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XII - OS GATOS DE ROMA
O primeiro chefe e a floresta

O Chefe teria sido, no início, o melhor bailarino, porém, esse elemento só surgiria após o primeiro Soluço, ou melhor, o primeiro Chefe seria aquele que teria proferido o primeiro Soluço. A formação do Chefe e das hierarquias se processa no seio da floresta, porque as forças que levaram ao aparecimento do Chefe eclodiram na floresta e são funções das condições da floresta e dos primeiros grandes acontecimentos dentro da floresta, e que são: a Descida da Árvore, o Bailado do Silêncio, o Soluço e a Lágrima, a Simulação e a Mentira, a Marcha Hesitante e o Samba.

O Samba aparece após a Marcha Hesitante e pode ser considerado como uma tentativa frustrada da volta ao Bailado do Silêncio, tentativa essa, talvez, ligada ao tédio da monotonia do Soluço; o tédio traria uma reversão perigosa ao antiqüíssimo estado de tristeza. É o Samba um acontecimento que aparece em virtude da grande elasticidade retroativa que leva o homem de regressão à força tradicional do Bailado do Silêncio.   

O advento de um novo movimento no pré-homem que deparava com o mundo da floresta ao rés-do-chão, isto é, um mundo que oferecia Visão Geográfica pela locomoção, traria não somente a primeira concepção de Chefe, mas também os primórdios da estrada e da direção e a noção de pontos de referência. O estado de ser Chefe é uma condição essencialmente humana e por isso o advento do Chefe só pode ter-se processado como conseqüência de uma origem dinâmica proveniente do próprio homem. É a sua própria imagem aquilo que mais perturba o homem no começo. O homem primitivo mesmo, como acontece com o histérico de hoje, só apalpa o mundo objetivo através do seu próprio corpo.

Admitindo, a priori, que o Bailado do Silêncio tivesse como origem dinâmica o galho da árvore, a hierarquia de um chefe, muito provavelmente, só teria surgido na superfície dos acontecimentos após o Bailado do Silêncio e juntamente com o advento da Marcha e do Samba. Tanto a Marcha como o Samba têm a origem dinâmica no próprio corpo do homem, surgindo do Bailado do Silêncio logo após o primeiro Soluço. O Soluço, pelo hipnotismo, provocou a repetição e a intimação, possibilitando a criação de uma hierarquia e de um Chefe.

Cabia, pois, ao melhor bailarino a posição de chefe, e o melhor era aquele que conseguia, pela expressão dos seus movimentos, hipnotizar o seu semelhante e fazer com que este o imitasse. A imitação do chefe é o primeiro reconhecimento público da sua hierarquia superior e se processa da mesma maneira pela qual os animais de uma tropa ou rebanho imitam o animal que vai na frente e conduz a tropa e sem o qual a tropa perderia. Através da história observamos que a grande preocupação do séquito dos Chefes é a de imitar o Chefe e esta preocupação tem como símbolo maravilhoso o Bobo do Rei, que imita o Rei em todas as ocasiões e de todas as maneiras.

A imitação, diz Pierre Janet, marca os primeiros atos sociais do homem. Acredito que a imitação provocada pelo hipnotismo do Soluço e o início da Marcha Hesitante dentro da floresta seja o importante acontecimento que precede o Homo Socius e possibilite o seu advento, porém a eclosão do Homo Socius, propriamente, se daria fora da floresta e com o início do escalamento das rochas escarpes e da formação da cidade. O certo é que a imitação é um atributo essencialmente primitivo.

É possível admitir que os primeiros Chefes tenham aparecido mesmo durante o Bailado do Silêncio, porém, me parece pouco provável que uma hierarquia, coisa tão humana, se formasse de movimentos oriundos do galho da árvore. A origem dinâmica do Chefe deve ser humana e se encontraria mesmo dentro do Soluço que é o primeiro desejo de Visão Geográfica.

O Gaguejo é um produto do Soluço e é também o primeiro esforço para articular sons. Gaguejo e Soluço são ambos formas de Mentira e Simulação, formas de defesa para permitir que o homem possa desenvolver Visão Geográfica abrindo a sua estrada. O ato de abrir estradas é uma conseqüência dos primeiros Bailados, da Marcha Hesitante e do Samba.          



Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 31 de março de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.