Para Alexandre, meu amor.
Meu contato com Hélio Oiticica decorreu de certo gosto pela marginalidade e de uma paixão romântica pelos bandidos e os "fora da lei". Ainda na dissertação de mestrado, sob orientação do professor Carlos Capela, Oiticica figurou como um contraponto para a literatura marginal que vem se produzindo no Brasil. No doutorado, a pesquisa sobre Hélio já não era apenas um contraponto, mas também uma fissura. Esta fissura só pode ser atribuída as "políticas canibais" - apropriadas do meu orientador, Raul Antelo, que lembra dos múltiplos significados do termo: a perda do objeto como desbordamento, mas também como resto e abjeção; a fissura como acontecimento que se escreve na própria carne, que compromete o corpo e que se desdobra. Conseqüentemente, essa fissura acarretou, para mim, a marca de uma subjetividade fissurada, cindida e não toda, e se deu, sobretudo, quando li em Oiticica: "a fundação de uma obra não é a produção infinita de objetos: é a formulação de uma possibilidade de vida". Esta definição operou como uma metamorfose, como um acontecimento que se inscreveu no meu corpo e no corpo do texto numa vontade de cosmografia, como apontou Hélio em relação ao trabalho de Vergara. Desdobrar, redobrar e levar a sério esta definição de arte foi o que tentei fazer nesta tese que defendo hoje.
O conceito de acontecimento é central na tese para pensar Oiticica como um inventor de acontecimentos. Para tanto, lancei mão da noção de síntese-disjuntiva que atravessa as produções dos happenings que começaram a irromper nos anos 60. A criação de outros ambientes, espaços heterotópicos de justaposição, intensificavam as sensações no intuito de retirar os corpos de uma anestesiante estratégia ditatorial. Hélio, então, quis concentrar seus esforços neste princípio do fim, o apocalipse, na produção de experiências. Era no corpo a corpo, na simultaneidade das proposições, e não menos na simultaneidade de mundos que eram criados pelos participantes, e na simultaneidade de existências que eram vislumbradas nos Ovos de Lygia Pape, no "combate-entre", para usar um termo de Deleuze, que se apossa das forças somando-se a elas num novo devir, que a hipótese de Apocalipopótese foi lançada. Este acontecimento não deixa de ser um esforço cosmológico e político de Oiticica e Rogério Duarte que envolvia a loucura e a cultura de massas em uma apropriação vital e limite. O encontro entre fim e começo, entre morte e vida, atravessados pela experiência da loucura, apresentaram uma política de sobrevivências, uma política da insistência. Ou ainda, especulações metafísicas guiadas pela curiosidade e pela aventura. A experiência, segundo Hélio, livra-se do seu caráter laboratorial de testes que produzem um resultado científico comum para todos, e passa a ser uma relação radical com um mundo de subjetividades singulares e impessoais abrindo a hipótese de destruição do mundo a um devir-mundos. Neste sentido, mais do que um combate contra o juízo de deus, Apocalipopótese era uma tentativa de "acabar de vez com deus e o juízo" (Deleuze. Crítica e Clínica). Assim, poderíamos dizer sem titubear que Hélio era um "desajuizado", ou melhor, que ele propunha um modo de existência "sem juízo". Se a opção era entre cultura e loucura, como ele dizia, então, estava em jogo ali a questão civilizatória.
Para compreender esta crítica, que era um verdadeiro "programa além da arte", foi preciso inventar mapas conectivos do arquivo de Oiticica. Subterrânia foi um dos caminhos que escolhi para percorrer e montar uma crítica ao desenvolvimentismo. Para dar consistência a este conceito precisei mobilizar uma série de elementos que compunham além dos trabalhos, o percurso pelo mundo feito por Oiticica. As capas feitas no corpo, a noção fantasmática e da poeira do sub, a sua obsessão pelo O Inferno de Wall Street de Sousândrade, o rechaço de Garcia Lorca, a eleição de "subsisto", retirada de Colidouescapo de Augusto de Campos, que se juntariam à leitura d'A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord na composição de uma política subterrânia. Esta implicava atividades clandestinas e a formação de um campo de imanência que tirasse a economia (libidinal e política) do campo da transcendência. Em um gesto que recupera a terra, como no seu contra-bólide "devolver terra a terra", pude vislumbrar o que Eduardo Viveiros de Castro vem propondo como "reenvolvimento cosmopolítico". A atualidade do pensamento de Hélio, no entanto, não deriva exclusivamente de uma continuidade atualizada que tracei na tese, embora ela seja absolutamente sintomática. Antes, mostra que sua proposta, a proposta que rolava na atmosfera tropicalista de repensar vigorosamente a cultura, isto é, o processo civilizatório, diferenciava-se da pauta que outrora (e ainda hoje) se apresentava entre direita e esquerda explicitando, assim, que mais do que posições políticas de um lado ou de outro, a subterrânia pensava camadas de mundos horizontais. Forças intensivas e diabólicas que ao invés de separar as especialidades - ecologia, economia, cultura, por exemplo -, reenvolvia-as em um pensamento cosmopolítico, cosmococas, que surgia na planta do pé, no corpo. Para mim, Oiticica parece que veio do futuro, pois é possível colocá-lo na pauta política que, ainda hoje, anuncia um processo de aniquilação de mundos com uma série de mega-projetos que ameaçam e extinguem modos de vidas que não coadunam com a política desenvolvimentista. A clandestinidade e o grito reaparecem como meio de rearticular o contato com um mundo perdido do qual falava Flávio de Carvalho. Contudo, não se trata de um saudosismo, o mundo perdido é o que foi deixado para trás e dado como superado na escala evolutiva e limpa do progresso. Subterrânia é, assim, o procedimento crítico que implica tomar o subdesenvolvimento como um sintoma, e mais ainda, como um método de saber-fazer com o sintoma que não deve ser curado como uma peste, mas inventado na multiplicação das diferenças. Neste sentido, a insistência da subsistência ou da sub-existência, revela que é preciso resistir em um exercício de teimosia que não afirme a conservação, mas que insista na transformação. É por este caminho que pude perceber que a arte, enquanto criação de possibilidades de vida, atua em duas frentes: da resistência e da metamorfose. Toda arte teria, portanto, um Programa Ambiental dos Parangolés capaz de inventar mundos.
Em 1963, Hélio já deixava claro do que se tratava a arte: a experiência com o objeto continha a possibilidade de transmutação do espectador criando outras maneiras de ser. Para tanto, foi preciso que Oiticica desse ênfase ao conceito de participação e ao processo de criação deste participador, passando também por uma reformulação do conceito de objeto. Já não mais importava o que era ou deixava de ser um objeto de arte, mas sim a experiência e a relação que era possível manter com este. Esta experiência exigia um estranhamento no confronto com o espelho, ou ainda, no confronto com a civilização, uma desabituação, uma mudança dos hábitos. Não por acaso, Hélio denominará os Parangolés e as homenagens a Cara de Cavalo como anti-cultura e dará um passo além em relação ao conceito de participação entendendo-a como incorporação e possessão. O capítulo sobre os Parangolés talvez seja o mais ambicioso da tese porque tomei para mim o desafio lançado por Hélio em um texto de 1964, no qual dizia que era preciso pensar uma ontologia das capas: "resta talvez uma procura da definição de uma 'ontologia da obra', uma análise profunda da gênese da obra enquanto tal". Tornou-se ainda mais ambicioso quando percebi que, para elaborar esta ontologia dos Parangolés, eu precisaria necessariamente pensar o conceito de ficção. O Estádio do Espelho de Lacan, cuja publicação é contemporânea às formulações dos Parangolés, foi um dos pontos de partida para que esta tarefa fosse empreendida. Ao lado deste, algumas releituras de Freud feitas por Oswald de Andrade também foram destacadas para pensar o que o antropófago chamou de "estados de ficção". Ali, a alienação (a loucura) reaparece como formação do sujeito que se abre para a incorporação do ambiente, do mundo e do outro através do mimetismo. Mas não só, não é o sujeito apenas que cria o objeto, o ambiente, o mundo e o outro, ele é criado também por estes a ponto de se confundir com eles. O corpo destes sujeitos parangolísticos que Oiticica apresenta é um corpo extensivo e intensivo. Um corpo do tamanho do mundo.
Esta alienação, no entanto, significa que há uma perda - o que torna possível a relação -, que cria a falta através da qual é possível desejar e se metamorfosear. Neste sentido, o eu nunca é total e único, senão coletivo, um devir-outro. Foi com a proposição do suprasensorial que ficou mais claro o que tentei explicar como uma crítica à cultura. Ali, se estabelece uma passagem da cultura ao sensível, uma vez que Oiticica pensa em termos de transmissão, isto é, não se trata de ensinar, de conscientizar, mas de transmitir experiências. E esta passagem tem conseqüências profundas para pensarmos o mundo, porque se a levamos às últimas conseqüências teremos ao invés de um "Ministério da Cultura, os Mistérios do Sensível" (roubado de um tuite de Eduardo Viveiros de Castro), ao invés dos corpos determinados biologicamente, corpos selvagens atravessados pelas experiências, ao invés do inconsciente freudiano, o consciente antropofágico do sexo e do estômago, e o consciente ético da alteridade.
Em 1973, os Parangolés são redefinidos por Hélio e a performance passa a ser a forma por excelência das suas proposições. Ele a define como travestimento e os Parangolés passam a ser incorporação. Neste momento, o conceito de ficção se amplia: já não se trata mais da sua indiferenciação com a realidade, mas da incorporação e invenção de novas realidades. De modo que a arte não seria apenas ameaçadora da ordem, mas capaz de fazer incorporar e inventar novos mundos e modos de vida. Um "auto-teatro" descentrado dos papéis sociais, um auto que é incorporação do outro, que leva a realidade e o corpo ao limite dos mundos, ao contato com outros mundos. Esta contestação pelo experimental de uma cosmovisão restrita por uma série de determinações era o objetivo das vivências mágicas dos Parangolés, cuja ontologia, concluí, não poderia ser outra senão a da devoração dos mundos e do outro. Cosmovisões que se desdobrarão nas Cosmococas.
Nestas, Hélio arma uma poética da fragmentação radical com seus procedimentos de não-narração, com a utilização da gilete e da navalha que faziam das imagens projetadas nos cosmos criados por Cosmococas, instrumentos capazes de libidinizar os corpos. Com o uso da cocaína, a fissura se apresenta como uma força de ação e como lugar de intervenção. As frestas dos corpos, o corpo dilacerado, são as formas perversas de intervenção da arte: o festim canibal da baba antropofágica de Lygia Clark. A cocaína era também a promotora de mundos simultâneos, da extensão dos corpos ao mundo e das coexistências. Ao seu uso, Oiticica atribuía uma saída da vida do trabalho e da competição porque os modos de vida não precisam ser superados, eles coexistem. A prima, como Oiticica chamava a coca, era a alienação nas imagens das infinitas experiências simultâneas. Experiências que eram uma aproximação entre vida e morte, a transmutação do corpo em outra coisa. Nas Cosmococas, Hélio atenta para os perigos da identificação com a imagem. Aí está a importância dos seus cortes e da não coincidência entre corpo e imagem que só poderia se apresentar enquanto movimento, enquanto força que tiraria os corpos da constância e da consistência da identificação que é a base de todo autoritarismo. Assim, as imagens das Cosmococas ganham a força pulsional que torna os sujeitos inconstantes e proporcionam o contato entre os mundos. Mas, ao mesmo tempo, o circuito pulsional é capaz de aprisionar os sujeitos em um gozo mortífero. O corte, neste sentido, a "per-versão", como queria Hélio, seria o meio para operar uma desmontagem, para mudar o caminho, para curto-circuitar a repetição neurótica. Este corte, que também institui a falta, o objeto perdido destacado do corpo pela lâmina libinal lacaniana, a relação com a Coisa freudiana, é o espaço por onde emerge o desejo. Daí que não se possa identificar corpo e imagem porque isto implicaria o sufocamento do desejo do outro. Nesta relação com a Coisa, a posição feminina aparece com o uso das máscaras que destituem a pretensa unidade e totalidade dos sujeitos para fazê-los devir enquanto travestis, enquanto outra coisa que não eles mesmos. Daí talvez a opção de Hélio por um "quase-cinema", uma formação mais que uma forma, que não é outra coisa senão a iminência. Abrir espaços, criar vácuos, criar descontinuidades, avacalhar são os procedimentos das Cosmococas que instituem lugares vazios enquanto pura virtualidade, enquanto puro vir a ser. Frestas cortadas pela navalha para que seja possível visualizar pontos de luz, animar as imagens e multiplicar os corpos.
Os três eixos da tese, Subterrânia, Parangolés e Cosmococas, articulam a arte, o corpo, a vida e o mundo como desdobramentos das sobrevivências das hipóteses apocalípticas. Se não há fim do mundo anunciado, se ainda temos futuro, é porque podemos construí-lo e pensá-lo no presente para além de uma linha progressiva e vertical. O que defendo nesta tese é que Oiticica deixou como lição, ou melhor, como "fios soltos", nos seus procedimentos, conceitos que se opõem à concepção linear e evolutiva do capitalismo. Ou mais precisamente: que os lampejos das experiências que podem surgir da relação com a arte suscitam acontecimentos capazes de inventar outros mundos e possibilidades de vida. A arte é, portanto, o nosso pouco de possível sem a qual sufocamos.