Presunção de inocência à brasileira

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O pressuposto que ampara a idéia de que a corrupção é uma via de mão única é certa antropologia pessimista que nos assola desde os primórdios da colonização e que teve talvez sua melhor condensação no hoje esquecido Retrato do Brasil, de Paulo Prado (à época, 1928, um best seller), livro que foi desmontado, ponto a ponto, por Oswaldo Costa no seu "Moquém", coluna que mantinha na Revista de Antropofagia. Provavelmente o ensinamento mais marcante que eu recebi nos meus anos de graduação em Direito foi a enunciação - irônica - deste pressuposto por uma filósofa do Direito odiada pela maioria dos alunos (que, sintomaticamente, preferem homenagear um desembargador aposentado que "provava" que filosofia do Direito não servia pra nada a partir da brilhante constatação de que não existiam Escritórios de Causas Filosóficas...): "no Brasil, não existe presunção de inocência: aqui, todo mundo é corrupto até prova em contrário". É possível aventar, ainda que fosse preciso uma investigação de estilo frankfurtiano pra comprovar, que tal concepção nasce na elite colonizadora (é o argumento de Oswaldo Costa, e temos que lembrar que Paulo Prado pertence ao equivalente dessa elite no século XX): é assim que ela via a "massa" de desterrados, índios, negros e mestiços que aqui habitavam, projetando neles a própria culpa. De algum modo - que, novamente, só uma investigação aprofundada poderia demonstrar como - esta concepção de que aqui é o Mal, ou o abandono de Deus que vige (o Novo Mundo sempre foi encarado de forma ambivalente, tanto como Paraíso, quanto como Inferno), se espalhou por todo o corpo social (é provável que as camadas sociais intermediárias e as dominadas tenham percebido que riqueza e posição social pressupõem jogar o jogo do Diabo, para ficar na metáfora). Hoje, é impossível apontar e criticar alguma irregularidade, algum chamado "desvio ético", sem que alguém retruque que "ninguém é santo", ou insinue que você também apronta lá das suas. É por isso que o "mensalão" adquiriu tamanha importância mediática (e, nesse sentido, foi o verdadeiro erro histórico do PT, talvez mais que a capitulação ao neoliberalismo): ele veio confirmar esta antropologia pessimista, provou que todos dançam com o Diabo. O "mensalão" teve o efeito psicológico de livrar da culpa setores que espoliam a Nação e a Viúva há séculos e que, em transe pela catarse produzida pelos "aloprados", assumiram publicamente esta culpa, que agora podiam estender, sem medo, a toda a sociedade: "Eles, que tanto nos criticavam, são iguais a nós". Como disse, o outro lado da moeda desta concepção negativa do brasileiro como corrupto nato é a projeção da culpa no Estado. Se existe meia dúzias de fraudes no Bolsa-Família ou nos assentamentos de terra, é melhor acabar de uma vez com o renda mínima e a reforma agrária. Se o currículo Lattes da Dilma Rousseff tem dados falsos e o portal de currículos do CNPq abriga um currículo forjado do Galvão Bueno (dois no universo de um milhão), é preciso criar mecanismos de controle e não punir os estelionatários. Quando todo mundo é corrupto por princípio, então todo mundo tem que arcar com os crimes cometidos pelos poucos corruptos de fato.

8 Comentários

Nodari, quando o Protógenes começou sua fala aqui na UFSC, ele trouxe algo que te traz um dado interessante. Logo de início ele começou a falar sobre a colonização do Brasil. Pensei comigo: lá vai ele colocar a culpa no passado ou na origem... Contudo, enquanto todos estavam esperando que ele falasse sobre como "desde os tempos da colonização o Brasil é corrupto, etc, etc", ou "esses males vên de muito tempo" ou que são da "origem ibérica maldita", o Delegado começou a falar da grande quantidade de Governadores gerais que foram processados pela Coroa portuguesa por corrupção e que logo após serem condenados tiveram seus bens confiscados, inclusive aqueles dos descendentes. Trazendo nomes inclusive. Poucos esperavam algo assim, obviamente. Ainda que o discurso dele não tenha tido um rigor mais acadêmico (acho que mesmo sobre esses dados), seria interessante dar uma olhada nisso. Não tanto como prova, pois acho que tua fala sobre a corrupção não exige isso, mas é um recurso retórico muito interessante contra o lugar mais comum que existe quando se fala dos problemas do Brasil: de pronto caem na colonização, etc.
Um abraço


E não temos, assim, a junção do cinismo com a sociedade de controle? De um lado, a fragilidade da regra em função do seu esgotamento como valor normativo; do outro, as remediações que só podem existir no domínio do abstrato, do universal: as massas como um princípio e uma finalidade, mesmo que o sentimento do coletivo não vá muito além de uma construção midiática. O que mais preocupa, no final, é que o pensamento seja apenas um artifício para justificar o estado das coisas, e não para superá-las.


Alexandre,

Esse fenômeno tem lá suas raízes num pensamento português medieval, algo como um reflexo de uma doutrina agostiniana já absorvida pelas massas enquanto senso comum, mas só toma a forma embrionária quando essa concepção primitiva se choca com a dinâmica econômica do Brasil colônia - a insuficiência do sistema em prover recursos suficientes segundo as regras, uma lógica de controle bastante rígida e o consequente "sistema paralelo" que se forma desde os primeiros dias (o contrabando de tudo que essa terra produzia, incluso de gente, a sonegação de impostos, o desvio de recursos etc).

De lá pra cá o sistema punitivo sempre funcionou como um estandarte da virtude agostiniana ao mesmo tempo incongruente com a dinâmica de uma sociedade tão complexa quanto a nossa. Seja em relação aos tributos ou ao funcionamento econômico local, esse sistema é uma poderosa arma de controle: Eu crio um sistema tributário injusto que eu tenho poder para burlar, mas os outros não. Se um aliado meu sonega, caso ele me traía, eu seletivamente o denuncio.

Em cima dessa ambiguidade ética em que se constrói o Brasil, o "todos são corruptos" é um instrumento de catarse para aplacar o irracional sentimento de culpa em relação às pequenas e cotidianas burlas feitas contra um sistema legal insuficiente em si mesmo ao mesmo tempo em que também serve como instrumento de conformação em relação ao status quo.

P.S.: O debate sobre o ensino jurídico no Brasil dá pano pra manga. Em São Paulo, aliás, ele é bem pior do que no Sul, basta ver como funciona o nosso Judiciário...


Muito interessante a discussão. Um sociólogo que vem trabalhando em sentido crítica essa idéia de corrupção brasileira é o Jessé de Souza. E também me lembrei de um livro chamado "Ensaios em Anticriminologia" na qual Vicenzo Ruggiero compara os italianos e ingleses em relação à percepção da corrupção, mostrando como os segundos conseguem maquiar bem sua autoimagem, embora também corruptos.
(escrevi algo a respeito em http://somepills.blogspot.com/2009/05/corrupcao-nao-e-questao-central-you.html)

O livro do Safatle e a questão do cinismo também parece estar bem evidente, como salientou o Rodrigo. Uma vez fiquei pensando nisso:

"AXIOMA DO CONSERVADOR DIREITISTA

Meus ideais não são melhores: meu objetivo é provar que não fazes o que pregas, é provar que tu também é um canalha."


Agradeço a todos pelos comentários que, mais uma vez, expandiram o assunto. Moysés: agradeço as indicações e quanto ao Axioma, lembraria do fantastico Perfil do direitista tupiniquim, em dez traços, feito pelo Idelber. Concordo com o que o Rodrigo aponta: o cinismo fomenta a sociedade do controle. Falando nisso, se o Clube de Leituras sobre o Extinção der certo, proponho que discutamos, em breve, o Cinismo e falência da crítica, do Safatle. Dávila e Hugo: ambos me deram ótimos elementos, fáticos e teóricos, pra repensar o que penso. Infelizmente, como disse no post, pra conseguir entender direito as "origens" desta antropologia pessimista, seria preciso uma investigação aprofundada que não tenho condições de levar a cabo. Abraços


Alexandre, "Cinismo e falência da crítica" é muito bom livro. Não posso me comprometer com esse debate do "Extinção", mas o livro do Safatle eu já conheço, e seria ótimo debatê-lo aqui.


Rodrigo: então fica pré-combinado. Vamos ver se o debate do Extinção funciona; daí tocamos ficha no livro do Safatle. Abraço


tb tô dentro do debate do Safatle


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

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"a posse contra a propriedade" (dissertação de mestrado)

O pensamento do fim
(Em: O comum e a experiência da linguagem)

O perjúrio absoluto
(Sobre a universalidade da Antropofagia)

"o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas":
notas sobre o Direito Antropofágico

A censura já não precisa mais de si mesma:
entrevista ao jornal literário urtiga!

Grilar o improfanável:
o estado de exceção e a poética antropofágica

"Modernismo obnubilado:
Araripe Jr. precursor da Antropofagia

O que as datilógrafas liam enquanto seus escrivães escreviam
a História da Filha do Rei, de Oswald de Andrade

Um antropófago em Hollywood:
Oswald espectador de Valentino

Bartleby e a paixão da apatia

O que é um bandido?
(Sobre o plebiscito do desarmamento)

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(Resenha de A prova dos nove)

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(Resenha de quando todos os acidentes acontecem)

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