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I - OS GATOS DE ROMA

O sorriso inicial do Império Romano


Há sempre turistas sul-americanos que querem caiar de branco as velhas fachadas de Roma. A população turística, no momento em que escrevo, é quase exclusivamente americana do norte, havendo poucos ingleses e franceses. O turista é sempre tratado com a maior deferência porque ele traz para o país uma das suas maiores rendas e a amabilidade italiana se concentra e se dirige sempre rumo à sua majestade turista. Até a gasolina para o turista custa menos que para o italiano.

Um carro com uma chapa USA, pintada em letras bem grandes pode cometer as maiores barbaridades contra os regulamentos de trânsito sem ser molestado e certamente sem ser multado.

Guiei um carro nestas condições durante algum tempo e nunca se quer me perguntaram pela minha licença e os documentos, pois não os tinha.

Roma é conservada rigorosamente limpa, por dentro e por fora. Mesmo nos locais mais humildes, a população sadia, bem vestida, tem a beleza e o porte da estatuaria do Império Romano, e a todo o momento cruzamos com homens e mulheres que poderiam estar nas páginas da história há 2000 anos atrás. Não há mendigos e nas ruas asfaltadas não se vê um buraco e contudo os romanos reclamam sempre.

Vestígios de um sorriso antigo são vistos fora da estatuaria, nos seres vivos que se locomovem por toda a parte. É o célebre sorriso da civilização arcaica, importado pelas invasões gregas 700 anos antes de Cristo. É o mesmo sorriso encontrado nas cariátides dos Tesouros dos Sifinianos, nos Kuros de Kalybia e Melos, nos Kuros de Thera da Escola Jônica, na Kora do Erecteion e na Nikeia alada de Delos. Esse importante sorriso já existia no início do arcaico e a sua influência na península torna-se preponderante, marcando a expressão do habitante através de milênios e se distribuindo em diversas formas pela escultura e pela pintura. O próprio sorriso da Mona Lisa, de Da Vinci, é um derivado do importante sorriso arcaico e se associa tanto ao sorriso feminino da célebre Kora, do Museu da Acrópole, como ao sorriso masculino do Kuros, de Kalyvia. Da Vinci se utilizou de um homem como modelo para a sua Gioconda e não da mulher Mona Lisa e no Museu do Louvre encontramos esse fato bem comprovado quando observamos as diversas obras de Da Vinci, lá expostas.

Todos os sorrisos que permaneceram na história da Itália e ainda hoje encontrados na península são derivados do famoso sorriso arcaico provenientes das invasões gregas. É importante notar a parte enigmática desse sorriso que parece ter alguma ligação com a expressão dos lábios do Fênix, dos fenícios, e que esta expressão parece ser um fator comum da orla do Mediterrâneo e do mar Adriático ou mais precisamente da orla do Império Romano.

Se assim for estabelecido, o sorriso arcaico seria um sorriso inicial do Império Romano como também seria o primeiro sorriso do Ocidente, inteiramente formado pela influência cultural do Império Romano.

É interessante notar que esse sorriso se conservou na sua forma bruta primitiva na orla dos mares internos, tendo-se aperfeiçoado somente com a sua penetração no Ocidente. O aperfeiçoamento consiste em burilar o sorriso, em patiná-lo, em torná-lo menos agressivo conservando a sua feição enigmática.

Há influência desse famoso sorriso, a fundo, em toda a Europa; o sorriso é encontrado petrificado tanto na Alemanha como na Inglaterra, como na França e constitui a sobrevivência mais atraente da escultura na formação cultural européia.

O italiano explora intensivamente a menor peça arqueológica e faz com que a grandeza do passado se encontre sempre onipresente. A importância do passado é a importância de Roma, todas as camadas históricas se encontram representadas na capital do cristianismo, Roma é um livro de história que apresenta em forma ainda viva as circunvoluções de uma nação desde o começo. A cidade toda é um gráfico demonstrativo e de grande beleza sugestiva da vida e dos desejos da nação. Foi ela o epicentro que propagou os abalos e os temores de um império que se estendia, elipticamente, em redor. O anel elíptico do Império Romano, sem interrupção, adquiriu a sua morfologia como conseqüência das pressões culturais sofridas pelas invasões etruscas, gregas, fenícias, celtas e ilyrias, de 500 a 800 anos a.C. A forma elíptica do Império Romano é uma reação às invasões culturais guiadas pela fisionomia do Mare Internum (Mediterrâneo) que tem a forma elíptica.

Fechar a elipse era tão necessário ao Império quanto contornar uma cidade antiga com um muro alto sem interrupção a fim de atender à sua defesa.

Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 6 de janeiro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera

 



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.