Diário de S. Paulo

| | Comentários (11)
Obs.: este post foi atualizado às 20:22 de 29 de junho, com o trecho "Felicidade".

Miscigenação
Logo na chegada aos seus grandes centros urbanos, como a Paulicéia, se descobre que o Brasil não é só uma democracia racial, mas também uma pujante democracia social. Homens de classe média baixa fazem piadas machistas, enquanto um morador de rua dorme na mesma calçada, uma estudante uniformizada caminha para casa vinda do colégio particular, um engravatado com pasta de couro chama um táxi e universitários do Mackenzie fazem um churrasco na calçada do prédio da USP na Rua Maria Antônia. Tudo num raio de dez metros. Tudo sob o sol escaldante do meio dia. Tudo ao mesmo tempo sem que ninguém se incomode ou se sinta incomodado pelos demais. É compreensível que isto se dê na cidade abrigo do tucanato, mas imperdoável que se repita - como de fato se repete - em cidades como Porto Alegre ou Belo Horizonte, governadas tanto tempo pelo PT.

Arquivo
Os arquivos brasileiros se regem por uma máxima: neles não estão armazenados documentos que esperam a intervenção do pesquisador para escaparem do esquecimento, mas sim documentos que já estão esquecidos, independente de quem (e se alguém) os leia. No Brasil há, de fato, um "mal de arquivo": os arquivos encadernam jornais furando o texto, permitem que os textos se apaguem, disponibilizam ao pesquisador, junto aos documentos, recomendações de uso interno sobre uma microfilmagem jamais realizada. Ao resgatar do esquecimento um documento armazenado em arquivos brasileiros, o pesquisador leva como saber supremo o de que o passado que resgatou já está irremediavelmente perdido.

Felicidade
No Memorial da Resistência, há uma sala escura - uma das antigas celas do DEOPS -, com bancos e fones de ouvido. Neles, se pode ouvir depoimentos de presos políticos que passaram por ali. Talvez o momento mais bonito dos relatos seja quando um deles fala que, apesar da dureza nada branda da situação, havia certa disposição à alegria dos que estavam ali. Mas a beleza do relato não está aí, o que faria dele tão perverso quanto A vida é bela, mas na explicação que dá para isso: se os presos que ali estavam não fossem pessoas dispostas à alegria, nem estariam ali - eles estavam ali justamente porque queriam ser felizes - ou melhor, explica o depoimento, eles estavam ali justamente porque queriam que todos pudessem ser felizes. Não conheço definição melhor de democracia - ou comunismo: a possibilidade de todos serem felizes.

Livros
No último dia de Paulicéia, esqueço dois livros recém comprados no balcão de um café. No ônibus que me leva para outro estado, não consigo parar de me culpar pelo esquecimento. Minha companheira, a certa altura, me consola: pode ser que quem encontre os livros tenha a vida completamente transformada pela sua leitura. Passamos a noite em claro imaginando os caminhos tomados pelos livros e pelas vidas reconfiguradas por eles. Chegamos ao nosso destino cansados, mas aliviados. Muitas horas antes, ainda na Paulicéia, os dois livros, com capas de papelão confeccionados por catadores, já haviam chegado ao seu destino, que, no caso, era também a sua origem: a lata de lixo. Os livros, como os homens, não tem Destino.

Post-scriptum
Como se depreende deste "Diário", estive viajando para São Paulo, onde fui muito bem recebido pelos amigos Pádua Fernandes e Fabio Weintraub, aos quais agradeço muito pela atenção, pelo carinho, pela hospitalidade - pela amizade. Em seguida, fui a Dourados, junto com colegas de pós-graduação, participar de um congresso e conhecer o Idelber Avelar, bem como reencontrar o velho amigo Rodrigo. Por isso, peço desculpas por não ter respondido aos comentários feitos aqui no blog, bem como por não tê-lo atualizado. Agora, ele deve voltar ao ritmo normal. O debate sobre o Extinção, livro de Paulo Arantes, continua marcado para o dia 15 de julho.

11 Comentários

Ainda tudo isso está acontecendo e difícil de decifrar e entender, mas o velho PT aqui de BH se tornou, de fato, velho. Está um pouco mais à direita do espectro. Não se trata mais, nem de longe, do saudoso PT do Patrus de meados dos anos 90. Aécio, Anastasia, o laranja Márcio Lacerda e mesmo as prefeituras das importantes Contagem e Betim (ambas nas mãos do PT) parecem rezar a mesma cartilha. Agora, esse cosmopolitismo impessoalista que você percebeu em Sampa (eu também) não vejo tanto aqui em BH. Um cabelo pintado de laranja, qual Baudelaire, jamais passa desapercebido. Em Sampa é indiferença, aqui é mais desdém e menosprezo; as pessoas se notam, mas fingem que não.


Poxa, poderíamos ter marcado uma cerveja gelada nestes dias pela Paulicéia...


Beto: dessa vez nem teria dado tempo mesmo. Foi muito corrido, fiquei mais tempo no Arquivo que o planejado e faltou visitar algumas coisas também. Tive até que abortar o chopp pré-contratado com o Hugo Albuquerque. Na próxima - pretendo voltar pra Paulicéia ainda esse ano - nos reunimos todos.

Josaphat: interessante essa pequena diferença que v. aponta. Conheço pouquíssimo de BH, e bastante de Porto Alegre. Todavia, me expressei mal: o que me assusta nestas duas cidades é a existência em si de moradores de rua. Não consigo entender como um partido fascinado pela inclusão como é o PT não tenha conseguido em mais de uma década no poder, criar programas para resolver esse problema. É como se ignorasse uma das mais belas realizações cubanas - e orgulho de Fidel: a de que, entre tantas crianças morando na rua pelo mundo, nenhuma é cubana (não sei como é hoje em Cuba, mas o que quero dizer é que deveria ser uma prioridade da esquerda acabar com a desigualdade tão profunda que obriga alguém a morar na rua).


Olá Alexandre. Pena não termos tido tempo para conversarmos mais em Dourados. Minha viagem para Ponta Porã acabou sendo nula (soube depois que as pessoas que esperava encontrar por lá foram para o restaurante onde estávamos, em Dourados...). Pelo menos foram 60 minutos de bela tensão em uma estrada tomada pela neblina e chuva fina. Caso tenha interesse, o bate papo com o Idelber, na sexta, rendeu esta entrevista. Grande abraço, mantenhamos contatos virtuais.


Caro Victor: foi um prazer te conhecer, ainda que de forma tão relâmpago. De fato, topamos com algumas das pessoas ali no restaurante mais tarde. Vou lá ver a entrevista. Abraço.


Alexandre,

Devo ir a São Paulo no segundo semestre, passar pelo menos umas duas semanas pesquisando na USP. Vou fazer uma visita ao Memorial da Resistência, depois do seu relato.

Sobre a indiferença com a desigualdade nos grandes centros, eu creio que ela é tão maior quanto maior é a cidade. Mas a natureza dela é a mesma. O incômodo que você gostaria de notar, nas pessoas que passam e não se dão conta umas das outras, é tão raro quanto o empenho de alguns pela felicidade comum.

Um abraço.


Caro Rodrigo: vale a pena visitar o Memorial. Fica na Estação Pinacoteca, algumas quadras da Pinacoteca em si. Pádua Fernandes me disse que inicialmente se chamava Memorial da Liberdade e tinha uma concepção bem equivocada: por exemplo, pintaram as paredes das celas, cobrindo todas as inscrições feitas pelos presos políticos nelas (incluindo uma de Monteiro Lobato, que data do tempo de Vargas). Depois de uma série de críticas, fecharam tudo, reformularam e reabriram com o novo nome (e recuperaram as tais inscrições). Parece que há programação intensa também de debates e reuniões por lá. No corredor do fundo das celas, há um espelho - o que cria um misto de identificação/distanciamento (podia ter sido você, ao mesmo tempo que não foi; não sei bem como interpretar, mas é forte; talvez você, mais acostumado a lidar com imagem, tenha condições de compreender melhor). Além disso, há mostras temporárias criadas a partir dos arquivos do DEOPS. Enfim, vale a pena conhecer sim. Se puder depois mandar as suas impressões, seria uma interessante troca. Abraço.

P.S.: Assim que eu conseguir fazer meu micro funcionar, vai ao ar o Sopro n. 12, com o texto do Zizek que v. traduziu.


Alexandre,

Só li o post agora, estou muito focado nesse questão hondurenha, mas ele ficou muito bom sim - especialmente o trecho que você acrescentou depois.

Sobre a situação de São Paulo, concordo com o Josaphat, de fato há muita indiferença na cidade e também há um enorme alheamento em relação ao coletivo. Sabe aquela coisa da heteropia? Pois é, ela faz um enorme sentido quando se vive em São Paulo, você vê o bairro de elite mais conectado com as capitais europeias do que com a periferia, mas mesmo na periferia há uma certa fragmentariedade e uma indiferença em relação a comunidade que é incomum, por exemplo, ao que se vê nas favelas cariocas.

Esse comportamento, no entanto, não é exclusivo à direita, mais do que isso, é um fenômeno social que conjuga muito dos costumes pré-existentes com o fenômeno de desindustrialização dos anos 90 e nos envolve a todos.

A própria questão da tucanidade é complexa. No princípio, ela não tinha nada a ver com direita aqui em São Paulo. Votavam nos tucanos - leia-se, no Covas -, aquele eleitorado moderado que não aceitava Maluf - o arauto da direita -, mas era conservador demais pra votar no PT. Como sistemas eleitorais de dois turnos favorecem partidos centristas, o PSDB foi construindo uma estrutura muito grande no estado.

Não podemos nos esquecer, por exemplo, que nos fins dos anos 90, o covismo, junto com o petismo, foi responsável por transformar Maluf num zumbi político. A guinada do PSDB à direita só veio depois da morte de Covas, com o governo fantoche de Alckmin e o oportunismo político de certos caciques - como Serra e FHC, por exemplo.

O PT, em São Paulo tem uma trajetória curiosa. É logo embaixo do leviatã-capital, lá no ABC, que o petismo nasce e se afirma e é na USP e na PUC que se forma sua massa intelectual. Mas depois, justo quando o partido chegou ao auge, ele se perdeu. Hoje, nas grandes universidades o PT deixou de ser visto como referencial político para a esquerda, por outro lado, a presença do partido na vida e nos movimentos sociais murchou; desde o início o governo Lula, você não vê os políticos petistas planejando e se impondo no plano local - e olha que os governos tucanos dão margem, muita margem.

Hoje, eu não diria que São Paulo é uma cidade conservadora politicamente. Diria que ela se mantém com aquele mesmo equilíbrio político entre direita e esquerda e a mesma predominância de uma enorme zona cinzenta centrista que remontam aos anos 80. Mais do que uma crítica ao conservadorismo existente, acho que a esquerda de São Paulo - na qual eu me incluo - deveria fazer uma bela autocrítica.

abração

P.S.: Na próxima, a gente se trombra por aqui.


Hugo: claro, na próxima ida quero ficar mais - e, com certeza, marcaremos algo. Pra variar seu comentário é um post em si. Deixa só eu te fazer uma pergunta - porque eu concordo com a tua análise, mesmo quanto ao Covas, figura que eu admirava, e à incapacidade do PT de lidar com a margem de manobra dado pelas trombadas e pelo vazio ideológico tucano (não dá pra entender como Marta Suplicy não foi eleita, tendo feito provavelmente o melhor governo da história de São Paulo) -, aqui vai a pergunta: não seria a presença forte dessa zona cinzenta do eleitorado que não gosta de excessos (centrista) justamente uma das causas dessa indiferença tão brutal que eu narrei? Claro que é um fenômeno comum às grandes cidades, mas em São Paulo achei mais assustador (que já visitei outras vezes mais novo e achei que talvez tivesse me impressionado porque era muito novo). O excesso de moderação (que é a moderação do excesso, o que virou o PSDB) não tem a sua contrapartida na indiferença? Abração


Alexandre,

Essa zona cinzenta em muitos momentos votou no PT, aliás, foi ela que elegeu Marta em 2000 e elegeu Suplicy para o Senado em 2006. Vamos dimensionar: Essa massa cinzenta equivale a 40% do eleitorado contra 30% pra os dois outros lados.

Por sua vez, essa profunda, atemporal e lancinante indiferença transcende a direita e o centro nessas terras; mesmo na esquerda existe muito disso só que à sua maneira - um certo vanguardismo petulante, uma frieza no trato pessoal, aquele velho e nem tão bom provincianismo...Enfim, eu veria as causas disso muito mais na problemática social e cultural, o que se materializa nesse modo de vida distante, impessoal e por vezes vazio no qual se (des) encontram tanto petistas quanto tucanos. Dói na alma.


É isso: dói na alma mesmo. É triste demais.


Página Principal

"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

Currículo Lattes







Alguns textos

"a posse contra a propriedade" (dissertação de mestrado)

O pensamento do fim
(Em: O comum e a experiência da linguagem)

O perjúrio absoluto
(Sobre a universalidade da Antropofagia)

"o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas":
notas sobre o Direito Antropofágico

A censura já não precisa mais de si mesma:
entrevista ao jornal literário urtiga!

Grilar o improfanável:
o estado de exceção e a poética antropofágica

"Modernismo obnubilado:
Araripe Jr. precursor da Antropofagia

O que as datilógrafas liam enquanto seus escrivães escreviam
a História da Filha do Rei, de Oswald de Andrade

Um antropófago em Hollywood:
Oswald espectador de Valentino

Bartleby e a paixão da apatia

O que é um bandido?
(Sobre o plebiscito do desarmamento)

A alegria da decepção
(Resenha de A prova dos nove)

...nada é acidental
(Resenha de quando todos os acidentes acontecem)

Entrevista com Raúl Antelo


Work-in-progress

O que é o terror?

A invenção do inimigo:
terrorismo e democracia

Censura, um paradigma

Perjúrio: o seqüestro dos significantes na teoria da ação comunicativa

Para além dos direitos autorais

Arte, política e censura

Censura, arte e política

Catão e Platão:
poetas, filósofos, censores






Bibliotecas livres:



Visito:



Comentários recentes

  • Alexandre Nodari comentou no post Diário de S. Paulo: É isso: dói na alma mesmo. É triste demais.
  • Hugo Albuquerque comentou no post Diário de S. Paulo: Alexandre, Essa zona cinzenta em muitos momentos votou no PT, aliás, foi ela que elegeu Marta em 2000 e elegeu Suplicy para o Senado em 2006. Vamos dimensionar: Essa massa cinzenta equivale a 40% do eleitorado contra 30% pra os dois outros lados. Por sua vez, essa profunda, atemporal e lancinante indiferença transcende a direita e o centro nessa
  • Alexandre Nodari comentou no post Diário de S. Paulo: Hugo: claro, na próxima ida quero ficar mais - e, com certeza, marcaremos algo. Pra variar seu comentário é um post em si. Deixa só eu te fazer uma pergunta - porque eu concordo com a tua análise, mesmo quanto ao Covas, figura que eu admirava, e à incapacidade do PT de lidar com a margem de manobra dado pelas trombadas e pelo vazio ideológico tucan
  • Hugo Albuquerque comentou no post Diário de S. Paulo: Alexandre, Só li o post agora, estou muito focado nesse questão hondurenha, mas ele ficou muito bom sim - especialmente o trecho que você acrescentou depois. Sobre a situação de São Paulo, concordo com o Josaphat, de fato há muita indiferença na cidade e também há um enorme alheamento em relação ao coletivo. Sabe aquela coisa da heteropia? Pois é








Site Meter



Movable Type

Powered by Movable Type 4.1