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XVIII - OS GATOS DE ROMA
Atrás da linguagem

A floresta abrigou adequadamente o homem e a sua sobrevivência é considerada um acontecimento extraordinário.

O mundo antes da linguagem articulada era um mundo de Defesa Passiva. O primeiro Soluço sincronizado à Marcha Hesitante marca o início de esboço da linguagem articulada como também os primórdios da Defesa Agressiva. A vocalização Uh-uh-uh-uh, de sons interrompidos, proveniente do primeiro Soluço e significando o Não, é a primeira mostra de Defesa Agressiva. São os primeiros sintomas do Homo Socius a vir. O Homo Socius é um produto da linguagem articulada e da cultura, é um ser gregário com tendências a gostar do contato com o seu semelhante e que exerce como comportamento a Defesa Agressiva. Essa Defesa Agressiva deve, pois, ter aparecido com o aparecimento da linguagem isto é há um milhão e quinhentos mil anos atrás.

No período de Defesa Passiva, atrás da linguagem, o homem evitava o seu semelhante como também o perigoso mundo animal, o homem fugia ao contato do mundo, contudo a sua manifestação vocal era uma de aquiescência e de aprovação do mundo. O homem emitia a vocalização ligada e sem intervalos do tipo ahahahah que era o Sim primitivo e passivo situado antes do Não agressivo. A vocalização entre-cortada por intervalos Uh-uh-uh exprimindo o Não se identifica com a manifestação de animais que latem como o cachorro e que não estão de acordo com um acontecimento ao lado.

Após a Descida da Árvore, o antepassado do homem tinha que resolver um grave problema vital, o de enfrentar as feras de grande porte e todo o seu comportamento para com o mundo animal ao qual estava intimamente ligado e para com o seu semelhante se manifesta como conseqüência dessa situação e analisando esse comportamento encontramos todos os gestos e todas as atitudes pertencentes à categoria Defesa Passiva, encontrados também nas manifestações da criança recém-nascida.

O dom mais importante do homem situado atrás da linguagem, do homem privado do som articulado é o de adivinhar o pensamento do seu semelhante e o pensamento dos animais que o contornam.


No Começo, o homem sem linguagem é essencialmente um emotivo e um perito na leitura do pensamento. A leitura do pensamento se intensifica para compensar a ausência de linguagem.

Possivelmente este dom telepático teria dado origem ao animismo provocando uma carícia sobre o mundo objetivo e provocando um mimetismo que mais tarde faria do Homo Socius um ser eminentemente social e gregário. Semelhante pantomina dramatizava a inteligência inarticulada.

Esse antigo dom telepático entre o homem e o mundo animal é ainda exercido hoje pelos animais que não tem linguagem com o intuito de se comunicar com os homens e estes animais adivinham o pensamento do homem.

Por outro lado o medo hereditário que a criança de dois anos, com consciência mal formada e de curta duração, tem por gatos e cachorros e outros animais, antes mesmo de ter motivo para ter medo, é uma demonstração da maneira pela qual a criança, antes de saber falar, adivinha o pensamento do gato e do cachorro, reproduzindo pela sua ação um período perdido no Começo onde havia um convívio maior entre o homem e o mundo animal e onde o homem exibia um comportamento especial para sobreviver ao perigo da fera de grande porte. Todos os povos primitivos, mesmo os de hoje exercem com grande pericia esse dom de adivinhar.

Toda a atuação do homem antes da linguagem articulada se manifesta por gestos e por sons inarticulados que significam a aprovação do mundo. Essas manifestações são de natureza kinesica onde os gestos de associam às vocalizações numa euritmia de Defesa Passiva.

O homem atrás da linguagem e que emite gritos, grunhidos, murmúrios, cochichos, lamentos e nasalizações, também estica o dedo, pisca o olho, levanta a sobrancelha, movimenta os braços e sacode a cabeça acompanhada por um dedo admoestador.

O seu período de motilidade é curto, a maior parte do tempo ele passa dormindo, mesmo como acontece criança recém-nascida. O seu sono parece ser uma imposição das condições da floresta, das condições de penumbra e do efeito hipnótico conseqüência da repetição sucessiva das formas e dos pontos luminosos. As condições técnicas da floresta promovem a sobrevivência do homem, camuflando-o no suicídio diário que é o sino ou na morte aparente que ele exibe. Tanto o suicídio como o sono tem como causa motriz a sensação de inferioridade gerada pela falta de consideração do mundo exterior.

A natureza dava ao homem do Começo um sono prolongado como o da criança nova para que, exibindo o aspecto rígido da morte, ele pudesse se defender contra as feras de grande porte. Às vezes esse aspecto rígido é acompanhado de suspensão da respiração como acontece no mecanismo de defesa passiva da criança nova.

O caçador alemão Th-Zell supõe que foi graças ao sono que o homem primitivo pode viver nos territórios povoados de animais ferozes, conseguindo, no entanto, escapar. Em geral os grandes carnívoros são todos noturnos e só a imobilidade realizada pelo sono dava ao homem encolhido dentro de um buraco ou em cima de uma árvore, uma proteção adequada.

Landenheimer acha que o sono é um suicídio “ersatz” que aparece na forma de um automatismo anti-suicida. Claparède acha que todas as funções de defesa são antecipantes: “... a pupila se contrai antes que o raio luminoso tenha ofuscado a retina, a tosse desabrocha antes que o corpo estranho tenha atingido os brônquios... a fome e a sede também se antecipam: na realidade comemos e bebemos muito antes de estar no ponto de morrer de inanição ou de desidratação...”

O estado prolongado de sono do homem antigo se identifica e se associa com o estado de transe e de semi-hipnose em que se encontra o homem capaz de adivinhar o pensamento do semelhante e dos animais.   

A capacidade de adivinhar é um estado altamente emocional encontrado com freqüência no primitivo, no alienado, na criança, nas mulheres e nos animais e que manifesta tanto mais agudo quanto mais antigo é o homem e mais privado ele é da linguagem articulada.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 19 de maio de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.