depois transformado em DS, governou a Itália, através de alianças ditas de “centro-esquerda”, mas tendo o PRC fora do governo e na oposição. Exatamente quando o ex-comunista Massimo D’Alema é eleito Presidente do Conselho, a Itália participa como ator importante nos bombardeamentos à ex-Iugoslávia, onde milhares de civis foram mortos pelas bombas e pelas tropas da OTAN. Por outro lado, qualquer tentativa de condenar o governo italiano pelo apoio à invasão e destruição da Iugoslávia era prontamente acusada de terrorismo ou de apoiar o “genocídio” pretensamente cometido pelos sérvios (como se somente os sérvios atacassem populações civis e como se a guerra não fosse o resultado de anos de atuação desintegradora, por parte de forças “neoliberais” estadunidenses e européias), mesmo que isso implicasse, da parte das forças da OTAN, apoiar grupos políticos sabidamente vinculados ao narcotráfico e ao banditismo, como por exemplo o UCK croata.


Esse o escopo para que “democratas” e neo-fascistas façam do “caso Battisti” uma questão de honra, isto é, a recusa de abandonar a política de exceção para julgar movimentos sociais e posições políticas que confrontem de modo antagonista a pretensa democracia de uma certa “esquerda” – transformada em office boy do capitalismo e em tarefeira dos interesses dos EUA na Europa – e a truculência boçal do atual governo neofascista italiano. Os “democratas” e os neofascistas se recusam a reabrir os processos judiciários excepcionais dos “anos de chumbo”, porque foram coniventes, inclusive com as injustiças que as sumariedades, nesses casos, propiciam. A ferocidade dos ataques ao povo e ao Estado brasileiros, por parte do governo neofasciata italiano, com a conivência dos “democratas”, demonstram a justeza do governo brasileiro em conceder asilo político a Battisti.


Em especial, a direita, que grita contra o “desrespeito” brasileiro às leis italianas, mas não diz nada sobre a negação de extradição para o Brasil do banqueiro ítalo-brasileiro Salvatore Cacciola, por parte das autoridades italianas, ladrão contumaz das finanças populares, condenado por peculato em nosso país; não se pronuncia sobre os terroristas italianos de extrema-direita que vivem no Brasil. Essa mesma direita faz “olhos de mercador” para a (justa) concessão de asilo político e humanitário dado pelo governo francês a Marina Petrella, em 2008, ex-militante das Brigadas Vermelhas, não somente porque Sarkozy é um sempre possível aliado da direita italiana, no contexto da UE, mas porque, em sua fúria racista, a direita italiana entende que Sarkozy (ironicamente, um filho da imigração!) é “menos desrespeitoso” com a Itália porque preside um grande país europeu. No caso dos “democratas”, esses chegaram até fazer um “protesto” contra o governo francês, mas tênue, com algumas vozes alçadas, em tom muito menor.


Como ítalo-brasileiro, napolitano, por parte de pai e ciociaro, por parte de mãe – genitores que desde pequeno me ensinaram o amor pela Itália –, condeno veementemente a posição do governo italiano. Reprovo e me envergonho da perseguição aos imigrantes, aos não-ocidentais, aos ciganos, aos muçulmanos, que em sua grande maioria, estão na Itália para trabalhar, progredir e viver em paz, como assim fizeram os italianos, quando “expulsos” de sua terra natal pela miséria e pelos opressores, e construíram no Brasil um novo lar. Também eles foram estigmatizados, como “ladrões”, “malfeitores”, “desordeiros” e “ignorantes”, por parte da elite e dos setores reacionários da sociedade brasileira. Muitos dos lideres operários italianos foram deportados do Brasil como elementos “anti-sociais”, e alguns como “terroristas” porque lutavam contra a exploração do trabalho, a mesma exploração que os impeliu a imigrar para uma nova terra.


Nunca é demais recordar que o atual ministro das Relações Exteriores da Itália, senhor Franco Frattini, foi censurado no Euro-Parlamento, em novembro de 2007, por haver declarado ser favorável à deportação sumária da União Européia de estrangeiros desempregados ou em situação irregular, atacando particularmente a população cigana-rom.
Repugno a hostilidade contra o povo brasileiro, que não vacilou em mandar à Itália 25.000 de seus soldados para combater o nazi-fascismo, que bravamente tombaram em Monte Castello, Fornovo e Montese, mortos pela dignidade humana, como está escrito na Pedra Branca em homenagem aos caídos, no outrora cemitério brasileiro de Pistoia, hoje Monumento aos soldados brasileiros.


Para alem dessa questão pontual do “caso Battisti”, a Itália deverá trilhar o caminho para reconciliar-se consigo mesma e com sua história, encontrando a verdade dos fatos ocorridos nos ainda obscuros “anos de chumbo”. A ferida aberta deve purgar para cicatrizar. Essa é a tarefa dos verdadeiros combatentes pela justiça social e pela democracia, na Itália e em todo mundo.


*Sobre o autor
Antonio Carlos Mazzeo é livre-docente em Teoria Política pela Faculdade de Filosofia e Ciência da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília, onde leciona. Mestre em Sociologia e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), fez pós-doutorado em Filosofia Política pela Università di Roma e atualmente preside o Instituto Caio Prado Jr. Publicou, entre outros, os livros: “Estado e burguesia no Brasil” – origens da autocracia burguesa (Cortez, 1997), “O vôo de Minerva”: a construção da política, do igualitarismo e da democracia no ocidente antigo (Boitempo, 2009) “Sinfonia inacabada” – a política dos comunistas no Brasil (Boitempo, 1999) e organizou “Corações vermelhos” – os comunistas brasileiros no século XX (Cortez, 2003).


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
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  • Antonio Carlos Mazzeo comentou no post "Rapina" e "terror": o caso Battisti: O Caso Batistti: Considerações Desde El Sur Por: Antonio Carlos Mazzeo* A decisão de conceder asilo político ao cidadão italiano Cesare Battisti, ex-militante do grupo de ultra-esquerda, Proletari Armati per Il Comunismo (PAC), vem suscitando um grande debate na Itália, debate esse acompanhado de manifestações e protestos políticos e ideológicos
  • Adhemar Santos comentou no post "Rapina" e "terror": o caso Battisti: Alexandre O problema é que apresentando a questão política e judiciária italiana com esse grau de subjetividade você está indiretamente colocando "em xeque" todas as condenações daquele período. Não só dos grupos armados de esquerda, quanto os da direita. Por exemplo, Vincenzo Vinciguerra, ex-membro do movimento neofascista (Avanguardia Nazionale
  • João Pedro Calmon comentou no post "Rapina" e "terror": o caso Battisti: É a velha lógica viciada de fazer moralismo com o Direito. Vale lembrar também que no mesmo sentido do que o Nilo afirmou no parecer dele, creio eu que o último homicidio foi em 80, e mesmo os julgamentos são de mais de 20 anos atrás - o que fez tudo prescrever e, se extinta a punibilidade, não há porque sequer conhecer o pedido de extradição.
  • Leonardo Bernardes comentou no post "Rapina" e "terror": o caso Battisti: Eu também tenho a impressão de que há algo obscuro, Alexandre, mas confesso que a justificativa pro asilo sofre maiores dificuldades. O processualista Pedro Ivo Iokoi disse isso, mas a Corte Européia de Direitos Humanos, que revisou o caso, não apontou nenhuma irregularidade. O que fazemos diante desse dilema? Imputar o sistema jurídico italiano é








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