Balanço do balanço

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No final do ano passado, a Folha de S. Paulo organizou um debate sobre os 50 anos do caderno Ilustrada. Uma questão, atravessada pela melancolia, dominou: como fazer que o jornalismo cultural volte a "pautar" a cena e o debate artísticos? A explicação mais convincente para o declínio do suposto papel de protagonista da cultura do jornal, foi a de Marcos Nobre, que argumentou que este se voltou ao mercado para poder fugir à tensão entre academia e imprensa. Por mais que teoricamente o argumento pareça fazer sentido, uma olhadela rápida no Ilustrada dos últimos meses mostra que não há tanto distanciamento quanto parece. Dois exemplos. Quando da palestra de Antonio Candido, intelectual de referência para a esquerda brasileira durante a ditadura militar, para o lançamento de um volume de correspondências de Mário de Andrade, a Folha cobriu o evento. Mas Candido não disse nada de importante, se limitou a anedotas. E o jornal as reproduziu, dois dias depois, no dia 27 de maio desse ano, como se tratasse de algo monumental, com direito a narrar a dificuldade de subir ao palco do acadêmico. No mesmo Ilustrada, dois meses antes, quando do lançamento de Leite Derramado de Chico Buarque, foi publicada uma resenha de tamanho desproporcional para o caderno, de Roberto Schwarz em que ele analisa o romance com as mesmas categorias com que analisou Machado de Assis a partir da década de 1970 e 1980, justamente o auge do jornal. Os mesmos intelectuais de referência do jornalismo cultural paulista continuam tendo espaço. E talvez esse seja o problema. O problema não é que o jornalismo cultural não promova mais o debate, não produza mais efeitos; o problema é que a arte, entendida pelas categorias das décadas passadas, não produz mais efeitos. É evidente que a notícia da palestra de Antônio Cândido sobre um livro de Mário de Andrade ou uma resenha de Schwarz em que ele compara Chico a Machado não produzirão efeitos. É este sistema do grande autor, do grande intelectual, da grande obra que não funciona mais. Outro exemplo: o rodapé literário e as resenhas, que seguem o padrão do jornal e, portanto, devem  classificar a qualidade do livro, dificilmente dão alguma indicação diferente do bom ou ótimo. Sabendo do mercado editorial brasileiro pelo Ilustrada, tem se um panorama excelente, quando a verdade é outra; cada vez são publicadas mais porcarias. Provavelmente, nenhum dos livros classificados como ótimo mudará a vida de alguém ou pautará debate duradouro.

Sylvia Colombo tentou defender o caderno: argumentou que, entre outras coisas, o Ilustrada cunhou o termo Bienal do Vazio, liderando a discussão nesse ponto e "debate a prisão da jovem pichadora e, mais ainda, promove este amplo debate sobre si própria, sua história e perspectivas". Ora, ao debater a prisão da pichadora, isto é, ao centrar-se na polêmica, o jornal revela a sua incapacidade de compreender "novas" manifestações artísticas ("novas" com muitas aspas, porque elas datam da "era de ouro" do caderno), como as performances e os happenings: as categorias com que lêem a cena cultural são (e possivelmente sempre foram) obsoletas. Cobrir a prisão da pichadora e debatê-la não faz do Ilustrada uma frente no debate cultural. No máximo o credencia como o Cidade Alerta da cultura - aliás, outro exemplo da incapacidade conceitual do caderno de ler o país: para os ilustrados, é apenas lixo. E o lixo não interessa. Interessa o "crítico literário mais célebre do país", não importa o que diga.

P.S.:  Não há nada tão ruim que não possa piorar. A situação cá na província é muito pior: não são as categorias inadequadas que regem; vige o silenciamento mesmo. Silenciamento da imprensa (e dos atores culturais em geral) tão arraigado que impossibilita a publicação de um texto como este, que se "limita" a apontá-lo.

7 Comentários

Eu não consigo ler nada além do Contardo Calligaris e o Antonio Cicero na Ilustrada.

Numa das partes que mais me interessa (música/rock), é horrorosa (inclusive essa Colombo).


Certo, Alexandre. E a esmagadora maioria dos veículos é muito pior. Muitos jornalistas simplesmente não têm como avaliar "o que se diga"; alguns conhecem o prestígio de quem o diz e publicam mesmo se a fala é só anedótica - outros, nem do prestígio tiveram notícia.
E muitos jornais estão aí para calar o que se diga.
Abraços, Pádua


Moysés: os colunistas do Ilustrada são fracos também - saudades do Bernardo Carvalho. O Contardo eu leio de vez em quando, o Marcelo Coelho tem seus altos e baixos, agora o Antonio Cicero não me desce (prefiro o português reacionário, João Pereira Coutinho, que, por incrível que pareça, produz as melhores coisas do caderno - ainda que raramente faça algo de bom). Sinceramente, não entendo de onde ele tirou o prestígio que tem: pra mim os textos dele se limitam a uma vulgarização do discurso anti-pósestruturalista, fazendo uso de argumentos primários que são um atentado à lógica (ou seja, não é que sejam argumentos fracos, o próprio raciocínio do sujeito é contraditório). Não acho que por concordar com o lugar onde ele quer chegar seja uma razão pra aceitar o caminho circular que traça pra chegar até lá. Um abraço.

Pádua: sim, não há limite para o ruim. Ainda considero a Folha o melhor jornalão, mas não vou renovar minha assinatura; nem estou mais lendo. Aqui na província da RBS, a coisa é muito pior. Abraço


Eu também raramente concordo com os pontos de vista dele, mas acho um "moderno" classudo. É alguém com fundamento nas suas opiniões.
Gosto tb do JP Coutinho (com quem tb muito raramente concordo) e do Pondé. O Marcelo Coelho oscila entre o intragável e boas colunas.

Mas pode ser pior mesmo: na nossa província (digo, sou do RS) temos um caderno de cultura que, a cada 750 artigos, tem um médio. Ou "intelectuais" que escrevem sobre "Quando Nietzsche Chorou".


Que o AC é um "moderno classudo", ah, disso eu não discordo mesmo!


O que resta do jornalismo cultural no Brasil? A Ilustrada trata Star Trek como se fosse Fellini; o JB, que foi o que houve de mais grandioso no Brasil há coisa de 20 anos, hoje não é literalmente nada. O Mais! da Folha também está do tamanho de um folheto. O Estadão, que tinha um belíssimo suplemento literário, agora necas. O único que sobrou é o Prosa e Verso do Globo, que é profundo como a lagoa de Jacarepaguá. O Estado de Minas tinha um belo suplemento literário também... que também morreu. Sobram as revistas. A Bravo virou o anedotário da Abril, a Cult é frente e verso, a Entre Livros faliu...


Diego, e depois os jornalistas vem reclamar dos blogs, do fim da obrigatoriedade do diploma, que Lula desestimula a leitura, etc. Abraço


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

Currículo Lattes







Alguns textos

"a posse contra a propriedade" (dissertação de mestrado)

O pensamento do fim
(Em: O comum e a experiência da linguagem)

O perjúrio absoluto
(Sobre a universalidade da Antropofagia)

"o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas":
notas sobre o Direito Antropofágico

A censura já não precisa mais de si mesma:
entrevista ao jornal literário urtiga!

Grilar o improfanável:
o estado de exceção e a poética antropofágica

"Modernismo obnubilado:
Araripe Jr. precursor da Antropofagia

O que as datilógrafas liam enquanto seus escrivães escreviam
a História da Filha do Rei, de Oswald de Andrade

Um antropófago em Hollywood:
Oswald espectador de Valentino

Bartleby e a paixão da apatia

O que é um bandido?
(Sobre o plebiscito do desarmamento)

A alegria da decepção
(Resenha de A prova dos nove)

...nada é acidental
(Resenha de quando todos os acidentes acontecem)

Entrevista com Raúl Antelo


Work-in-progress

O que é o terror?

A invenção do inimigo:
terrorismo e democracia

Censura, um paradigma

Perjúrio: o seqüestro dos significantes na teoria da ação comunicativa

Para além dos direitos autorais

Arte, política e censura

Censura, arte e política

Catão e Platão:
poetas, filósofos, censores






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