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Uma metáfora da esperança: As Ruínas

por María Zambrano

Publicado originalmente sob o título “Una metáfora de la esperanza: Las Ruinas”, na revista Lyceum, vol VIII, n. 26, Havana (Cuba), maio de 1951. Tradução de Rodrigo Lopes de Barros Oliveira.

 

O conhecimento das “coisas da vida” é radicalmente distinto do conhecimento das “coisas da natureza”. Porque a pergunta que os faz nascer é distinta, (se formula em outros termos) e ainda por algo essencial não levado em conta até agora: pelo tom. A pergunta clássica de onde nasceram o par Filosofia e Ciência no Ocidente é, segundo se lembra: “O que são as coisas?” E é natural que apareça desprovida de tom, embora poderia havê-lo tido e que levanta em mim uma pergunta que escuto mais do que leio, escuto-a na lembrança, soando ao mesmo tempo com um tom de resignação e de audácia, esses dois componentes da situação humana de onde nasce a atitude filosófica. Mas com o tempo, a atitude de onde nasce permanentemente a pergunta foi ficando oculta, e a própria pergunta e suas respostas foram adquirindo impersonalidade, como se o fazer Filosofia, e mais ainda Ciência, levasse consigo a renúncia a toda “questão pessoal”.

E aqui e agora, sucede que a filosofia volte-se em direção à “questão pessoal” oculta sob a pergunta objetiva “pelas coisas da natureza”, e o descobrimento de Dilthey acerca das Ciências do Espírito a tornou possível: abriu espaço dentro da filosofia, que não renuncia por isto a sua qualidade de Ciência – é preciso não esquecer –, a todas essas perguntas acerca das coisas da vida. E ainda mais, a “Razão Vital” de Ortega e a filosofia existencialista possibilitam, e até exigem, que se comece a pensar não por essa pergunta ou, como no caso de Heidegger, se retroceda da pergunta pelo ser das coisas à pergunta acerca do ser que por ela se pergunta. Mas este ser é um alguém, não um algo, um alguém, o contrário de uma coisa. Então, a pergunta vem a ser essa que ressoa no que a Filosofia havia desde sempre deixado de lado na queixa. A pergunta se confunde com a própria queixa. “O que acontece comigo?” Ortega começava sua Razão Vital com esta pergunta: “O que acontece ou o que está acontecendo conosco?”

E é impossível que tal pergunta surja de modo objetivo, isto é: impassível. [Nota do tradutor: Ao longo do parágrafo autora joga com vários significados da palavra “pasar” em espanhol, que pode ser traduzida como “acontecer” e está também presente em português no adjetivo “impassível”, isto é, “indiferente”, “insensível”, “não suscetível ao que acontece”.] A Filosofia tradicional nasceu deste afã de afastar-se da queixa, do mundo do acontecer e das paixões. Era um conhecimento desinteressado e impassível: a impassibilidade era condição do pensar e chegou a ser “virtude” na moral e requisito indispensável na vida dos chamados filósofos.

E como poderia ser impassível e desinteressado o conhecimento das coisas da vida? Pois, embora a pergunta se refira à história, a uma história que não me importe – se isto pode dar-se – a raiz última dela, sua “fundamentação” por assim dizer é essa aflição do ânimo, essa angústia e até esse sentir-nos culpáveis, ou sentir a outro que nos faz examinar: o que acontece comigo? E, em seguida, explicá-lo: o que é que eu fiz ou o que fizeram comigo? Pois, as coisas da vida ou da história têm um autor, alguém as fez, as fiz ou fizeram para mim... detrás das aparências sensíveis dos fenômenos, vamos buscar a realidade verdadeira – o ser – nas coisas da natureza; detrás do que acontece – que de certo modo acontece a mim sempre em maior ou menor grau – vamos buscar o alguém responsável, o autor.

E, ademais, se nas coisas da natureza encontramos leis que chegam a enunciar-se matematicamente, nas coisas que acontecem, vamos em busca de decifrar seu sentido; não são as leis, nem sequer as causas, mas seu sentido é o que queremos decifrar para compreender, e ao compreendê-lo, fazê-lo nosso...

***

Mas, de que forma aparece este sentido das coisas que acontecem ou que nos acontecem? Há uma grande tradição de poesia: na poesia, em todos os seus gêneros e de modo exemplar na Tragédia grega, onde apareceram decifrados sem diminuição de seu mistério os acontecimentos mais essenciais da vida e até mesmo da história, dessa história essencial das entranhas humanas. A Filosofia até agora não aproveitou esse saber misterioso, essa revelação poética. Mas, há também uma tradição mais humilde, anônima. Submersa na cultura analfabeta, verdadeira medula de nossa cultura ocidental, há uma velhíssima sabedoria. Um filósofo misterioso, Heráclito, dizia: “o sábio não diz, indica”. É que certas coisas não podem ser entendidas se são abordadas diretamente como os fenômenos físicos, mas de forma indireta, metafórica, que é a base de toda poesia. É a velha sabedoria poética exercida, ao longo dos séculos, anonimamente em sua quase totalidade, e da qual são como altos cumes, visíveis de uma imensa cordilheira quase submarina, as grandes obras de arte... Desculpem-me se recorro a algo de minha própria vida: se lhes conto algo de minha intimidade.

Entre as fortunas com as quais o destino me deparou, está a de haver nascido às margens do Mediterrâneo e não por acaso, o ser ancestralmente Mediterrâneo. E o Mediterrâneo é o lugar de eleição da cultura analfabeta. E assim, esta fortuna se manifestou também nessa forma, em haver tido ao meu lado nos primeiros anos de minha vida uma velha sábia, uma velha ama legendaria chamada Alhama... Sabia tudo o que acontecia dentro de mim e suspeito que também dentro dos mais velhos, pois quem penetra no coração de uma criança mais facilmente se desliza pelo labirinto já simplificado do coração dos maduros. E quando eu andava angustiada ou perplexa, enfurecida quiçá ou mais frequentemente sem saber o que me acontecia, já mais velha nos limites da adolescência, ela nada me dizia, nada diretamente, pois não lembro de tê-la ouvido falar nunca senão em forma indireta: por modestas parábolas, mas ainda assim parábolas, por agudas metáforas, por insinuações, por versos que só ela sabia e também por silêncios. E seus dizeres começavam sempre da mesma maneira: quando me mandava olhar algo, recurso usado nos momentos mais difíceis. “Olha, menina”... E me indicava algo: uma nuvem ou conjunção de nuvens no céu, uma mariposa dando voltas em torno da luz, algum inseto menor ainda, me dizia sempre: “Olha, menina”... E não acrescentava nada mais. No primeiro momento, eu nada apreendia de olhar aquilo. Porém, mais tarde, lentamente e às vezes subitamente como por uma iluminação, compreendia: e sim, ali estava uma indicação ao menos do que estava acontecendo comigo. Ela havia destacado do contorno uma metáfora natural, digamos, algo que podia ajudar-me a compreender ou a entrar em meu próprio coração, que tal é em essência o achado do que chamamos sentido: entrar em si mesmo, e sentir como seu e próprio o que atormentava vagando, rondando nossa cabeça como um pesadelo ou uma obsessão. Transformar o pesadelo em metáforas... como Sófocles.

E assim, quando me curvei sobre as ruínas do Fórum Romano, do Palatino, do fundo mais obscuro de minha memória, senti chegar sua voz, dizendo-me como antes, como naqueles anos: “Olha, menina”... E olhei, olhei e vi as ruínas de minha pátria: Roma. O que era aquilo? Quiçá uma metáfora?

***

O que são as ruínas? Algo deteriorado, sem dúvida, algo desabado. Mas nem todo desabamento é uma ruína. Na percepção das ruínas sentimos algo que não está, um hóspede que se foi: alguém acaba de ir embora quando entramos, algo flutua ainda no ar e algo permaneceu também. Não nos atreveríamos a permanecermos sozinhos entre ruínas, pois tudo povoar-se-ia, iria povoando-se não mais de sombras, mas de algo mais indefinível.

Por quê? As ruínas são uma categoria da história e fazem alusão a algo muito íntimo de nossa vida. São o abatimento dessa ação que define o homem entre todas as outras: edificar. Edificar, fazendo história. Isto é, uma dupla edificação: arquitetônica e histórica. A arquitetura e a história são solidárias e no fundo nasceram do mesmo ímpeto e de idêntica necessidade: a necessidade que provém dessa deficiência do homem, ser o inadaptado entre todos os que povoam a terra: ele que não encontrou meio algum que lhe estivesse aguardando e que teve que começar construindo o mesmo que há de proteger-lhe. Mas o homem não empreendeu esta atividade de edificar atendendo unicamente a necessidade de ter um abrigo que lhe proteja. Bem aí, no simples fato de ter que edificar um “abrigo” existe já algo mais do que a mera necessidade utilitária: o buscar um dentro, um interior, que proteja sua alma nascente, como se fosse alguém que tem que enfrentar a vida antes de haver acabado de nascer e sente a necessidade íntima, estranhável de esconder-se, de afastar-se da luz que logo tem que enfrentar: a luz que é também a lei.

E ao edificar, tenta realizar seus sonhos. E sob os sonhos, alenta sempre a esperança. A esperança motora da história. E assim, nas ruínas, o que vemos e sentimos é uma esperança aprisionada, que quando esteve intacto o que agora vemos desfeito quiçá não era tão presente: não havia alcançado com sua presença o que consegue com sua ausência. E isto, que a ausência sobrepasse em intensidade e em força a presença, é o signo inequívoco de que algo tenha alcançado a categoria de “ruína”.

Mas como pode ser assim? Que a ausência seja mais do que aquilo que alcançou a presença? E, se produz esta impressão no contemplador das ruínas, é porque em nenhuma presença completa encontramos esse algo, esse hóspede cuja ausência impregna tudo; em palácio, templo, cidade alguma vimos o rosto desse desconhecido. Por quê?

É que existem duas classes de ausência. A primeira é a mais frequente: ausência de algo que simplesmente não está presente, mas que pode estar ou que esteve alguma vez; é a falta de algo ou de alguém que conhecemos, cuja figura nós pudemos contemplar integralmente. A outra ausência, a ausência pura, verdadeira, é aquela que jamais esteve presente. Deus é o grande ausente, disse Ortega. Sim: a ausência pura é a ausência da divindade, essa que expressaram os grandes místicos. “Doença de amor que não se cura a não ser com a presença e a figura”, dizia San Juan de la Cruz. E então, essa ausência das ruínas, cuja presença nunca vimos inteiramente, não faz pensar que se trate de algo divino?

Parece comprová-lo o fato de que a ruína perfeita seja a de um templo. E também que toda ruína tenha algo de templo, de lugar sagrado. Lugar de perfeita contemplação.

Não há ruínas sem o triunfo da vida vegetal sobre aquilo que um dia se levantava soberbamente sobre a terra. Pois, tudo o que se edifica sobre a terra de certo modo a humilha. E assim, era rito entre os antigos fazer sacrifícios aos Deuses do lugar – todo lugar tinha um dono – para aplacá-los e para que permitissem levantar a construção edificada por mãos humanas. O edificar é um triunfo do homem sobre a natureza, como é também a história, a tarefa histórica tão estranha para um contemplador não humano, se houvesse. E nas ruínas, o humano tornou-se abatido sem ficar apagado. Daquele triunfo – e todo triunfo humano traz ou leva soberba – ficou algo que já se enlaça com a vida vegetal triunfadora, que corre livremente brotando entre as colunas quebradas e os muros abatidos. Uma fusão entre a natureza e a história tem lugar, uma pacificação, uma reconciliação de onde nasce essa especial beleza que, semelhantemente àquela que se desprende da Tragédia grega, traz a “catarse”. A contemplação das ruínas cura, purifica, alarga o ânimo fazendo-lhe abarcar a história e seus vaivéns como uma imensa tragédia sem autor. As ruínas são em realidade uma metáfora que alcançou a categoria de Tragédia sem autor. Seu autor é simplesmente o tempo.

E a tragédia brota da esperança em luta exagerada com a fatal limitação do destino, das circunstâncias. A esperança, ao mesmo tempo o mais humano e divino da vida do homem, fica já livre e exposta, liberada de suas lutas, nas ruínas. É a transcendência pura da esperança.

Pois, toda “cultura” é a realização, ou melhor, a tentativa de realizar um sonho, um desses sonhos que inexoravelmente perseguem o homem e dos que não se pode livrar-se, porque nascem do fundo indestrutível da esperança que busca seu argumento e, ao mesmo tempo, sua realização. Nem todos os sonhos pedem para realizarem-se, mas há alguns mais dotados de existência que não permitem à consciência humana, que os hospeda, descansar, que lançam o homem a não importa quais aventuras. A realização é sempre uma frustração. Nesse sentido, toda a história, até mesmo a mais esplêndida, é um fracasso. Um fracasso que em si mesmo leva seu triunfo: o renascer incessante da esperança humana simbolizada pela hera. A hera: metáfora da vida que nasce da morte, do transcender que segue todo acabamento. Todo acabamento de algo que foi longe na esperança. E se Calderón disse: “construir bem que nem mesmo em sonhos se perde”, caberia entendê-lo pensando que de toda realidade o único que fica será seu sonho. Que o sonhar bem nem mesmo morrendo se perde.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.