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Vodu, Paraíso e Destruição

por Rodrigo Lopes de Barros Oliveira

São Paulo, janeiro de 2010. Após algumas horas do terremoto que destruiu o Haiti, o cônsul geral do país no Brasil, Sr. George Samuel Antoine, apareceu para dizer: “o africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano tá f...”, e deve ser de tanto mexer com macumba. Não há como deixar de atender ao chamado: as declarações do Sr. cônsul, num momento de teste para a diplomacia (em meio à ocupação militar da ilha, a catástrofe de um terremoto, a miséria e a guerrilha urbana), são a prova da estupidez em ação – num duplo sentido que podemos retirar de Avital Ronell (Stupidity, 2002): uma das forças que fazem a história (ao lado da economia e da violência como dito por Marx) em pleno funcionamento diante de nós através da inocência, reprodução de clichês, “erros de expressão”, e “dificuldade com a língua portuguesa” de um sujeito que vive há mais de trinta anos no Brasil e ocupa um importante espaço de poder e tomada de decisões, mas também em definir o Outro como estúpido, anti-moderno, selvagem e animalesco – neste caso, pelo culto vodu – como é de se entender nas palavras do Sr. cônsul. Para não cairmos no personalismo, devemos, porém, arriscar uma genealogia deste pensamento conservador justamente na tensão e resposta dos negros e das religiões de matrizes africanas.

Borges (Historia universal de la infamia, 1935), nos conta que o frei dominicano Bartolomé de las Casas, num gesto de filantropia, convenceu o rei da Espanha a não mais utilizar os índios que se extenuavam nas minas de ouro antilhanas, mas africanos: foi responsável assim pelo blues, o sucesso de Pedro Figari, a prosa de Vicente Rossi, o tamanho mitológico de Lincon, os mortos da guerra de secessão, o verbo linchar, o tango, o napoleanismo de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente do Haiti, o candomblé, e estes últimos três, podemos dizer, como resistência ao processo de animalização dos negros. Sim, pois negociados como cavalos, no comércio de tabaco da Bahia, ouro de Minas Gerais ou açúcar caribenho, o negro era rebaixado ao inumano pelos senhores e o patriarcado que os sustentavam. O escravo, diz Baudrillard, é a quem se nega a morte por sacrifício, honrosa, e lhe permite apenas a sobrevivência: uma morte lenta pelo trabalho, desonrosa e inumana (L’Échange symbolique et la mort, 1976). A possessão no vodu atuava neste ponto de forma paradoxal e sofisticada: Alfred Métraux (Le Vaudou Haïtien, 1958) ao especular sobre os elementos dramáticos da possessão (antecipando, por sinal, os posteriores estudos sobre performance e as religiões do atlântico negro) vai mostrar quão animalesco é este ritual: o possuído é chamado de cavalo e executa gestos selvagens. “A relação entre o deus [loa] e o homem a quem ele tomou em possessão é comparável àquela de um cavaleiro e sua montaria. [...] O indivíduo num estado de transe não é de modo algum responsável por suas palavras e ações. Como pessoa ele cessa de existir”. O estado de transe é precisamente um limiar, um entre-lugar, esta tensão entre humanização e desumanização, ou como diria Giorgio Agamben, subjetivação e dessubjetivação. Ademais, o próprio sacrifício no vodu, como mostrou Georges Bataille (altamente influenciado pelos escritos de Métraux sobre a religião da serpente e pelas fotos de Pierre Verger dos candomblés baianos), é também parte desta tensão humano/animal, uma animalidade revisitada através do instante sacrificial (L'Érotisme, 1957). Estas considerações de Bataille sobre o vodu/candomblé e o sacrifício reverberaram por grande parte dos intelectuais do século XX, inclusive servindo de base para um dos mais importantes, Jacques Derrida, escrever dois de seus mais belos livros (Donner le temps, 1991; Donner la mort, 1992). Mas voltemos ao porquê da sofisticação da resistência dos negros contra seu genocídio: ora, um dos motores ideológicos do racismo, segundo Hannah Arendt, é considerar o Outro em sua animalidade, ou a si mesmo como divindade, como povo escolhido que tem o direito de dominar e subjugar os que ainda estão em um estado selvagem (The origins of the Totalitarianism, 1951). Assim, por meio da possessão, ao se transformarem em “cavalos”, os negros demonstravam toda sua humanidade através dessa transgressão: um retorno ao inumano somente pode ser praticado pelo humano. Algo que cada vez faz mais sentido na modernidade, onde, segundo Giorgio Agamben, a animalização do homem se tornou a regra, sendo que o conflito político decisivo que governaria todos os outros conflitos seria este entre a humanidade e a animalidade do homem (L’aperto, 2002).

O livro de outro meio argelino – Frantz Fanon (Les Damnés de la Terre, 1961) – se abre com o prefácio de Jean-Paul Sartre no qual ele também descreve esta mesma arma de resistência, que penetra a luta anti-colonial, do tráfico de escravos às últimas guerras de libertação das nações africanas. O que era um simples ritual religioso, de troca entre o profano e o sagrado, se torna uma arma contra o poder conservador dos brancos, uma performance da violência represada que “ao mesmo tempo, [possui] os ídolos [do vodu] que lhes protegem: em outras palavras, os colonizados protegem-se da alienação colonial”. Foram muitas as rebeliões de escravos pela América diretamente ligadas ao vodu e outras religiões do atlântico negro. Louis Sala-Molins nos dá exemplos de algumas delas, de quando os tambores do vodu tornaram as coisas mais seriais e as armas e o ferro tomaram a palavra: Old Cudjoe na Jamaica, Zan-Zan, Boston e Araby no Suriname, Ganga Zumba no Brasil, Boukman e Mackandal no Haiti, entre outros. Boukman, que era um sacerdote vodu, e por muitos considerados como aquele que organizou as cerimônias religiosas estopins da revolução haitiana, ao falar à multidão de escravos não temia dizer: “joguem fora o símbolo do Deus dos brancos que tão freqüentemente nos faz sofrer, e escutem a voz da liberdade, que fala no coração de todos nós”. Também houve Mackandal: que era possuído por Papa Legba (aqui conhecido por Exu) para abrir o caminho dos escravos para a libertação. Figura messiânica, de educação muçulmana, adepto de estratégias terroristas, ele organizou por seis anos um envenenamento em massa (através do conhecimento das plantas que o vodu lhe ensinava) que deveria dizimar todos os brancos da ilha. A água de cada casa da capital da província deveria ser envenenada e o ataque final empreendido enquanto os senhores agonizavam: evento retomado por Alejo Capentier (El reino de este mundo, 1949), para quem o vodu ocupa papel central na revolução haitiana. Embora o ataque inicial de Mackandal tenha falhado, seu espírito continuaria influenciando outros através do vodu, numa contraposição a visão de C. L. R. James do desdobramento de uma luta de classes e a centralidade de Toussaint nos eventos da ilha de São Domingos (The Black Jacobins, 1938). Para mais ou para menos, a participação do vodu como força histórica na revolução haitiana é inegável, e esta última teve também claros desdobramentos internacionais. Vejamos por exemplo as considerações de Susan Buck-Morss (Hegel and Haiti, 2009): neste texto, a filósofa estadunidense demonstra que Hegel somente pode escrever um capítulo de sua obra mais importante, Fenomenologia do Espírito, porque estava sob a influência dos acontecimentos no Haiti, dos quais tomava conhecimento por meio de jornais europeus. O capítulo de que fala se trata de “dominação e escravidão”, onde Hegel vai estabelecer a relação entre senhor e escravo e de onde Marx, segundo Bataille (La Littérature et le Mal, 1957) vai partir para forjar o conceito de luta de classes. Assim, sem Haiti não haveria este Hegel que conhecemos, tampouco Marx ou Lenin e a história do século XX seria outra.

Logo após a revolução, o Haiti se transformou numa potência militar do continente americano que em poucas décadas caiu em declínio para se transformar num dos países mais pobres do mundo. Ir à Alemanha nazista, talvez nos ajude a entender este acontecimento. No final da segunda guerra mundial, os aliados proporcionaram um dos maiores empreendimentos de destruição na história moderna: os bombardeios das cidades do Terceiro Reich. W. G. Sebald nos conta este processo de total aniquilamento: os escombros, as ruínas, o cheiro dos cadáveres de 600.000 mortos, as toneladas de bombas lançadas sobre 131 cidades. Citando os generais aliados, fica claro que o fim último era a destruição pela destruição: o inimigo deveria ser aniquilado com suas casas, sua história, seu meio-ambiente tanto quanto fosse possível (Luftkrieg und Literatur, 1997). A destruição das cidades alemãs, portanto, foi muito além do objetivo de vencer a guerra: é como se a Alemanha devesse ser expurgada de todo o mal que o projeto de modernidade nazista, anti-progressista até, representava para o ocidente. Este tipo de lógica nas guerras não é novo por sinal, lembra os banhos de sangue que os romanos faziam após a conquista de uma cidade para purificá-la. E isto volta também nas catástrofes naturais: como o terremoto de Lisboa, visto como uma punição divina ao mal que assolava a Europa católica. Podemos também falar da inundação Nova Orleans (que suscitou iguais comentários), um lugar que é a continuação do Caribe nos Estados Unidos, conhecido também pela forte presença de descendentes de africanos, inclusive com práticas vodu, e ainda o recente alagamento de outra cidade negra, São Luiz do Paraitinga – nestes dois últimos casos uma destruição também provocada pela omissão do estado que nada fez para evitá-las. Nova Orleans, por sinal, nos ensinou a lição de que a própria reconstrução da cidade é outro processo de destruição: reabilitando a parte turística, pitoresca e branca, e condenando as periferias ao desaparecimento em uma cidade fantasma. A retórica empregada ao terremoto do Haiti segue nesta mesma linha: amaldiçoado por ser um país negro (já vimos inclusive em Nietzsche, Genealogia da Moral, a histórica associação etimológica entre negro e mal), praticante de outra cosmogonia vista como diabólica, palco da maior e mais bem sucedida revolta de escravos na América, é purificado por um terremoto, expurgado do mal, este mal inerente a cor negra.

Toda aquela centralidade do Haiti e do vodu na história ocidental moderna parece ser ignorada por seu próprio cônsul geral. Talvez trinta anos não sejam suficientes para aprender português, mas pelo visto foram o bastante para o Sr. cônsul entender as dinâmicas raciais no Brasil. Ao ser acusado de racismo por suas declarações, ele se defende com aquele argumento clássico por aqui muito utilizado: invoca um suposto bisavô negro morto há mais de 150 anos, que a pesar de não lhe haver legado muita melanina, transmitiu uma herança meio mística que o incapacita de fazer comentários racistas. Isto nos joga luz inclusive sobre a liderança brasileira na ocupação do Haiti a fim de entendermos por que razão um país como o nosso, miticamente pacífico, sem guerras, conflitos e catástrofes naturais, se meteria numa intervenção militar no país mais pobre da América. Sérgio Buarque de Holanda (Visão do Paraíso, 1958) mostra a coincidência entre os textos religiosos sobre o paraíso e os relatos de viagem sobre o Brasil no século XVI e XVII, esta visão acabou marcando o processo de colonização e expansão das fronteiras, como, por exemplo, na busca pelo eldorado mítico empreendida pelos bandeirantes. Segundo Thiago Nicodemo (Urdidura do Vivido, 2008), no século XIX, por trás do esforço de Sérgio estaria a gênese deste acervo de imagens do paraíso e a sua incorporação no mito de fundação da nação brasileira, o que culmina na forja duma unidade do estado e na conformidade nacional: o mito é própria estrutura estatal do Brasil e se reflete inclusive na política externa do país desde então, como expansão deste paraíso pela América Latina (vide Acre, Uruguai, etc.), pois aqui “em se plantando tudo dá”, “não existem catástrofes naturais”, conseguimos até evitar que o Haiti fosse aqui – o grande medo das elites brasileiras do século XIX em serem dizimas por uma rebelião em massa de escravos – para mais tarde vivermos num paraíso racial: é como se tivéssemos licença poética para sermos imperialistas e o Haiti fosse mais uma etapa deste mito do paraíso em ação e expansão. Daí que possamos entender a nossa maior ajuda à pacificação do Haiti: já na sociedade do espetáculo, a política externa brasileira organizou um jogo de futebol (ironicamente uma reconfiguração do mito do paraíso tão usado pela ditadura militar) com a seleção nacional e suas estrelas num país militarmente ocupado.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.