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“Castre o Touro!!!”:
sobre a ocupação de Wall Street
Flávia Cera

Texto apresentado na VI Jornada da Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise:
"Por que falar, ainda? O simbólico em psicanálise", realizada em outubro de 2011

José Saramago, quando perguntado sobre a rede social Twitter, disse: “Os tais 140 caracteres reflectem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”. É verdade que no Twitter é possível falar com grunhidos: humm, tsc tsc, entre outros sons que produzimos, são simbolizados para chegarmos mais perto de uma conversa informal ou de um contato cara a cara. Além disso, o símbolo do Twitter é um passarinho. Quem sabe estejamos próximos de sua língua ou quem sabe ele é apenas o símbolo de um vôo da fala que, com ele, chega mais rápido, prolifera-se mais rápido. De qualquer modo, a leitura de Saramago é muito pessimista.

A discussão sobre os novos meios de comunicação contemporâneos sempre remete ao pensamento de Guy Debord, que, em 1967, assinalou com muita agudeza que a Sociedade do Espetáculo – onde todas as relações são mediadas por imagens que nos unem, mas somente na medida em que também nos separam – era nosso destino desolador. Em boa parte seu diagnóstico foi bem sucedido. Houve uma supressão do espaço-tempo em que as imagens cumprem um papel fundamental, e que podemos perceber nitidamente nos telejornais, nos jornais impressos e na internet. Ao mesmo tempo, as novas redes sociais, onde há um uso indiscriminado do simbólico, vêm deslocando o conceito de opinião pública, uma vez que é possível emitir opiniões, sem uma mediação legitimadora, sobre determinado fato, divulgar notícias anonimamente, ou mesmo, organizar movimentos que invadem as praças e derrubam ditadores, como pudemos ver no Oriente Médio. Contudo, essas novas possibilidades do uso do simbólico nos chegam como imagens na tela do computador. Existe, portanto, um predomínio das imagens e seu longuíssimo alcance, em novos meios, dão a forte impressão de que elas podem nos “dizer tudo”.


Teríamos perdido a nossa capacidade narrativa porque já não somos capazes de experiência? Porque nossas experiências são mediadas por essas imagens espetaculares? Poderíamos dizer que nada mais tem a capacidade de impressionar (no sentido forte do termo, de deixar marcas) nossos corpos? É provável que não: a experiência, como dizia Walter Benjamin, decaiu, mas não foi destruída. Falar desses encontros com as imagens – e dessa tentativa de totalização da experiência que tenta dizer tudo, como uma avalanche de impossíveis que nos posicionam como meros espectadores des-implicados da própria história – é possível ou, mais ainda, urgente. Tirar esse estatuto de verdade absoluta das imagens que tentam calar e ressignificá-las, seria, pois, uma maneira de se transmitir essas imagens, de animá-las, de fazê-las falar, de criar uma história, ou ainda, uma forma de resistir. A velha máxima de que uma imagem vale mais do que mil palavras parece se aplicar em todo seu vigor. Já que tudo está exposto, não há mais nada a dizer? Também é provável que não. Pelo menos, é o que nos mostram os recentes movimentos de ocupação dos espaços públicos nas cidades norte-americanas. Uma das censuras que a mídia faz ao movimento de ocupação, quando o aborda, é que ele serve apenas para diversão, o que de certo modo sentencia que a política foi completamente apartada da festa. Mas isto está longe de ser uma crítica ao movimento, ao contrário, o que a mídia faz é constatar um fato mais profundo: algo do império norte-americano do entretenimento, da diversão espetacular falhou e os jovens foram às ruas. De modo que, ainda hoje, poderíamos ouvir com certa atualidade a música The Revolution will not be televised, ou com um pouco mais de proximidade dizer: This will not be privatized (cartaz da ocupação de New Orleans).

Uma das críticas mais propagadas à sociedade contemporânea é de que nela só vale a lei do mercado. O mercado é inclusive animado, tem alma, psique: tem crises, é instável, pode ficar nervoso ou calmo, entre outros afetos que ainda não foram descobertos. O mercado tornou-se uma entidade animada abstrata, uma imagem que circula de Bolsa em Bolsa, ou de bolso em bolso. Os investimentos são virtuais, o capital é “intelectual”, suas oscilações são transmitidas em tempo real na tela de um computador. Com muitos devotos, e com uma soberania quase incontestável, o capitalismo, de acordo com Benjamin, tornou-se uma religião de puro culto sem dogma e o dinheiro, como argumenta Fabián Ludueña, seu sacramento. Duas assertivas que nos mostram que, mesmo com Deus morto, a capacidade criativa e obediente da civilização é capaz de criar outros deuses, mesmo que falsos deuses – o importante é cultuar. Isso se vincula com outro dos enunciados de Guy Debord: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”.

A imagem da agressividade e firmeza, outros dois afetos do mercado, foi condensada em Wall Street com uma escultura de bronze feita por Arturo Di Modica e instalada em 1989. O Touro, que está em posição de ataque, foi feito para atuar como uma “arte de guerrilha” para que, depois da crise da Bolsa de 1987, o mercado conseguisse se recuperar e seguir em prosperidade. Depois da crise, o Touro aparece – como o falso deus Bezerro de Ouro dos antigos judeus – para substituir a falta de um deus. Este Touro, que re-surge em outra cena depois de outra crise, a de 2008, remete à ocupação de Wall Street, o silêncio da imprensa, a repressão policial e sua propagação quase exclusiva pela internet, sobretudo pelo grupo Anonymous. As ocupações dos espaços públicos sempre recuperam, não sem certa nostalgia, o Maio de 1968 como uma forma de resistência, uma forma de animar as imagens que nos chegam, de dizê-las insuficientes. As demandas do movimento Occupy Wall Street foram formalizadas em um documento onde revelam contra quem lutam: as forças corporativas. No documento podemos ler uma série de denúncias sobre guerra, corrupção, desigualdade, descriminação, e uma tentativa de re-estabelecer ou de estabelecer um laço social. Não é nenhuma novidade as atrocidades cometidas pelo império das sociedades anônimas encarnado no coração econômico do planeta que é Wall Street, mas é interessante pensar sobre esse amo contra o qual lutam: as forças corporativas (“corporate forces”) e o poder econômico. São forças – já não são mais formas, a forma-Estado ou a forma-Indústria – que estão disseminadas e fragmentadas por toda parte. O Discurso Capitalista é imperioso na sociedade contemporânea, e, como dizia Lacan, não propicia o laço social, ao contrário, leva ao consumo, à tentativa de satisfação imediata com um objeto. Não há dialética possível no discurso capitalista, ele marca a ausência de relação. Talvez por sua falta de estrutura, por sua flutuação (como a dos câmbios, p.ex.), por sua disseminação. E, como nos ensina Lacan, o discurso capitalista, o discurso do mercado, não aceita castração. O movimento de ocupação de Wall Street, nesse sentido, parece querer barrar esse gozo infinito do capitalismo. É significativo o cordão policial em torno do Touro para protegê-lo do ataque dos ocupantes. Polícia, ou seja, o Estado, por um lado, e o Mercado, por outro, querem preservar esse símbolo que dá consistência ao Discurso Capitalista. Os manifestantes, por sua vez, souberam atacá-lo com um emblemático cartaz onde se lê: “Castre o Touro!!!” (“Castrate the Bull!!!”). Talvez aqui se tenha entendido o significado profundo de uma das mais famosas inscrições de 68: “Sejamos realistas, peçamos o impossível”.         

Se é possível castrar ou não o mercado, ainda não podemos dizer. Mas há algo interessante para notarmos no silêncio dos meios de comunicação tradicionais em relação às reivindicações dessa manifestação: não se quer ver tal incômodo, não se quer olhar para esse furo, não querem castrar o Touro. Nesse sentido, as novas redes sociais, pelas quais se organizam as ocupações, não aparecem como um grunhido como dizia Saramago, mas como um grito que interrompe o Discurso. O que não quer dizer que nesse compartilhamento rizomático das redes se esboce um consenso ou mesmo um inconsciente coletivo. São imagens que são transmitidas, significantes que são disseminados, ou ainda, apostas na contingência do Real (como argumenta Alemán com sua proposição de uma Esquerda Lacaniana) no sentido de fazer possível outra realidade que não a nossa. Ao mesmo tempo, o pedido da castração do Touro remete à questão da Lei simbólica. Que limite se pode pensar para o Discurso Capitalista? Que limite se pode pensar para a ciência? Em nenhum dos dois se admite a falha, que todo erro é compensado por ajustes que têm como objetivo tampar um buraco que se abre. E, cabe pensar: para quem a demanda da castração do Touro é dirigida? Seria, de novo, uma aposta no Estado? Seria o re-estabelecimento de um mestre? Será que Lacan estava certo quando disse aos estudantes de Vincennes que “O que vocês aspiram como revolucionários é um mestre”? O que é interessante esclarecer é que por mais que se tente alcançar a satisfação pelo consumo ou mesmo que se aposte na criação incessante de desejos, há sempre alguma coisa do sujeito que resta. Há sempre alguma coisa que não será dita e sobre a qual é preciso falar, ainda. De modo que, pensar um horizonte de salvação messiânico, como curiosamente vem fazendo a filosofia contemporânea, de Badiou e Zizek (mais próximos à psicanálise) a Giorgio Agamben (que não perde a chance de rechaçá-la) é infrutífero. Nesse sentido, podemos pensar que o Discurso Analítico é o que pode fazer frente ao gozo capitalista justamente porque insere a dimensão da castração, ou seja, da falta porque sabe que não se pode dizer tudo, e porque não está fundamentado em garantias.

Se não há horizonte de salvação, isso quer dizer que não há direção certa ou errada a seguir. Se a crença no Touro de Wall Street, que veio encarnar o deus mercado, foi abalada, o melhor a ensaiar seria um desvio por esse desvio, um aprofundamento desse furo para vislumbrar um pouco de possível. É quase generalizada a certeza de que as demandas dos ocupantes não serão atendidas. De certa forma, essa frustração também é interessante na medida em que põe em jogo algo do desejo. O que se organiza na ocupação em Wall Street  é a idéia de uma ocupação do espaço público, da política, do desejo. Nesse sentido, a ocupação é uma aposta na falha e essa aposta é efeito de um deslocamento apresentado no próprio alvo de sua crítica: as forças corporativas. Forças, como dizíamos, e não formas. Elas não têm necessariamente um endereço, ou o nome de um proprietário. É com a pulverização do território e da fixidez que se está jogando. E isso permite a constatação de um mal-estar, de um sem-rumo, do declínio do Pai (basta pensar na organização da ocupação na forma de assembléias, uma forma de reunião e compartilhamento das decisões, dos destinos, que, ao contrário do desejado pelos manifestantes, nunca acaba em consenso). Para pensar esse sem-rumo, poderíamos articular o desbussolamento do sujeito contemporâneo, de que nos fala Jacques-Alain Miller, com a idéia de confins proposta por Leonardo Gorostiza: não se trata mais de limites, mas de limiares. Se a bússola, outrora, servia para a navegação e demarcação de novos territórios, hoje, poderíamos dizer, estamos mais próximos da orientação pelas birutas dos aeroportos cuja precisão é a imprevisibilidade dos ventos. É preciso compreender que se há saída possível ela não é estável, e sim contingente como os ventos, cheio de buracos, ou seja, não há como fugir dos encontros com o Real. A biruta, ao contrário da bússola, aponta aos aviões a direção que eles não devem seguir, eles devem pousar contra o vento; seu princípio é, portanto, o da transgressão. Birutas, como sabemos, é uma forma de se referir aos loucos. Os jovens de Wall Street, no início da ocupação, já previam o discurso dominante com precisão: “vão nos chamar de loucos”. É verdade. Somos todos loucos.

 

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O RETRATO SEGUNDO G.H.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.