outros números

resenhas

dicionário crítico
(verbetes)

seção arquivo

informativo

contato
(e colaborações)


 


Atlas - Como levar o mundo nas costas?
por Georges Didi-Huberman


Nota: Texto de apresentação da exposição homônima em cartaz no Museu Reina Sofía (Espanha). A versão original do texto, bem como das reproduções aqui presentes, está disponível em http://www.museoreinasofia.es/exposiciones/actuales/atlas.html

 

A partir do Atlas Mnemosyne
A mitologia grega conta que o titã chamado Atlas, junto com seu irmão Prometeu, quis enfrentar os Deuses do Olimpo para tomar o poder deles e dá-lo aos homens. Conta que foi castigado na mesma medida de sua força: enquanto um abutre lhe arrancava o fígado de Prometeu nos confins do Leste, Atlas, no Oeste (entre a Andaluzia e Marrocos) foi obrigado a sustentar com seus ombros o peso da abóboda celeste inteira. Conta também que levar esta carga lhe fez adquirir um conhecimento infranqueável, e uma sabedoria desesperante. Foi precursor de astronautas e geógrafos, e inclusive alguns dizem que foi o primeiro filósofo. Deu seu nome a uma montanha (o Atlas), a um oceano (o Atlântico) e a uma forma arquitetônica antropomórfica (o Atlante), que serve como coluna de sustentação.

Atlas, por fim, deu seu nome a uma forma visual de conhecimento: ao conjunto de mapas geográficos, reunidos em um volume, geralmente em um livro de imagens, e cujo destino é oferecer a nossos olhos, de maneira sistemática ou problemática – inclusive poética, com risco de ser errática, quando não surrealista –, toda uma multiplicidade de coisas reunidas ali por afinidades eletivas, como dizia Goethe. O atlas de imagens se converteu em um gênero científico por direito próprio a partir do século XVIII (pensemos no livro de lâminas da Enciclopédia) e se desenvolveu consideravelmente nos séculos XIX e XX. Encontramos atlas muito sérios, muito úteis – geralmente muito bonitos – no âmbito das ciências da vida (por exemplo, os livros de Ernst Haeckel sobre as medusas e outros animais marinhos); existem atlas mais hipotéticos, por exemplo, no âmbito da arqueologia; também temos atlas totalmente detestáveis no campo da antropologia e da psicologia (por exemplo, o Atlas do homem criminoso de Cesare Lombroso, ou alguns dos livros de fotografias “raciais” elaborados por pseudo-eruditos do século XIX).

No âmbito das artes visuais, o atlas de imagens, Atlas Mnemosyne, composto por Aby Warburg entre 1924 e 1929, que restou inacabado, constitui para todo historiador da arte – e inclusive para todo artista hoje – uma obra de referência e um caso absolutamente fascinante. Aby Warburg transformou o modo de compreender as imagens. Ele é para a história da arte o equivalente a que Freud, seu contemporâneo, foi para a psicologia: incorporou questões radicalmente novas para a compreensão da arte, e em particular a da memória inconsciente. Mnemosyne foi sua paradoxal obra prima e seu testamento metodológico: reúne todos os objetos de sua pesquisa em um dispositivo de “painéis móveis” constantemente montados, desmontados, remontados. Aparece também como uma reação de duas experiências profissionais:  a da loucura e a da guerra. Pode-se vê-lo, então, como uma história documental do imaginário ocidental (herdeiro, nestes termos, dos Disparates e dos Caprichos de Goya), e como uma ferramenta para entender a violência política nas imagens da história (comparável, nesse ponto, a um compêndio dos Desastres).





Na mesa de montagem

Atlas – Como levar o mundo nas costas? é uma exposição inter-disciplinar que recorre o século XX e nosso recente século XXI, elegendo o atlas de imagens Mnemosyne como ponto de partida. Apesar de todas as diferenças de método e conteúdo que podem separar a pesquisa de um filósofo-historiador e a produção de um artista visual, ficamos impactados pelo seu método heurístico comum – o método experimental – quando baseado em uma montagem de imagens heterogêneas. Descobrimos, então, que Warburg compartilha com os artistas de seu tempo uma mesma paixão pela afinidade visual operatória, o que torna contemporâneo de artistas plásticos de vanguarda (Kurt Schwitters ou László Moholy-Nagy), fotógrafos de “estilo documental” (August Sander e Karl Blossfeldt), cineastas de vanguarda (Dziga Vertov ou Sergei Eisenstein), de escritores que ensaiavam a montagem literária (Walter Benjamin ou Benjamin Fondane), e inclusive dos poetas e artistas surrealistas (Georges Bataille ou Man Ray).

A exposição Atlas não foi concebida para reunir pinturas maravilhosas, mas sim para ajudar a compreender como trabalham alguns artistas – em relação com eventuais obras primas – e como este trabalho pode se considerar desde o ponto de vista de um método autêntico, e, inclusive, desde um conhecimento transversal, não estandardizado, de nosso mundo. Nesta exposição não se vêem as belas aquarelas de Paul Klee, mas sim seu modesto herbário e as idéias gráficas ou teóricas que brotaram dele; não se vêem os modernos “quadrados” de Joseph Albers, mas sim seu álbum de fotografias realizado sobre a arquitetura pré-colombiana; tampouco as imensas pinturas de Rauschenberg, mas sim uma série de fotografias reunindo objetos tão modestos quanto heteróclitos; não se vêem as magníficas pinturas de Gerhard Richter, mas sim uma seção de montagens realizadas para seu Atlas de larga duração; não se vêem os cubos minimalistas de Sol LeWitt, mas sim suas montagens fotográficas nas paredes de Nova Iorque. Ao invés das pinturas (como resultado do trabalho), preferimos, esta vez, as mesas (como espaços operativos, superfícies de jogo ou realização do trabalho mesmo). E, ao caminhar pela exposição, descobrimos que os supostos “modernos” não são menos subversivos que os “pós-modernos”, e que estes não são menos metódicos e preocupados com a forma que os “modernos”. Constitui uma nova forma de contar a história das artes visuais, distante dos esquemas históricos e estilísticos da crítica acadêmica da arte.



Reconfigurar a ordem das coisas

Quando colocamos diferentes imagens – ou diferentes objetos, como as cartas de um baralho, por exemplo – em uma mesa, temos uma constante liberdade para modificar sua configuração. Podemos fazer pilhas, constelações. Podemos descobrir novas analogias, novos trajetos de pensamento. Ao modificar a ordem, fazemos com que as imagens tomem uma posição. Uma mesa não se usa nem para estabelecer uma classificação definitiva, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar de uma vez por todas – como em um dicionário, um arquivo ou uma enciclopédia –, mas sim para recolher segmentos, trocos do parcelamento do mundo, respeitar sua multiplicidade, sua heterogeneidade. E para outorgar legibilidade às relações postas em evidência.

Esta é a razão pela qual Atlas nos mostra o jogo a que se entregam numerosos artistas, essa “história natural infinita” (segundo a expressão de Paul Klee) ou esse “atlas do impossível” (segundo a expressão de Michel Foucault a respeito da erudição desconcertante de Jorge Luis Borges). Descobre-se, então, o sentido em que os artistas contemporâneos são “sábios” ou precursores de um gênero especial: recolhem pedaços dispersos do mundo como o faria uma criança ou um trapeiro – Walter Benjamin comparava estas duas figuras com o autêntico sábio materialista. Fazem com que se encontrem coisas fora das classificações habituais, retiram dessas afinidades um gênero de conhecimento novo, que nos abre os olhos sobre aspectos inadvertidos do mundo, sobre o inconsciente mesmo de nossa visão.



Reconfigurar a ordem dos lugares

Fazer um atlas é reconfigurar o espaço, redistribuí-lo, desorientá-lo em suma: deslocá-lo ali onde pensávamos que era contínuo, reuni-lo ali onde supúnhamos que houvesse fronteiras. Arthur Rimbaud, um dia, recortou um atlas geográfico para consignar sua iconografia pessoal com os fragmentos obtidos. Mais tarde, Marcel Broodthaers, On Kawara ou Guy Debord inventaram muitas formas de geografias alternativas. Aby Warburg, por sua vez, já havia entendido que qualquer imagem – qualquer produção da cultura em geral – é um cruzamento de múltiplas migrações: é em Bagdá, por exemplo, onde buscaria os significados inadvertidos de alguns afrescos do Renascimento italiano.

São numerosos os artistas contemporâneos que não se conformam somente com uma paisagem para nos contar a história de um país: é a razão pela qual fazem com que coexistam, em uma mesma superfície – ou lâmina de atlas – diferentes formas para representar o espaço. É uma forma de ver o mundo e de percorrê-lo segundo pontos de vista heterogêneos associados uns aos outros, como podemos observar nas obras de Alighiero e Boetti, de Dennis Oppenheim, ou, mais em geral, na maneira na qual se enfocou a metrópole urbana, desde O homem com uma câmera na mão de Dziga Vertov até as instalações de Harun Farocki.



Reconfigurar a ordem do tempo

Se o atlas aparece como um trabalho incessante de recomposição do mundo, é, em primeiro lugar, porque o mundo mesmo sofre decomposições constantemente, uma atrás da outra. Bertolt Brecht dizia, a respeito do “deslocamento do mundo”, que é “o verdadeiro sujeito da arte” (basta pensar em Guernica para poder entendê-lo). Aby Warburg, por sua vez, via a história cultural como um verdadeiro campo de conflitos, uma “psicomaquia”, uma “titanomaquia”, uma “tragédia” perpétua. Poder-se-ia dizer que muitos artistas adaptaram este ponto de vista reagindo às tragédias históricas de seu tempo com um trabalho no qual, uma vez mais, a montagem ocupa o papel central: as fotomontagens de John Heartfield nos anos trinta, e mais recentemente as História(s) do cinema, de Jean-Luc Godard, e o trabalho de artistas como Walid Raad ou Pascal Convert.

É, pois, o tempo mesmo o que se torna visível na montagem de imagens. Corresponde a cada qual – artista ou sábio, pensador ou poeta – converter tal visibilidade na potência de ver os tempos: um recurso para observar a história, para poder manejar a arqueologia e a crítica política, “desmontando-a” para imaginar modelos alternativos.

Tradução de Alexandre Nodari

 


Próximo texto:
Escrita, Espaço, Instalação:
dois ou três textos de Ricardo Lísias

Edicão integral:
HTML | PDF


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.