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XXXVI - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
O sorriso e o trimestre bobo



As duas Poses da abertura ingerente do aparelho digestivo, a boca aberta e a boca fechada teriam determinado os dois sons fundamentais da linguagem; as vogais e as consoantes.

As vogais dominam toda a extensão do Trimestre Bobo ontogênico e filogênico, contudo os primeiros vestígios do advento de um novo som aparecem com o advento do primeiro Sorriso e isto se dá em pleno “Trimestre” Bobo da criança e do homem.

Na criança o primeiro sorriso aparece na quarta semana e na evolução do homem o primeiro sorriso teria surgido há um milhão novecentos e cinquenta e três mil e quinhentos anos atrás (base de cálculo já fornecida).

Por ocasião do aparecimento do Sorriso não há manifestações de riso. O sorriso é muito anterior ao riso, este só surge no oitavo ao décimo mês de vida. O primeiro sorriso aparece na criança e na evolução do homem no momento espetacular em que a criança e o homem em estado de evolução, pronunciam a consoante G; isto é, pronunciam a primeira consoante.

A criança e o homem no período bobo, com bocas abertas, esticam horizontalmente os lábios provocando o fechamento parcial da boca e esboçando desta maneira o primeiro sorriso e proferindo a consoante G.

Este sorriso e esta consoante, aparecendo cinquenta e cinco mil anos antes de se iniciar o período esquizofrênico do Medo, no fim do primeiro terço do Trimestre Bobo filogênico, termos isolados no meio das vogais e da boca aberta do Trimestre Bobo, são os primeiros indícios das futuras consoantes e do Ponto de Atividades Articuladas a vir que na criança aparece aos dois anos e na evolução do homem no fim do período do Medo e no início da Descoberta da Imagem do semelhante.

O primeiro sorriso deve ser considerado como o primeiro vestígio de uma futura articulação da linguagem.

O fato da consoante G aparecer intercalado no Trimestre Bobo não indica um desenvolvimento de consoantes nesse Trimestre, o desenvolvimento de consoantes só se iniciaria após o Trimestre Bobo com o início da sensação de força gravitacional, consequente do som grave, com o início do Soluço e do gaguejo e da Marcha Hesitante, os primeiros sintomas de Medo que mais tarde conduziriam o homem rumo à Visão Geográfica e rumo ao Ódio.

Durante a sua passagem pelo Trimestre Bobo filogênico, o homem abandona por um momento apenas o seu Monólogo da Fome a fim de pronunciar uma consoante e sorrir. A causa desse abandono seria indeterminável; talvez uma primeira rajada de frio teria cortado o calor intenso do “Trimestre” Bobo provocando uma batida de queixo.

O primeiro sorriso, apesar de se processar num período onde não há medo, já exibe na sua dinâmica alguns dos sintomas de medo do futuro período esquizofrênico do Medo e mesmo os sintomas do gaguejo como ele aparece hoje. Medo e gaguejo se identificam e se confundem na filogenia e ambos têm como manifestação prototípica o Soluço originado logo após o Trimestre Bobo filogênico, uma consequência do abandono do Samba e da nova Tristeza que se aproximava gerando a Marcha Hesitante.

Os tremores da musculatura do abdômen, dos lábios e da mandíbula encontrados ainda hoje em certos casos de gaguejo, são resíduos do primeiro sorriso ao pronunciar a consoante G e das suas posteriores consequências articuladas  do início do Ódio.

Alguns dos sintomas do medo se aproximam dos sintomas do gaguejo tanto na criança como no homem, mormente no que se refere ao ritmo da respiração, o ritmo clônico com os seus bloqueios e solturas curtas da respiração a intervalos regulares ou o ritmo tônico com o bloqueio prolongado. Outros são o fechar dos olhos, o aperto dos lábios, o pranto, a mão em formato de garra, todos se resumindo numa contração geral da superfície do corpo e dos músculos.

O importante fato do primeiro sorriso esboçar-se antes da formação esquizofrênica do Medo é uma indicação evolutiva de que ele tomará parte dessa formação de Medo e coloca o sorriso não somente como uma manifestação de defesa passiva como o Medo o é, mas também como uma primeira manifestação de defesa passiva.

O sorriso deve ser interpretado como um início de mecanismo de defesa em preparo ao futuro aparecimento intensivo de consoantes e da linguagem articulada e como uma primeira manifestação de simulação. O sorriso é o primeiro indício de uma futura Pose que será ostentada pelo homem na sua importante viagem esteriotipada pela vida.

A simulação apresentada em primeira mão pelo sorriso será um desenvolvimento intensivo após o Trimestre Bobo ontogênico e filogênico e durante todo o período de Medo quando o homem disfarçado de Homem-árvore ou ostentando riscos e manchas pintadas sobre o corpo faz de conta que é um animal e simula a sua pessoa.

Na criança os primeiros sorrisos ostentam as suas simulações e o fato do sorriso na criança aparecer com frequência quando em presença de outra pessoa nos mostra quão necessário é o sorriso como defesa passiva individual, como simulação e nos leva para a época recuada no início do Ódio em que o homem só fechava a boca ameaçadoramente quando em presença de um inimigo, momento em que pronunciava consoantes com intensidade. A vida da criança interpreta-se como expressão filogênica dessa épica recuada no passado.

O conceito de Gaup de que a criança de baixa idade não simula é a meu ver precipitado: é um pensamento lírico que deve ser posto de lado.

O Trimestre Bobo da criança recém-nascida é uma reprodução da debilidade mental do homem do começo que após o advento do primeiro sorriso e da primeira consoante se orienta para os estados crepusculares do posterior período esquizofrênico do Medo, estados cheios de simulação e de defesa passiva que procuram amparar os desejos, o medo, as angústias e as cenas eróticas.

Um estado crepuscular como o de Ganser, encontrado hoje, onde o paciente, geralmente um criminoso, se apresenta simulando uma imbecilidade infantil, só apareceria após o Trimestre Bobo filogênico e consequentemente após o primeiro sorriso.

As manifestações bobas após o primeiro sorriso observadas tanto no recém-nascido como no homem antigo e as manifestações bobas do criminoso de hoje são uma forma de simulação de uma manifestação de mentira para fins de defesa.

A criança, o selvagem, o escravo, a mulher e o criminoso, todos usam a simulação para defesa própria, todos usam o sorriso fácil e acolhedor surgido no primeiro terço do Trimestre Bobo. Todos são facilmente sugestionáveis por uma ideia e uma finalidade e todos lançam mão da máscara da mentira e da simulação a fim de alcançar essa ideia. Animicamente são seres residuais do período esquizofrênico do [período da Defesa Passiva].


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 13 de outubro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.