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Literaturas pós-autônomas

por Josefina Ludmer
(Tradução de Flávia Cera)

(Publicado originalmente em Ciberletras - Revista de crítica literaria y de cultura, n. 17, julho de 2007)

Estou buscando territórios do presente e penso em um tipo de escrituras atuais da realidade cotidiana que se situam em ilhas urbanas (em zonas sociais) da cidade de Buenos Aires: por exemplo, o bajo Flores dos imigrantes bolivianos (peruanos e coreanos) de Bolivia Construcciones de Bruno Morales (pseudônimo de Sergio Di Nucci, Buenos Aires, Sudamerica, 2007), e também La Villa de César Aira (Buenos Aires, Emecé, 2001), Monserrat de Daniel Link (Buenos Aires, Mansalva, 2006), o Boedo de Fabián Casas, em Ocio (Buenos Aires, Santiago Arcos, 2006), o zoológico de María Sonia Cristoff em Desubicados (Sudamericana, 2006), e em sua compilação Idea Crónica (Beatriz Viterbo, 2006). Penso também no projeto Biodrama de Vivi Tellas, e em certa arte. Assim como muitas vezes se identificam “as pessoas” (“la gente”) nos meios (Rosita de Boedo, Martín de Palermo), nesses textos os sujeitos se definem pelo seu pertencimento a certos territórios. Estou pensando na reflexão de Florencia Garramuño (Hacia una estética heterónoma: poesía y experiencia en Ana Cristina Cesar y Néstor Perlongher, [publicada em 2008] no Journal of Latin American Cultural Studies). E também penso na reflexão de Tamara Kamenszain (La boca del testimonio: lo que dice la poesía. Buenos Aires, Norma, 2007) sobre certa poesia argentina atual: o testemunho é a “prova do presente”, não “um registro realista do que passou”. Meu ponto de partida é esse. Essas escrituras não admitem leituras literárias; isto quer dizer que não se sabe ou não importa se são ou não são literatura. E tampouco se sabe ou não importa se são realidade ou ficção. Instalam-se localmente em uma realidade cotidiana para “fabricar um presente” e esse é precisamente seu sentido.

I
Imaginemos isto. Muitas escrituras do presente atravessam a fronteira da literatura (os parâmetros que definem o que é literatura) e ficam dentro e fora, como em posição diaspórica: fora, mas presas em seu interior. Como se estivessem “em êxodo”. Seguem aparecendo como literatura e tem o formato livro (são vendidas em livrarias e pela internet e em feiras internacionais do livro) e conservam o nome do autor (que pode ser visto na televisão e em periódicos e revistas de atualidade e recebe prêmios em festas literárias), se incluem em algum gênero literário como o “romance”, e se reconhecem e definem a si mesmas como literatura. Aparecem como literatura, mas não se pode lê-las com critérios ou categorias literárias como autor, obra, estilo, escritura, texto e sentido. Não se pode lê-las como literatura porque aplicam “à literatura” uma drástica operação de esvaziamento: o sentido (ou o autor, ou a escritura) resta sem densidade, sem paradoxo, sem indecidibilidade, “sem metáfora”, e é ocupado totalmente pela ambivalência: são e não são literatura ao mesmo tempo, são ficção e realidade. Representariam a literatura no fim do ciclo da autonomia literária, na época das empresas transnacionais do livro ou das oficinas do livro nas grandes redes de jornais e rádios, televisão e outros meios. Esse fim de ciclo implica novas condições de produção e circulação do livro que modificam os modos de ler. Poderíamos chamá-las de escrituras ou literaturas pós-autônomas.

II
As literaturas pós-autônomas (essas práticas literárias territoriais do cotidiano) se fundariam em dois (repetidos, evidentes) postulados sobre o mundo de hoje. O primeiro é que todo o cultural (e literário) é econômico e todo o econômico é cultural (e literário). E o segundo postulado dessas escrituras seria que a realidade (se pensada a partir os meios que a constituiriam constantemente) é ficção e que a ficção é a realidade.

III
Porque essas escrituras diaspóricas não só atravessam a fronteira da “literatura”, mas também a da “ficção” (e ficam dentro-fora nas duas fronteiras). E isso ocorre porque reformulam a categoria de realidade: não se pode lê-las como mero “realismo”, em relações referenciais ou verossimilhantes. Tomam a forma do testemunho, da autobiografia, da reportagem jornalística, da crônica, do diário intimo, e até da etnografia (muitas vezes com algum “gênero literário” enxertado em seu interior: policial ou ficção científica, por exemplo). Saem da literatura e entram “na realidade” e no cotidiano, na realidade do cotidiano (e o cotidiano é a TV e os meios de comunicação, os blogs, o e-mail, internet, etc). Fabricam o presente com a realidade cotidiana e essa é uma das suas políticas. A realidade cotidiana não é a realidade histórica referencial e verossímil do pensamento realista e da sua história política e social (a realidade separada da ficção), mas sim uma realidade produzida e construída pelos meios, pelas tecnologias e pelas ciências. É uma realidade que não quer ser representada porque já é pura representação: um tecido de palavras e imagens de diferentes velocidades, graus e densidades, interiores-exteriores a um sujeito que inclui o acontecimento, mas também o virtual, o potencial, o mágico e o fantasmático. “A realidade cotidiana” das escrituras pós-autônomas exibe, como em uma exposição universal ou em um mostruário global de uma web, todos os realismos históricos, sociais, mágicos, os costumes, os surrealismos e os naturalismos. Absorve e fusiona toda a mimese do passado para constituir a ficção ou as ficções do presente. Uma ficção que é “a realidade”. Os diferentes hiper-realismos, naturalismos e surrealismos, todos fundidos nessa realidade desdiferenciadora, se distanciam abertamente da ficção clássica e moderna. Na “realidade cotidiana” não se opõe “sujeito” e “realidade” histórica. E tampouco, “literatura” e “história”, ficção e realidade.

IV
A idéia e a experiência de uma realidade cotidiana que absorve todos os realismos do passado altera a noção de ficção dos clássicos latino-americanos dos séculos XIX e XX. Neles a realidade era “a realidade histórica”, e a ficção se definia por uma relação específica entre “a história” e “a literatura”. Cada uma teria sua esfera bem delimitada, o que não ocorre hoje. A narração clássica canônica, ou do boom (Cien años de soledad, por exemplo) traçava fronteiras nítidas entre o histórico como “real” e o “literário” como fábula, símbolo, mito, alegoria ou pura subjetividade, e produzia uma tensão entre os dois: a ficção consistia nessa tensão. A “ficção” era a realidade histórica (política e social) passada (ou formatada) por um mito, uma fábula, uma árvore genealógica, um símbolo, uma subjetividade ou uma densidade verbal. Ou, simplesmente, traçava uma fronteira entre pura subjetividade e pura realidade histórica (como Cien años de soledad; Yo el Supremo, Historia de Mayta de Mario Vargas Llosa, 1984; El mandato de José Pablo Feinmann, 2000; e os romances históricos de Andrés Rivera, como La revolución es un sueño eterno). Essas escrituras “sem metáfora” (como as que analisa Tamara Kamenszain) seriam “as ficções” (ou a realidade) na era dos meios de comunicação e da indústria da língua (na imaginação pública). Seriam a realidade cotidiana do presente de alguns sujeitos em uma ilha urbana (um território local). Formariam parte da fábrica do presente que é a imaginação pública.

V
Na realidadeficção de algumas pessoas [alguna “gente”] em alguma ilha urbana latino-americana, muitas escrituras de hoje dramatizam certa situação da literatura: o processo de encerramento da literatura autônoma, aberta por Kant e a modernidade. O fim de uma era em que a literatura teve “uma lógica interna” e um poder crucial. O poder de definir-se e ser regida “pelas suas próprias leis”, com instituições próprias (crítica, ensino, academias) que debatiam publicamente sua função, seu valor, seu sentido. Debatiam, também, a relação da literatura (ou da arte) com as outras esferas: a política, a economia e também sua relação com a realidade histórica. Autonomia, para a literatura, foi especificidade e auto-referencialidade, e o poder de nomear-se e referir-se a si mesma. E também um modo de ler-se e alterar-se a si mesma. A situação de perda da autonomia da “literatura” (ou “do literário”) é a do fim das esferas ou do pensamento das esferas (para praticar a imanência de Deleuze). Como se disse muitas vezes: hoje se borram os campos relativamente autônomos (ou se borra o pensamento em esferas mais ou menos delimitadas) do político, do econômico, do cultural. A realidadeficção da imaginação pública as contém e as fusiona.

VI
Em algumas escrituras do presente que atravessaram a fronteira literária (e que chamamos pós-autônomas) se pode ver nitidamente o processo de perda da autonomia da literatura e as transformações que produzem. Terminam formalmente as classificações literárias; é o fim das guerras e divisões e oposições tradicionais entre formas nacionais ou cosmopolitas, formas do realismo ou da vanguarda, da “literatura pura” ou “da literatura social” ou comprometida, da literatura rural e urbana, e também termina a diferenciação literária entre realidade (histórica) e ficção. Não se pode ler essas escrituras com ou nesses termos; são as duas coisas, oscilam entre as duas ou as desdiferenciam. E com essas classificações “formais” parecem terminar os enfrentamentos entre escritores e correntes; é o fim das lutas pelo poder no interior da literatura. O fim do “campo” de Bourdieu, que supõe a autonomia da esfera (ou o pensamento das esferas). Porque se borram, formalmente e “na realidade”, as identidades literárias, que também eram identidades políticas. E então se pode ver claramente que essas formas, classificações, identidades, divisões e guerras só podiam funcionar em uma literatura concebida como esfera autônoma ou como campo. Porque o que dramatizavam era a luta pelo poder literário e pela definição do poder da literatura. Borram-se as identidades literárias, formalmente e na realidade, e isto é o que diferencia nitidamente a literatura dos anos 60 e 70 das escrituras de hoje. Nos textos que estou lendo as “classificações” responderiam a “outra lógica” e a outras políticas.

VII
Ao perder voluntariamente a especificidade e atributos literários, ao perder “o valor literário” (e ao perder “a ficção”) a literatura pós-autônoma perderia o poder crítico, emancipador e até subversivo que a autonomia atribuiu à literatura como política própria, específica. A literatura perde o poder ou já não pode exercer esse poder.

VIII
As escrituras pós-autônomas podem exibir ou não suas marcas de pertencimento à literatura e os tópicos da auto-referencialidade que marcaram a era da literatura autônoma: o marco, as relações especulares, o livro no livro, o narrador como escritor e leitor, as duplicações internas, recursividades, isomorfismos, paralelismos, paradoxos, citações e referências a autores e leituras (ainda que sejam em tom burlesco, como na literatura de Roberto Bolaño). Podem situar-se ou não simbolicamente dentro da literatura e seguir ostentando os atributos que as definiam antes, quando eram totalmente “literatura”. Ou podem colocar-se como “Basura” [lixo] (Héctor Abad Faciolince.Basura. I Premio Casa de América de Narrativa Americana Innovadora. Madrid, Lengua de Trapo, 2000) ou “Trash” (Daniel Link. La ansiedad: novela trash. Buenos Aires, El cuenco de plata, 2004). Isso não muda seu estatuto de literaturas pós-autônomas. Nas duas posições ou em suas nuances, essas escrituras colocam o problema do valor literário. Eu gosto e não me importa se são boas ou ruins enquanto literatura. Tudo depende de como se lê a literatura hoje. Ou de onde se leia. Ou se lê este processo de transformação das esferas (ou perda da autonomia ou da “literaturalidade” e seus atributos) e se altera a leitura ou se segue sustentando uma leitura no interior da literatura autônoma e da “literaturalidade”, e então aparece o “valor literário” em primeiro plano. Dito de outro modo: ou se vê a mudança no estatuto da literatura, e então aparece outra episteme e outros modos de ler. Ou não se vê ou se nega, e então seguiria existindo literatura e não literatura, ou ruim e boa literatura.

IX
As literaturas pós-autônomas do presente sairiam da “literatura”, atravessariam a fronteira, e entrariam em um meio (em uma matéria) real-virtual, sem foras, a imaginação pública: em tudo o que se produz e circula e nos penetra e é social e privado e público e “real”. Ou seja, entrariam em um tipo de matéria e em um trabalho social (a realidade cotidiana) em que não há “índice de realidade” ou “de ficção” e que constrói presente. Entrariam na fábrica do presente que é a imaginação pública para contar algumas vidas cotidianas em alguma ilha urbana latino-americana. As experiências da migração e do “subsolo” de certos sujeitos que se definem fora e dentro de certos territórios.

X
Assim, postulo um território, a imaginação pública ou fábrica do presente, onde situo minha leitura ou onde eu mesma me situo. Nesse lugar não há realidade oposta à ficção, não há autor e tampouco há demasiado sentido. Desde a imaginação pública leio a literatura atual como se fosse uma notícia ou um chamado da Amelia de Constituición ou do Iván de Colegiales.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.