|
O Sopro apresenta uma entrevista concedida por Giorgio Agamben ao La Stampa, em 27 de novembro de 2007, sobre o paradigma da segurança nas atuais democracias liberais. O pano de fundo foi um pacote emergencial de medidas de segurança proposto pelo governo italiano após um crime atribuído a um morador de um Campo Rom. No final de 2010, outro pacote governamental de segurança foi apresentado na Itália, reforçando as medidas de 2007. Nesse sentido, a entrevista continua, além de profunda, topicamente atual, o que motivou Fabio Milazzo a republicá-la recentemente no site hæcceit@s web, precedida de um breve comentário, que o Sopro também publica abaixo. A tradução da apresentação de Milazzo e da entrevista é de Elysa Tomazi. As imagens que acompanham os textos são fotografias tiradas por Gianluca de Angelis (www.gluca.info) no Campo Rom de Pietralata, em Roma.
Segurança e democracia liberal: o parecer de Agamben
por Fabio Milazzo
O paradoxo que ab origine o liberalismo teve que “resolver” para conseguir “transformar-se” de ideologia cultural em sistema ordenador da vida social diz respeito à gestão do elemento que primordialmente o distingue enquanto “arquitetura de pensamento”: a liberdade.
De fato, uma doutrina política que coloca sua razão de ser na exaltação do conceito de liberdade enquanto fundamento da vida em sociedade deve, pois, conseguir gerir concretamente o processo de liberação dos homens.
O liberalismo (também e sobretudo em seu declínio liberalista), no seu fazer político, deve estar em condições de exercitar o controle da vida social - função exercida, de modo inderrogável, pelos Estados Modernos - sem parecer opressor, sem deixar que diminuam os sinais de liberdade.
Portanto, de uma parte o controle das garantias para a livre circulação do homem (e das mercadorias), para a livre associação, para o livre exercício do direito de expressão em suas diversas formas, etc. Percebemos, então, como muitas dessas liberdades presumidas, embora vivendo em um sistema que se declara liberal-democrático, estão (no melhor dos casos) sujeitas a sensíveis limitações.
Essa questão está ligada à condição paradoxal de um sistema que no seu fazer garantidor e ordenador da vida em sociedade está, por sua natureza, em contradição com ele mesmo, não podendo garantir aquela “liberdade” inscrita “nos seus genes”.
Sobre as dificuldades relacionadas à concretização desse equilíbrio segurança/liberdade no interior das democracias modernas proponho uma entrevista, feita há algum tempo por Andrea Cortellessa com Giorgio Agamben, um dos pensadores que mais nos interessam entre aqueles do atual panorama filosófico.
Giorgio Agamben
concedida a Andrea Cortellessa
Um filósofo e a política da segurança:
"Os governos nos
consideram terroristas em potencial"
Apresentando o “Pacote de Segurança”[1] logo após o homicídio de Giovanna Regianni[2] em Roma, o ministro do Interior[3] Giuliano Amato disse que não era o caso de fazer menção à filosofia. Mas o que pensam os filósofos a respeito disso? Fizemos essa pergunta a Giorgio Agamben, um dos filósofos que mais refletiu acerca dos dispositivos políticos.
Andrea Cortellessa As estatísticas apontam que os delitos efetivamente perpetrados diminuem, enquanto que na opinião pública cresce um sentimento de insegurança. Por que a questão da segurança é hoje a mais sentida?
Giorgio Agamben Como já aconteceu com o estado de exceção, hoje a Segurança se tornou o paradigma de governo. Michel Foucault, no seu curso do Collège de France nos anos 1977-78, se perguntou sobre a origem desse conceito, mostrando como ele nasceu na prática de governo dos Fisiocratas, às vésperas da Revolução Francesa.
O problema era a pobreza, que desde então os governantes se esforçavam para prevenir; segundo Quesnay, ocorre, ao contrário, aquilo que define precisamente a Segurança: deixar que a pobreza aconteça para, então, governá-la na direção oportuna.
Do mesmo modo, o discurso atual da Segurança não é voltado para prevenir atentados terroristas ou outras desordens; ele tem, na realidade, a função de controle a posteriori. Na investigação que se seguiu às desordens em Genova relacionadas ao G8, um alto funcionário da polícia declarou que o governo não queria ordem, mas sim gerir a desordem.
As medidas biométricas, como o controle da retina introduzido na fronteira dos Estados Unidos, do qual agora se propõe o fortalecimento, herdam funções e tipologias de práticas introduzidas no século XIX para impedir a reincidência dos criminosos: das fotos identificadoras às impressões digitais.
Os governos parecem considerar todos os cidadãos, em suma, como terroristas em potencial. Mas esses controles não podem, por certo, prevenir os delitos: podem somente evitar que estes venham a se repetir.
Andrea Cortellessa Tanto mais ineficazes diante de um kamikaze, que por definição age uma só vez.
Giorgio Agamben Uma democracia que se reduz a ter como únicos paradigmas o Estado de Exceção e a Segurança não é mais um democracia. Após a Segunda Guerra Mundial, pensadores políticos inescrupulosos, como Clinton Rossiter, surpreenderam ao declarar que para defender a democracia nenhum sacrifício é suficientemente grande, incluindo até mesmo a suspensão dessa mesma democracia. Assim, hoje, a ideologia da Segurança se orienta no sentido de justificar medidas que, de um ponto de vista jurídico, podem ser definidas somente como bárbaras.
Andrea Cortellessa O “delito Reggiani” em Roma teve como conseqüência a tentativa de acabar com campos Rom[4] e, de fato, colocou em discussão o princípio da livre circulação de pessoas, que está entre os fundamentos da União Européia, da qual a Romênia faz parte de pleno direito. Mas o que pensar desse tipo de providência que, antes de tudo, deixa à população somente um dia para refletir?
Giorgio Agamben O dado mais preocupante face a medidas que violam os mais elementares princípios do direito é o silencio dos juristas. No interior do pacote sobre Segurança anunciado há disposições – como aquelas de combate a pedofilia online[5] – que, de fato, instituem o crime de intenção. Mas na história do direito a intenção pode constituir um agravante; não pode ser, jamais, um crime em si.
Este é somente um exemplo da barbárie jurídica perante a qual estamos: temos assistido a debates sobre a possibilidade ou não de praticar a tortura.
Se um historiador confrontasse os dispositivos legais existentes durante o Fascismo e aqueles em vigor hoje, tenho receio de que ele concluísse desfavoravelmente ao presente. Ainda estão vigentes leis, emanadas nos assim chamados “anos de chumbo”, que proíbem a hospedagem de uma pessoa sem que os donos da casa comuniquem-na à autoridade policial dentro de 24 horas. Norma essa que ninguém aplica e da qual a maior parte das pessoas sequer tem conhecimento, mas que pune tal comportamento com um mínimo de 6 meses de reclusão!
Andrea Cortellessa Esse estado de coisas deforma também nossa percepção do tempo. Tanto o controle proposto como prevenção que é, ao invés, controle tardio, quanto a intenção sexual que, ao contrário, pune crimes ainda não cometidos (realizando, assim, um conto de Philip K. Dick levado ao cinema por Spielberg) instituem um falso presente. Você acredita que tenha entrado em crise o único entre os valores da Revolução Francesa que parecia ter ainda algum “appeal”, isto é, o valor da Liberdade?
Giorgio Agamben Isso, em larga medida, é um dado factual. As limitações da liberdade que, hoje, o cidadão de países chamados democráticos está disposto a aceitar são incrivelmente mais amplas que aquelas que teria aceito há vinte anos trás. Vejamos o projeto de um arquivo de DNA[6]: uma das maiores aberrações, e também das maiores irresponsabilidades, desse pacote de Segurança. Foi o acúmulo de dados anagráficos [dados oficiais de identificação pessoal - N.T.] que permitiu os nazistas, nos países ocupados, a identificar e deportar os judeus. É possível que não nos seja perguntado o que acontecerá no dia em que um ditador puder dispor de um arquivo genético universal?
Mas basta pensar em como é transmitida a idéia de que os espaços públicos são monitorados por câmeras. Um ambiente similar não é uma cidade, mas o interior de uma prisão! As empresas que fabricam os dispositivos biométricos sugerem que estes sejam instalados nas escolas fundamentais e nos refeitórios estudantis, de modo a habituar a pessoa desde a infância a esse tipo de controle. O objetivo é formar cidadãos completamente privados de liberdade e, o que é pior, que não se dêem conta disso.
Andrea Cortellessa Tudo isso em nome da democracia. Mistificação sobretudo lingüística, exatamente como aquela de 1984 de Orwell: Guerra é Paz, Escravidão é Liberdade. Fala claramente a história lingüística das práticas de guerra conduzidas nos últimos 15 anos. Desse modo, não lhe parece que a política, entendida como debate de opiniões, não possui nenhum mais espaço?
Giorgio Agamben Como as guerras vêm apresentadas enquanto operações de polícia, a democracia se torna sinônimo de uma mera prática de governo da economia e da segurança. É aquela que no século XVIII se chamava “ciência da polícia”, para distingui-la da política. Sempre mais se afirma a idéia, equivalente a um verdadeiro e próprio suicídio do direito, que é possível normatizar juridicamente tudo, incluído aquilo que diz respeito à ética, à religião e à sexualidade. Uma parte importante [dessa normatização] é realizada pelos media que, perdendo sua função crítica, se tornam cada vez mais órgãos de governo.
Notas da tradutora
[1] No dia 30 de outubro de 2007, os ministros Giuliano Amato e Clemente Mastella propuseram ao Conselho de Ministros um “pacote de segurança”, o qual foi aprovado na reunião deste mesmo órgão. Com o objetivo de dar respostas concretas e eficazes aos novos problemas de segurança enfrentados no país, esse pacote foi composto por cinco projetos de lei, os quais tiveram como objetivos, entre outros: combater com mais severidade os crimes causadores de grande impacto social, controlar o terrorismo e a imigração ilegal, prevenir o crime organizado, integrar polícias locais e nacionais para garantir ações rápidas e urgentes, instituir o crime de “falso in bilancio”, o qual condena penalmente os empresários que violam a declaração de bens e movimentações financeiras de suas empresas. Todas as informações podem ser acessadas aqui. .Vale destacar que recentemente, no dia 05/11/2010 foi aprovado mais um pacote de segurança, o qual mantém os objetivos principais do pacote de 2007 e reforça, desse modo, a Segurança como paradigma dos governos atuais. [Voltar ao texto]
[2] Giovanna Reggiani, de 47 anos, foi morta no dia 30 de outubro de 2007 por Romulus Nicolae Mailat, romeno de 24 anos. Esse crime, conhecido como “delito Reggiani”, trouxe à tona o problema da imigração na Itália, ponto que é amplamente discutido no pacote de segurança. Interessante é notar que esse pacote foi aprovado no mesmo dia em que houve o assassinato em questão. [Voltar ao texto]
[3] O “Ministero dell’Interno”, aqui traduzido livremente como Ministério do Interior, se ocupa das questões relativas a segurança pública, imigração, defesa civil – sua missão é a “garantia das liberdades democráticas do país”. [Voltar ao texto]
[4] Os campos “Rom” são espaços habitados por nômades em toda a Itália, a qual se refere aos “Rom” enquanto povos romenos ou eslavos. Nesses ambientes predomina a miséria, as péssimas condições de higiene e saúde e o total abandono de seus habitantes. O romeno acusado pelo delito Reggiani residia em um campo Rom próximo ao local do crime, fato que acirrou os debates acerca da imigração romena e suas conseqüências para a segurança pública. No pacote do segurança discutido por Agamben há menções claras a essa questão: fala-se que entre os estrangeiros, os romenos são os responsáveis pela maior parte dos delitos, sendo que a entrada da Romênia na União Européia teria acentuado o problema. Assim, como aos romenos é garantido o livre acesso aos países da UE, a Itália deve combater, ao máximo, a delinqüência cometida por esse povo. É exatamente essa idéia que orienta os dispositivos do pacote de segurança concernentes à imigração: foram propostos novos instrumentos para a expulsão dos imigrantes sempre que a segurança pública esteja ameaçada. Essas medidas continuam sendo discutidas e ampliadas em todo o território italiano, a exemplo de Roma que, desde 2009, prevê que só pode habitar um campo Rom aquele que passar por um processo de admissão e, uma vez aceito, cumprir diversas regras de comportamento. Essa medida faz parte de todo um regulamento aprovado para a gestão dos campos Rom, o qual inclui constante vigilância dos moradores, inclusive com câmeras, sendo que todos aqueles que adentram o campo devem passar por um processo de identificação. Além disso, há proibição de hospedar pessoas não autorizadas e de fazer fogo fora das áreas permitidas; obrigação de pagar as taxas de água, energia e gás; etc. Aquele que violar as regras está sujeito a perder sua habilitação e ser expulso do campo. Para maiores detalhes, acessar: Regolamento per la gestione dei villaggi attrezzati per le comunità nomadi nel Comune di Roma. Disponível aqui. [Voltar ao texto]
[5] O pacote se segurança institui um crime autônomo para punir quem, com o objetivo de abusar sexualmente de um menor de dezesseis anos, mantém com este contato via internet. Nesse sentido, depreende-se que o fato de um adulto se relacionar com o menor via internet com a intenção de obter vantagens sexuais já configura o crime, sem a necessidade de que o haja o resultado pretendido, qual seja, o abuso sexual. É essa a crítica feita por Agamben, já que o tipo penal viria para criminalizar a intenção, e não o resultado. No Brasil, essa espécie de delito também existe na figura dos crimes formais, nos quais a lei descreve uma ação e um resultado, no entanto o delito estará consumado no momento da prática da ação, independentemente do resultado. O art.241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente pode ser interpretado como um crime formal: “Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”. Nesse tipo penal, existe um objetivo a ser buscado pelo agente, porém, o crime se configura mesmo se o ato de aliciar, instigar ou constranger não resulte, efetivamente, na prática do ato libidinoso pretendido. [Voltar ao texto]
[6] O pacote de segurança trouxe um projeto de lei para regulamentar a instalação de um banco de dados de DNA em toda a Itália, com o objetivo de identificar mais facilmente aqueles que cometem crimes e, por conseguinte, de garantir que estes não fiquem impunes, principalmente em casos de reincidência. Com essa medida, a Itália também ratificaria o Tratado de Prum, o qual prevê a colaboração dos países da União Européia no combate ao terrorismo, ao crime organizado internacional e à imigração ilegal. Segundo se depreende do projeto de lei, estão sujeitos a ter seus DNAs coletados: as pessoas que já estão presas, aquelas que são presas em flagrantes ou são indiciadas por algum crime, as destinatárias de medidas alternativas após sentença transitada em julgado por crime doloso e aquelas que estão sob alguma medida de segurança. [Voltar ao texto]
[Tradução de Elysa Tomazi]
|