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Na contramão do resto da América Latina, o Brasil optou, em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, por “esquecer” juridicamente o Terror de Estado praticado pelos agentes da nossa mais recente ditadura. Que camadas de sentido se sobrepõem nesta decisão? O que ela revela sobre a persistência da ditadura em nossas instituições? Que concepção de Estado e de Direito ela encerra?

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Nem justiça nem transição:
a lei brasileira de Anistia e o Supremo Tribunal Federal

por Pádua Fernandes

O nascimento do direito constitucional contemporâneo, no fim do século XVIII, conjugou-se à ideia e à prática da instituição do novo: no caso dos EUA, uma forma nova de governo: em um “novo mundo”, um Estado federativo, republicano e presidencialista, diferente da velha Europa e suas monarquias. No caso da França, um novo governo que substituísse o Ancien Régime.

Hannah Arendt recorda que a palavra revolução significava originalmente restauração – as revoluções francesa e americana é que mudaram esse sentido em favor de uma “nova ordem das coisas”[1]. E a revolução americana, além da fundação de um novo corpo político, marcaria o começo de uma específica história das nações.

Sieyès, revolucionário francês e teórico do poder constituinte, prontamente percebeu a necessidade de não apenas delimitar os poderes do Estado, mas também de prever garantias aos cidadãos. Dessa forma, ao projeto de Constituição, defendeu aduzir um projeto de declaração de direitos do homem e do cidadão:

Os representantes da nação francesa, reunidos em Assembleia Nacional, reconhecem que têm, por seus mandatos, a incumbência especial de regenerar a Constituição e o Estado.
Consequentemente, eles irão, sob esse título, exercer o poder constituinte; […]
Consideram que toda união social e, em consequência, toda constituição política, só pode ter como objeto manifestar, estender e assegurar ‘os direitos do homem e do cidadão’.
Eles julgam, pois, que devem, a princípio, se incumbir de reconhecer esses direitos; que sua exposição racional deve preceder o plano da constituição, como sendo sua preliminar indispensável, e que isto significa apresentar a todas as constituições políticas o objeto ou a meta que todas, sem distinção, devem se esforçar em atingir.
[2]

O constitucionalismo contemporâneo tem procurado, com mais ou menos felicidade, instituir novas instituições e as garantias dos cidadãos. Porém, tanto a novidade quanto as garantias da Constituição brasileira de 1988 foram rompidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) número 153, que questionava Lei 6683, de 28 de agosto de 1979. Tratava-se da lei de anistia aprovada no início do governo do General Figueiredo. A ação foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2008, subscrita, entre outros, por Fábio Konder Comparato, que já muito escreveu sobre a impropriedade ética e a inconstitucionalidade dessa lei.

No julgamento, em abril de 2010, o eclipse do direito constitucional viu-se conjugado a um revisionismo histórico cuja nefasta aliança desmente, em cada vírgula, o “direito à memória e à verdade”, pretensamente reafirmado pelos Ministros em cada voto que decidiu pela impunidade dos torturadores.

O Ministro Relator, Eros Roberto Grau, em seu relatório, não apenas citou o parecer de Roberto Gurgel, Procurador-Geral da República (contrário à procedência da ação), como adotou a tese defendida por Gurgel de que a lei de anistia teria resultado de um acordo do governo com a sociedade civil, pretensamente após um debate nacional:


22. Prossegue dizendo que “[a] relevantíssima questão submetida ao Supremo Tribunal Federal, entretanto, não comporta exame dissociado do contexto histórico em que editada a norma objeto da arguição, absolutamente decisivo para a sua adequada interpretação e para o juízo definitivo acerca das alegações deduzidas pela Ordem, como, aliás, já destacado em outros pronunciamentos trazidos aos autos. A anistia, no Brasil, todos sabemos, resultou de um longo debate nacional, com a participação de diversos setores da sociedade civil, a fim de viabilizar a transição entre o regime autoritário militar e o regime democrático atual. A sociedade civil brasileira, para além de uma singela participação neste processo, articulou-se e marcou na história do país uma luta pela democracia e pela transição pacífica e harmônica, capaz de evitar maiores conflitos” [fls. 598/599]. (p. 7)

O voto do Relator tomou essa versão errônea dos acontecimentos como fato histórico. E, de forma retórica, afirmou que a ação da OAB equivaleria a negar historicamente a campanha pela anistia:


Reduzir a nada essa luta, inclusive nas ruas, as passeatas reprimidas duramente pelas Polícias Militares, os comícios e atos públicos, reduzir a nada essa luta é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, com desassombro e coragem lutaram pela anistia, marco do fim do regime de exceção. (p. 27) arefa não foi cumprida.

Na verdade, foi a própria lei de 1979 que negou as pretensões levantadas nas passeatas e nas ruas, e não a OAB de hoje, que lutava contra a lei de ontem. Os demais Ministros que votaram contra a procedência da ação seguiram o mesmo fundamento histórico. Carmen Lúcia afirmou: “E a sociedade falou altissonante sobre o Projeto de Lei, que se veio a converter na denominada Lei de Anistia [...]” (p. 4), que teria vindo do amplo debate:


Não se pode negar que a anistia brasileira, concedida na forma da Lei n. 6683/79, resultou de uma pressão social, em especial dos principais setores atuantes da sociedade civil, como intelectuais, estudantes, sindicatos, efoi [sic] objeto de amplo debate e de manifestações expressas e específicas das principais entidades e personalidades então atores do processo da chamada “abertura”. (p. 15)

Celso de Mello seguiu a mesma linha:


No fundo, é preciso ter presente que a Constituição sob cuja égide foi editada a Lei nº 6.683/79, embora pudesse fazê-lo, não reservou a anistia apenas aos crimes políticos, o que conferia liberdade decisória, ao Poder Legislativo da União, para, com apoio em juízo eminentemente discricionário (e após amplo debate com a sociedade civil), estender o ato concessivo da anistia a quaisquer infrações penais de direito comum. (p. 16)

No voto desse Ministro, a negação da história não se revelou apenas na ficção oficialesca do “amplo debate”, mas na imaginação de que ocorreu algum “poder discricionário” do Poder Legislativo:


E foi com esse elevado propósito que se fez inequivocamente bilateral (e recíproca) a concessão da anistia, com a finalidade de favorecer aqueles que, em situação de conflitante polaridade e independentemente de sua posição no arco ideológico, protagonizaram o processo político ao longo do regime militar, viabilizando-se, desse modo, por efeito da bilateralidade do benefício concedido pela Lei nº 6.683/79, a construção do necessário consenso, sem o qual não teria sido possível a colimação dos altos objetivos perseguidos pelo Estado e, sobretudo, pela sociedade civil naquele particular e delicado momento histórico da vida nacional. (p. 17)

Aqui, além da imagem anistórica de um caráter bilateral e recíproco da lei de anistia, o Ministro imagina um consenso nacional: o Estado, ao buscar a impunidade a seus agentes que violaram os direitos humanos, perseguiria um “alto objetivo” supostamente compartilhado com a sociedade civil.

O Ministro também comete uma impropriedade historiográfica, em matéria de fontes: para compreender o debate histórico de 1979, cita um discurso de 1981:


Destaco, por isso mesmo, como elemento de útil compreensão das circunstâncias históricas e políticas do momento em que se elaborou a Lei de Anistia, fragmentos de manifestação de um grande Senador da República a propósito desse tema.
Em discurso proferido no Senado da República, em 17 de março de 1981, o eminente Ministro PAULO BROSSARD […] (p. 21)

Teria sido mais consequente, em termos de fontes históricas, ir aos próprios debates do projeto de lei; porém, se o Ministro o tivesse feito, o voto teria que ser outro. Façamos, portanto, este trabalho.

O partido da oposição consentida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), apresentou substitutivo, assinado pelos deputados federais Ulysses Guimarães, Freitas Nobre e pelo senador Paulo Brossard, que expressamente excluía dos efeitos da anistia os torturadores, no parágrafo segundo do artigo primeiro: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os atos de sevícia ou de tortura, de que tenham ou não resultado morte, praticados contra presos políticos.”[3]

O que se vê nos dois longos volumes dos debates do projeto de lei? As emendas da oposição foram sistematicamente recusadas – o partido do governo, a ARENA, tinha maioria. Mesmo as emendas do partido de sustentação política da ditadura foram rejeitadas. Em determinado momento, Roberto Freire, então deputado federal pelo MDB, interveio, em vão, por emenda de parlamentar da ARENA.[4] O senador Pedro Simon, do MDB, foi um dos parlamentares que denunciou a farsa desses debates parlamentares:


[…] acho que houve diminuição do Congresso em não aproveitar, em não votar, em não discutir, em não debater, porque as emendas que foram aproveitadas foram aquelas que o Sr. Relator trouxe quando apresentou o seu relatório. Emendas, que todos nós sabemos, foi após a reunião com o Ministro da Justiça. Daqui, do debate, não saiu nada. Isto a História vai registrar.[5]

A Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal deixaram de fazer o registro, ao contrário de Fábio Konder Comparato. Quando, no Chile, Pinochet declarou a anistia em 1978, dois então senadores pela ARENA não tardaram em mostrar sua contrariedade; Jarbas Passarinho apressou-se em declarar que “O Brasil ainda não está preparado para esse tipo radical de solução política, ao menos por enquanto”; segundo José Sarney, “a anistia ampla, irrestrita e recíproca é realmente uma posição radical, inaceitável, porque não é do interesse da nação.”[6] Essa anistia ampla, de fato, não estava nos planos da ditadura militar, e não foi contemplada no projeto de lei enviado ao Congresso Nacional. A extensão da anistia aos chamados “crimes de sangue” cometidos pelos opositores da ditadura militar foi realizada pela jurisprudência do Superior Tribunal Militar.[7]

A campanha da anistia, que ganhava às ruas, não era condescendente com os torturadores e assassinos da ditadura. O Programa Mínimo de Ação da Seção de São Paulo do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA/SP) incluiu como primeiro ponto:


1. Fim Radical e Absoluto das Torturas. Denunciar as torturas e contra elas protestar, por todos os meios possíveis. Denunciar à execração pública os torturadores e lutar pela sua responsabilização criminal. Investigar e denunciar publicamente a existência de organismos, repartições, aparelhos e instrumentos de tortura e lutar pela sua erradicação total e absoluta.
[8]

Trata-se de documento apreendido por agente do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP). O destaque em negrito foi feito pelo próprio CBA; o sublinhado, contudo, foi feito à mão, provavelmente por algum agente do DEOPS/SP. De fato, tratava-se de ponto sensível para os agentes da repressão política.

O Congresso Nacional pela Anistia, em suas resoluções tomadas em novembro de 1978, aprovou medida análoga em seu Programa Mínimo:


Fim Radical e Absoluto das Torturas. Denunciar as torturas e contra elas protestar, por todos os meios possíveis. Denunciar à execração pública os torturadores e lutar pela sua responsabilização criminal e do sistema a que eles servem, fazendo que essa luta seja assumida não apenas individualmente, mas, coletivamente, pelos movimentos de anistia e pelas entidades profissionais a que se acham vinculadas as vítimas.
[9]

Não ocorreu uma discussão pública livre; muito pelo contrário, a campanha pela anistia, vinda de baixo para cima, era, por si, considerada adversa aos interesses da ditadura militar e, assim, um perigo para a segurança nacional, razão pela qual militantes foram presos por participarem da campanha. Já em 1975, documentos do DEOPS/SP mostravam a preocupação oficial com a anistia. Transcreve-se parte de um relatório não assinado do Ministério da Aeronáutica sobre conferência da advogada Terezinha Zerbini, militante feminista e líder do Movimento Feminino em Favor da Anistia dos Presos Políticos, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre em 11 de julho de 1975:


O “Movimento Feminino em Favor da Anistia dos Presos Políticos” tem se caracterizado pela participação de um pequeno e bem organizado grupo, comprometidos com ideologias e políticos afastados pela Revolução de 64.
Explorando o lado sentimental da mulher, procuram, através de manipulações escusas, conscientizá-las da necessidade de se integrarem ao Movimento de Anistia dos Presos Políticos.
Essa arregimentação das forças de pressão contra o Governo, embora ainda sem expressão e apoio popular, representa mais um desafio e uma contestação aberta aos princípios defendidos pelo movimento revolucionário.
[10]

Lançado em abril de 1978, o jornal Anistia logo foi enquadrado como “propaganda adversa”[11] pelo DEOPS/SP. De acordo com o Decreto-lei n. 898 de 1969, a lei de segurança nacional então vigente, no § 2º do artigo 3º, “A guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contra-propaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais.” Essa categoria de ato contra a segurança nacional foi mantida com a mesma redação pela legislação que revogou o Decreto-lei n. 898, a lei n. 6620 de 1978, vigente no tempo em que foi aprovada a lei de anistia.

Pode-se examinar agora o argumento de Eros Roberto Grau de que a lei de anistia ganhou hierarquia constitucional com a Emenda Constitucional n. 26 de 1985:


54. Eis o que se deu: a anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Não que a anistia que aproveita a todos já não seja mais a da lei de 1979, porém a do artigo 4º, § 1º da EC 26/85. Mas estão todos como que [re]anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto --- o mesmo texto --- foi substituído por outro. O texto da lei ordinária de 1979 resultou substituído pelo texto da emenda constitucional.
A emenda constitucional produzida pelo Poder Constituinte originário constitucionaliza-a, a anistia. E de modo tal que --- estivesse o § 1º desse artigo 4º sendo questionado nesta ADPF, o que não ocorre, já que a inicial o ignora --- somente se a nova Constituição a tivesse afastado expressamente poderíamos tê-la como incompatível com o que a Assembléia Nacional Constituinte convocada por essa emenda constitucional produziu, a Constituição de 1988. (p. 69)

O Ministro Gilmar Mendes, no entanto reputado como constitucionalista, desenvolveu o argumento de Eros Roberto Grau e afirmou que a Emenda de 1985 era um “limite material” à Constituição de 1988.[12]

A singular ideia de que emenda feita a uma Constituição revogada está acima da Constituição vigente[13] coaduna-se com o quadro de aniquilamento do constitucionalismo pela atual formação do Supremo Tribunal Federal. Como um dos exemplos desse quadro, pode-se lembrar que Eros Roberto Grau introduziu o “estado de exceção” na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para servir, alegadamente, de fundamento teórico para os casos em que essa Corte resolve deixar de aplicar a Constituição. Leonardo D’Avila de Oliveira bem ressaltou a incongruência da fundamentação:


É de se surpreender que a Corte mais importante do país sustente que a manutenção do ordenamento somente se dá com a sua própria suspensão. Para tanto, justifica-se este entendimento com a teoria de Carl Schmitt, sem dúvida um grande constitucionalista do século XX, mas que, apesar de tudo, foi o jurista que se debruçou em justificar o regime de Hitler na Alemanha Nazista.
[14]

A incongruência ressalta-se quando se lembra que Carl Schmitt atacou a jurisdição constitucional (que, apesar de tudo, ainda é uma atribuição do Supremo Tribunal Federal), defendendo o papel do “Führer” como guardião da Constituição. Trata-se da famosa polêmica que manteve contra Hans Kelsen, que defendia as cortes constitucionais, argumentando que Schmitt queria ressuscitar o “princípio monárquico” do absolutismo. O que o grande jurista austríaco, que era um liberal na filosofia política e foi afastado do ensino universitário alemão pelo nazismo (Carl Schmitt tomou seu lugar), pensaria ao ver que, no Brasil, um Führer não foi necessário?

Apesar das disposições constitucionais concernentes à internacionalização dos direitos humanos, o direito internacional foi esquecido, como é habitual nessa Corte, no julgamento da ADPF n. 153. O Ministro Celso de Mello referiu-se a alguns tratados, mas, ao contrário do Ministro Lewandowski, que votou pela procedência parcial da ação, o fez no esquecimento completo do Direito Internacional Humanitário aplicável! No voto do Ministro Relator, o papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi recalcado, inclusive na parcial referência feita à inconstitucionalidade das leis de anistia na Argentina.

Também foi esquecida – ou recalcada – a questão da justiça de transição, que levou o Brasil a ser processado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se do caso 11.552, Julia Gomes Lund e outros contra República Federativa do Brasil, aberto por causa dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. No momento em que este pequeno texto é escrito, a decisão ainda não foi prolatada – não se sabe se a diplomacia brasileira conseguirá reverter a jurisprudência da Corte, que firmemente condena Estados por causa de leis de autoanistia como a lei brasileira.

A noção de justiça de transição diz respeito aos procedimentos que têm como fim a apuração e sanção dos abusos contra os direitos humanos ocorridos em um regime político passado. Suas formas são diversas, como já reconheceu a ONU.[15] No Brasil, no entanto, não se pode falar que ela tem realmente ocorrido, apesar das indenizações pagas a perseguidos políticos e a seus familiares (o que seria a “dimensão reparatória” da justiça de transição[16]). A simples reparação não basta para prevenir novas violações de direitos humanos, e a justiça de transição, embora lide com o passado, o faz para preparar o futuro: uma sociedade com respeito à dignidade humana.

A posição do STF, de que a emenda da Constituição da ditadura militar é superior à Constituição da democracia, significa, politicamente, que não houve justiça de transição porque a transição jamais aconteceu: as normas superiores continuam a ser, segundo o Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelo velho poder autoritário oriundo do golpe de 1964.

Nessa opção pelo continuísmo (que José Honório Rodrigues veria como confirmadora de sua tese sobre a história brasileira), há uma contradição jurídica, mas não política, com decisão de 2009 da mesma Corte. No julgamento da ADPF n. 130, que tinha como objeto a lei de imprensa, a lei n. 5250 de 1967, o Tribunal teve comportamento oposto: achou possível interpretar uma lei de mais de “trinta anos atrás”[17] e considerou-a não recepcionada pela Constituição de 1988. É de se notar que o resultado não incomodou o setor de comunicações no Brasil, importantíssima parcela do braço civil da ditadura militar.

Resultado juridicamente semelhante, no caso da ADPF n. 153, pelo contrário, desagradaria não só os militares como seus apoiadores civis, que certamente não querem ver desvelada sua colaboração com o golpe e o regime dele decorrente. Pois a justiça de transição fundamenta-se no direito à verdade, que vem sendo ultrajado na militância revisionista das Forças Armadas[18] e também – como se viu no julgamento desta ação – pelo Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República.

O revisionismo está ligado a uma singular concepção de jurisdição que não se apoia nem no direito nem na justiça. O Ministro Cezar Peluso, atual presidente desse Tribunal, em seu voto afirmou que “Uma sociedade que queira lutar contra seus inimigos com as mesmas armas, os mesmos instrumentos e sentimentos está condenada ao fracasso histórico.”[19]

Esse voto final foi, decerto, o mais apropriado para ratificar o pasmo que deixa todo o acórdão: o Ministro pretende que o julgamento de alguns crimes cometidos pelos agentes da ditadura pela justiça brasileira de hoje[20] equivale à tortura, aos assassinatos, aos banimentos e às cassações ocorridos na ditadura. O pau-de-arara e a toga seriam as mesmas armas, o DEOPS e o fórum seriam o mesmo lugar! O descrédito que o Ministro parece dedicar às suas próprias funções é confirmado por seu voto: não se pode falar de contradição performativa aqui...

Vê-se, pois, que o novo foi traído nesse julgamento – não só a “nova ordem democrática”, que fugazmente se chamou de “Nova República”, mas também no constitucionalismo e sua ideia, ainda não implementada no Brasil, de que o Estado deve obedecer ao direito.

Trata-se, enfim, da manutenção da violência de Estado, tarefa eficazmente cumprida pelo Tribunal. Recordemos novamente de Hannah Arendt: em seu clássico trabalho sobre verdade e política, escreveu sobre como as mentiras políticas modernas, na sua tentativa de reescrever a história e criar imagens que sirvam de sucedâneo à verdade factual, “abrigam um germe da violência” e são o primeiro passo, nos regimes totalitários, para o assassinato de opositores, como foi o caso de Trotsky. [21]

No caso brasileiro, a mentira histórica elevada à condição de jurisprudência não representa apenas mais uma violência contra aqueles que se ergueram contra a ditadura, mas a toda sociedade brasileira de hoje, ainda exposta à tortura e aos desaparecimentos forçados – uma violência com caráter nitidamente de classe social, de cor, de gênero e orientação sexual.

Arendt imagina que as universidade e os tribunais, apesar de expostas ao poder, possam servir de contraponto à mentira organizada pelo “poderio político e social”. No Brasil, o Judiciário já mostrou não estar à altura da tarefa.



[1]
ARENDT, Hannah. On Revolution. London: Penguin Books, 1990, p. 45.
[2] SIEYÈS, Emmanuel-Joseph. Reconhecimento e exposição racional dos direitos do homem e do cidadão. Trad. Pádua Fernandes. Prisma Jurídico. São Paulo, vol. 7, N. 1, p. 133-145, jan./jun. 2008, p. 133. Disponível em http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/view/1011/1063
[3] BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. COMISSÃO MISTA SOBRE ANISTIA. Anistia. Brasília, 1982, vol.I, 1982, p. 71.
[4] Idem, p. 710.
[5] Idem, p. 742.
[6] Trata-se de declarações dadas em 20 de abril de 1978. Documento 50-Z-00-14320. A Anistia. Passarinho: Aqui, ainda não dá. Diário da Tarde. 21 abr. 1978. 1 fl. Público do Estado de São Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.
[7] Segundo Tercio Sampaio Ferraz Jr., se a lei de anistia fosse considerada inválida para os agentes da repressão, o mesmo ocorreria com os que combateram a ditadura (A lei de anistia impede a punição dos que praticaram tortura durante o regime militar? Sim. Folha de S.Paulo. 16 agosto 2008. Disponível em em http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/123). Deisy Ventura discorda dessa posição, tendo em vista a distinção entre crimes políticos (entre os quais se contam o golpe de Estado pelos militares e a resistência contra ele), que podem ser anistiados, e os crimes contra a humanidade, tais como a tortura e o desaparecimento forçado (VENTURA, Deisy. O regime do medo continua. Entrevista dada a Patrícia Fachin. Revista IHU On Line, 2008. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1234 ; ver também a entrevista, dada a este autor: VENTURA, Deisy. Uma caixa de ressonância de eventos no plano global. Prisma Jurídico, vol. 8, n. 1, 2009. Disponível emem http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/issue/view/100/showToc )
[8] Documento 50-Z-08-80-fl. 99. Comitê Brasileiro pela Anistia – Estado de São Paulo (CBA/SP), s/d, 1 fl. Programa Mínimo de Ação. Julho de 1978. 1 fl. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.
[9] Documento 50-Z-00-82-Fl. 268. CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA. Resoluções. Novembro 1978. São Paulo, p.9. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.

[10]
Documento 50-Z-08-1850 e 1849. Brasil. Ministério da Aeronáutica. Informação 410/A2/IV COMAR. 24 set. 1975. 3 fl. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.

[11] Documento 50-Z-00-14930 e 14929. Informe. 18 maio 1978. 3 fl. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.
[12] O voto do Ministro ainda não havia sido publicado na ocasião da escritura deste texto, mas pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=gbtcKYWuO7c&feature=channel

[13] De pronto rejeitada pelos Ministros Lewandowski e Ayres Britto em seus votos, disponíveis em http://www.youtube.com/watch?v=5ranNPsDDAk&feature=PlayList&p=2100D204726BFB89&playnext_from=PL&playnext=1&index=1 e http://www.youtube.com/watch?v=5ranNPsDDAk&feature=PlayList&p=2100D204726BFB89&playnext_from=PL&playnext=1&index=1
[14] OLIVEIRA, Leonardo D’Avila. Inflação normativa: excesso e exceção. Dissertação de mestrado, com orientação de Jeanine Nicolazzi Philippi, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em 2009. Disponível em http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/33933/public/33933-44662-1-PB.pdf
[15 ]“8.The notion of ‘transitional justice’ discussed in the present report comprises the full range of processes and mechanisms associated with a societyís attempts to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice and achieve reconciliation. These may include both judicial and non-judicial mechanisms, with differing levels of international involvement (or none at all) and individual prosecutions, reparations, truth-seeking, institutional reform, vetting and dismissals, or a combination thereof.” (ONU. CONSELHO DE SEGURANÇA. The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies: Report of the Secretary-General. Documento S/2004/616. 23 ag. 2004)
[16] MIRANDA, Lara Caroline; BAGGIO, Roberta Camineiro. A incompletude da transição política brasileira e seus reflexos na cultura jurídica contemporânea: ainda existem perseguidos políticos no Brasil? II Reunião do Grupo de Estudos Justiça de Transição e Internacionalização do Direito – Idejust. São Paulo, abril 2010. Disponível em http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-baggio-miranda.pdf
[17] Tarefa que as Ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie Northfleet consideraram suspeita na ADPF n. 153.
[18] Pode-se lembrar que o revisionismo tem sido praticado até mesmo no ensino fundamental pelas Forças Armadas nos colégios militares: “A história oficial contada aos alunos dos 12 colégios militares do país omite a tortura praticada na ditadura e ensina que o golpe ocorrido em 1964 foi uma revolução democrática; a censura à imprensa, necessária para o progresso; e as cassações políticas, uma resposta à intransigência da oposição. É isso que está no livro didático ‘História do Brasil -Império e República’, utilizado pelos estudantes do 7º ano (antiga 6ª série) das escolas mantidas com recursos públicos pelo Exército.” (PINHO, Angela. Livro do Exército ensina a louvar a ditadura. Folha de S.Paulo, 13 jun. 2010) Na reportagem,o coronel Silva Jardim, diretor do Colégio Militar de Brasília, afirmou que as questões dos desaparecidos e da tortura são proibidas no Exército.
[19] O voto do Ministro ainda não havia sido publicado na ocasião da escritura deste texto, mas pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=bK2Hpfnk2Qg&feature=channel
[20] Ayres Britto, que foi o outro Ministro, com Lewandowski, que votou pela procedência (parcial) da ação, teve a oportunidade de fazer um aparte sobre os casos de crime continuado (o que inclui os desaparecimentos forçados), que não estão prescritos, ao Ministro Peluso. Este Ministro, no entanto, manteve sua posição contrária a tais noções básicas de Direito Penal. Posição mais radical contra essas noções esposou o Ministro Marco Aurélio de Mello, que votou solitariamente pela extinção do processo sem julgamento do mérito, por alegada falta de interesse processual, sustentando que a ADPF seria inútil, tendo a prescrição supostamente alcançado todas as condutas delituosas praticadas na ditadura militar.
[21] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 312.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.