Gabeirismos e a Banalização do Mal

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Hugo Albuquerque escreveu, ontem, um post com o mesmo título, e que está rendendo uma boa discussão. Não teria muito a acrescentar, mas a última declaração do Gabeira foi tão absurda que não posso me manter calado.

O que é preciso ressaltar é que a comparação entre o aparelhamento do estado pelo PT e a limpeza étnica não é só exagerada e descabida porque o governo Lula não promove genocídios nem metafóricos, mas porque ela banaliza o próprio termo de comparação. A chacina étnica se torna mais suave quando comparada ao apoio lulista a José Sarney. Transcriando o velho Heráclito, todo texto é sempre, também, contexto e hipertexto (leitura do contexto) e não há como não ver o cenário histórico de "esquizofrenia coletiva", para usar o termo do Hugo, em que a afirmação de Gabeira se inscreve: a equiparação do stalinismo ao nazismo, a suavização de Mussolini, as reformas ortográficas latino-americanas que abrandam a ditadura e inventam a "intra-dictadura". Os vocábulos vão perdendo, assim, a sua determinação referencial (a linguagem se modifica historicamente) e, nesta indeterminação, nesta ausência de mundo (de linguagem, de referência) compartilhado, a política (que "não passa" da nomeação aglutinadora de reivindicações, como diria Laclau) perde seu chão. E abrem-se as alas para a despolitização, para a substituição da política pela "moral", para o Gabeirismo

Em tempo: pelas razões acima é que tenho algumas restrições quanto a cunhar o projeto do Azeredo de "AI-5 Digital". É evidente que não nego seu caráter altamente autoritário como instrumento de controle absurdo e desmedido, mas acho que nomeá-lo assim enfraquece tanto a percepção histórica do AI-5 quanto a crítica ao projeto.

P.S.: Vale a pena ler, também a Carta-aberta de Maurício Caleiro a Gabeira, escrita em março deste ano.

4 Comentários

Brilhante post.

Um belo exemplo de como a análise - e eventual desconstrução - da linguagem pode e deve ser utilizada de forma política.

Aliás, concordo integralmente com a restrição ao AI-5 digital, sempre evitei usar essa denominação pelas causas que você elenca.

A tempo: obrigado pelo link.


Alexandre,

De fato. Lembro que você disse que ia escrever algo mais aprofundado sobre Gabeira no primeiro post, mas como eu acabei não me contendo, precisava escrever algo - mas o fiz com a tranquilidade de quem sabia que se o amigo fosse escrever algo, certamente, seria melhor do que eu. Vejo que acertei. É espetacular analisar esse fenômeno de alteração do conteúdo semântico das palavras por conta da política ao longo do tempo. Se me permite um adendo, creio que o grande pulo do gato das ideologias despolitizadoras é que elas não podem, de fato, sê-las, pois isso implicaria na eliminação da possibilidade da vida em grupo - eis a Política, a techné, a arte de viver em coletividade -, nega-la teria de passar pelo crivo da negação do grupo, mas não é isso que se deseja, mas sim a instrumentalização dele: A despolitização, normalmente, é uma maneira de transformar uma forma de se fazer política na forma de se fazer política. O totalitarismo.


Que nada Hugão, v. já tinha dito tudo, e ainda completou aqui com precisão: a despolitização é a política atual. A indeterminação das referências e da linguagem política é a nova maneira de manter o status quo. Se antes, o status quo empunhava certas bandeiras, palavras de ordem, hoje, a aliança com o "espetáculo" lhe mostrou que a melhor bandeira é a ausência de bandeiras, é a confusão total dos significantes, onde tudo é monetarizável, onde todas as bandeiras são equivalentes. A despolitização foi capturada na forma de uma meta-política. E, sim, isso não tenho problema em dizer isso: caminhamos a passos longos rumo ao totalitarismo.

Maurício: v. resgatou a sua carta num momento muito propício. Não sei o que houve com Gabeira, acho que o episódio do Severino lhe conferiu uma aura de autoridade com que não soube lidar (a atuação dele no episódio foi louvável, mas a tentativa de acabar com a hipocrisia resultou numa maior ainda: os deputados todos sabiam do método "severiniano" antes de sua eleição, e ajudaram a derrubar o pequeno corrupto - lembram do mensalinho?, o cara cobrava comissão do restaurante da Câmara!!! -, para que, como bom bode expiatório, não aparecesse a corrupção com maiúscula).


Verdade, Alexandre - do jeito que vejo, a vida social está, cada vez mais, tão perversamente atomizada que a vida em grupo torna-se uma ilusão, um pasticho de coletividade, e a ideologia despolitizadora consegue se estabelecer. Nesse contexto, a única 'coletividade' que pode existir é a de rebanho, mesmo.

Eu mesmo me sinto completamente 'ilhado', às vezes. É assustador.


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

Currículo Lattes







Alguns textos

"a posse contra a propriedade" (dissertação de mestrado)

O pensamento do fim
(Em: O comum e a experiência da linguagem)

O perjúrio absoluto
(Sobre a universalidade da Antropofagia)

"o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas":
notas sobre o Direito Antropofágico

A censura já não precisa mais de si mesma:
entrevista ao jornal literário urtiga!

Grilar o improfanável:
o estado de exceção e a poética antropofágica

"Modernismo obnubilado:
Araripe Jr. precursor da Antropofagia

O que as datilógrafas liam enquanto seus escrivães escreviam
a História da Filha do Rei, de Oswald de Andrade

Um antropófago em Hollywood:
Oswald espectador de Valentino

Bartleby e a paixão da apatia

O que é um bandido?
(Sobre o plebiscito do desarmamento)

A alegria da decepção
(Resenha de A prova dos nove)

...nada é acidental
(Resenha de quando todos os acidentes acontecem)

Entrevista com Raúl Antelo


Work-in-progress

O que é o terror?

A invenção do inimigo:
terrorismo e democracia

Censura, um paradigma

Perjúrio: o seqüestro dos significantes na teoria da ação comunicativa

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