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O RETRATO SEGUNDO G.H.
(fragmentos)
Victor da Rosa


Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência?
G.H.


1,
Digamos que G.H., antes de se encontrar com uma barata, se encontra consigo própria. Ou talvez G.H. se encontre consigo própria justamente porque, em algum momento, e de repente, depara-se com a ocasião de encontrar a barata. Em outras palavras, um encontro tem toda relação com o outro. O fato é que no romance de Clarice Lispector, antes de sua personagem encontrar o inumano, ela olha para os seus próprios retratos. Logo nas primeiras páginas, enquanto ainda permanece sentada na mesa do café, antes portanto de entrar no quarto da empregada, G.H. lembra (ou vê) instantâneos tirados em uma praia ou uma festa – uma fotografia qualquer – que revelavam algo mas também faziam escapar o silêncio de um rosto sorridente e escurecido. “Ao olhar o retrato eu via o mistério”, diz a narradora; e depois repete, com letras maiúsculas, como quem sabe que a loucura é algo que retorna: “e vou dizer que na minha fotografia eu via O Mistério”.

A imagem do rosto já aparece antes ainda, mas é nos instantâneos que ela ganha contorno, ou se materializa, mesmo que de maneira difusa. Pois o retrato, que vai reaparecendo em todo o texto, segundo imagens variadas, seria uma maneira não da personagem se representar, ou seja, de encontrar a própria expressão, e sim de dar “uma forma ao nada”. Ao dizer que precisa segurar a sua mão – a mão de quem, não se sabe – G.H. entende que, mesmo assim, não conseguirá traçar o seu rosto: o rosto do outro, em todo caso, mas também o dela. G.H segura a mão de alguém que, como ela própria, não tem expressão. “Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso?” – pergunta. Não é em vão que a sua imagem no retrato, algumas páginas depois, está escurecida. Sua paixão é a procura: é olhar e não ver.

É como se G.H. não tivesse rosto, afinal, assim como não tem nome. “Esse ela, G.H. no couro das valises, era eu; sou eu – ainda?” As iniciais, apresentadas desde o título, que fazem o papel de uma elipse, e que escondem mais do que exibem, em contraste com a idéia de paixão – a paixão é de natureza franca, transparente – pode já nos sugerir a linha que conduz a narrativa de Clarice: uma linha em direção ao inexpressivo. A paixão de G.H., neste caso, talvez seja exatamente a falta de paixão. De fato, se a paixão de G.H. é o negativo da idéia comum de paixão, por ser justamente inexpressiva, também seu retrato deve ser pensado não como a revelação de um rosto, mas sua ausência. A paixão segundo G.H. poderia ser tratada, não sem certo paradoxo, como a autobiografia de um fantasma: da história de alguém que não tem história, quase não tem passado e nem futuro; só presente, instante, instantâneo. A personagem de Clarice não passa de um sopro, enfim, uma voz sem corpo, imagem sem rosto.


2,
“Precisar não acaba nunca (...)”, diz G.H. Digamos com isso que o texto de Clarice, de maneira absolutamente precária, procura registrar o processo ou o meio de uma mudança: “– – – – – – – estou procurando, estou procurando” são as primeiras palavras que a personagem nos diz. Na verdade, antes de dizer que está procurando, no gerúndio, pois a escrita é a própria procura, um processo, ela nos diz sobre a impossibilidade de dizer: “– – – – – – –”, o silêncio. A procura não acaba, no entanto, a mudança não se fecha, mas retorna sempre – basta pensar que todo capítulo começa com as mesmas palavras que fecham o capítulo anterior – já que o livro termina desenhando um círculo: exatamente com os primeiros seis traços do começo: “E então adoro. – – – – – – –” são as últimas palavras que a personagem nos diz. Todo caso de loucura, de fato, é alguma coisa que voltou. G.H. nos diz algo sobre isso.

Mas o que exatamente se altera durante o texto de Clarice? Agora G.H. entende que, com a perda de algo que lhe era essencial, sendo agora alguém que nunca foi – ela tem o coração desprotegido – seu retrato é a imagem de um rosto que falta. Então G.H. pergunta: “Só meus retratos é que fotografavam um abismo? um abismo.” E responde: “Um abismo de nada. Só essa coisa grande e vazia: um abismo.” Se a imagem é responsável por nos proteger do vazio, G.H está desprotegida. Primeiro ela olha os seus retratos, vê o abismo; e logo depois encontra – e come – a barata. Ou seja, vê o abismo outra vez. Seja como for, é depois de olhar o próprio retrato que a personagem de Clarice decide entrar no quarto da empregada, como não fazia há tempo – “Há cerca de seis meses eu não entrava ali” –, espaço intocável e desconhecido da casa, localizado aos fundos, acessível por um corredor escuro, parte maldita, suja, enfim: “o quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis”.

De fato, G.H. sai da sala em direção ao quarto inabitado; e diz: “O apartamento me reflete”. Se o apartamento também é seu próprio retrato, então G.H. caminha em direção ao inviolável de si. Antes de entrar, hesita, fuma um cigarro e espera. Já na porta, constata que “o quarto divergia tanto do resto do apartamento que para entrar nele era como se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta”. G.H. é educada e rica, mora em uma cobertura e vive do sucesso que conquistou como escultora. Por isso, sair de casa, aqui, é sair da segurança, é perder a referência. O espaço da sala, de qualquer sala, é propriamente burguês: onde as relações e as representações sociais são construídas, onde o estereótipo impera. “O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa”, ainda diz. A impressão que G.H. tem do quarto da empregada, neste caso, será semelhante à impressão de quando se depara com a barata: divergência, oposição, violação e até mesmo asco. Não é por acaso que a descrição final do quarto recupere justamente a imagem com a qual quero lidar: “O quarto era o retrato de um estômago vazio”. Não deixa de ser, a sua maneira, uma imagem horrorosa.

Na verdade, o que acontece é que o olho no retrato, quanto G.H. se encontra na sala ainda, também olha: “Olhava de relance o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também inexpressivo”. A personagem entende, mais uma vez, que seu retrato não tem expressão e caráter, não lhe representa – antes, lhe desafia – e assim não pode mais permanecer imune a isso. O que Clarice solicita nessa cena de reenvio recíproco entre os olhares – ela olha mas também é vista – ressoa naquilo que Georges Didi-Huberman, alguns anos depois, sugere como teoria e leitura da arte: o que vemos, o que nos olha. É neste sentido que a arte deve ser um espelho: lemos nos lendo. O retrato, no romance de Clarice, antes de retratar, age através do retorno, como um círculo em que nada se estabiliza mais: um re-traço, um processo. E comer a barata é uma conseqüência (não vou dizer natural) disso.


3,
Quero dizer que as duas cenas – G.H olhando o próprio retrato e depois encontrando a barata, no quarto da empregada – sugerem uma ressonância forte, alguma associação, no romance de Clarice. De certo modo, o romance conta a história de uma mulher que sai da sala em direção ao quarto da empregada, ou seja, a história do romance consiste em não apresentar história alguma. Primeiro G.H. se vê; e depois, digamos, é vista. Primeiro é vista por si própria, pela sua imagem no retrato; e depois é vista através dos olhos da barata, a outra, lado avesso e ignorado, pequeno monstro sem humanidade que permanece, no entanto, tão perto. E isso é tudo. Afinal a barata também terá olhos: “Olhos de noiva”. Quando G.H. olha a barata de frente, são apenas os olhos “radiosos e negros” que ela vê: “Cada olho em si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado. E o outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata, e cada olho reproduzia a barata inteira”. Quase sempre que G.H. menciona a barata, aliás, é através do olhar – que, em outro momento, será “negro, facetado, brilhante e neutro”.

A barata não poderia aparecer em outro lugar, portanto; de certa maneira, ela é a miniaturização do quarto da empregada, este animal enorme. E na verdade não é a barata que aparece; a rigor, é G.H. quem lhe procura. “Estou procurando, estou procurando...”, repete a personagem. E encontrar a barata, neste caso – e sobretudo ser vista por ela – oferece implicações radicais para o entendimento que G.H. tem sobre a própria vida. A barata, como parte maldita, aparece para lhe dizer o que já está sugerido nas primeiras páginas: assim como não há paixão, também não há possibilidade de haver retrato; em uma palavra, há despersonalização, perda do sentido de humanidade, do rosto. Em todo caso, o retrato ficou na sala. E de outra maneira, além de não haver paixão e rosto, não há nome também. A sentença “Essa coisa cujo nome desconheço” poderia ser parafraseada, portanto, como “Esse retrato cujo rosto desconheço”. Se a imagem no retrato aparecia escurecida, agora ela não existe mais; é a imagem de um monstro. Isso porque encontrar a barata leva G.H. a uma espécie de alegria estranha: a alegria da inexpressividade, do neutro e da despersonalização. Quando G.H. encontra a barata, enfim, o que vê é a vida: “o que eu via era a vida me olhando”.

Olhar a barata, ao mesmo tempo, é olhar a cara da morte. Há um traço diabólico nessa alegria toda. A alegria da inexpressividade tampouco é uma salvação. É depois de olhar a morte de frente que G.H. não será mais a mesma. Olhar a morte, nesse caso, é como perder tudo. É como perder inclusive a capacidade de articulação da linguagem: “Eu abria e fechava a boca para pedir socorro mas não podia nem sabia articular”. Se antes G.H. “vivia mais dentro de um espelho”, no mundo das imagens, da representação, agora a personagem está agônica, afásica, dentro do coração selvagem. “Eu sabia que estava me despedindo para sempre de alguma coisa, alguma coisa ia morrer, e eu queria articular a palavra que pelo menos resumisse aquilo que morria”. Mas não. É porque viu a morte que G.H. passa a entender que não haverá mais possibilidade de articulação, de estilo e de Beleza, este modo de enfeitar as coisas para tolerar o núcleo, e sim de grito.

A barata, afinal, não será outra coisa que o avesso de G.H., uma parte de seu próprio corpo, sua via-crucis. A personagem primeiro afirma: “O que nela [na barata] é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado”. Mas na medida em que G.H. come as suas partes, na medida em que pode descrever com precisão o sabor de sua massa líquida, sua água viva, o seu nojo – “Por que teria eu nojo da massa que saia da barata?” – passa a não haver diferença mais entre seu corpo e o corpo do animal: “Eu talvez já soubesse que (...) não haveria diferença entre mim e a barata”.


4,
G.H. passa a ter mil caras. Quem diz “eu”, agora – pouco se sabe. É como se o romance fosse aos poucos apagando o rosto de uma personagem que, antes, olhava com confiança para seus retratos sobre a mesa da sala. Na verdade, o romance de Clarice não tematiza um antes e um depois, não oferece um marco, pois não se trata de um romance trágico; isto é, a relação não é causal. Aliás, a própria personagem reconhece que a alegria inexpressiva já estava lá: “Fora isso o que sempre estivera nos meus olhos no retrato: uma alegria inexpressiva”. Por isso, não é a partir do momento em que vê e come a barata (a cara sem contorno da morte) que G.H. esquece dos instantâneos e da vida de escultora. O que G.H. parece nos ensinar é que a morte, a parte maldita, assim como o quarto da empregada não está fora da casa, é uma possibilidade que permanece ao lado. O quarto da empregada está ao lado. Desde o título, G.H. não tem nome.

G.H. passa a ter mil caras porque não tem nenhuma mais. No limite, de repente, a personagem de Clarice passará a narrar a própria vida em terceira pessoa, talvez porque não possa ou não suporte mais dizer “eu”, não possa continuar dizendo “eu tenho um rosto”, e sim “ela”, pura exterioridade, a coisa: “G.H. era uma mulher que vivia bem, vivia bem, vivia bem, vivia na supercamada das areias do mundo (...). G.H. vivia no último andar de uma superestrutura.”, diz a própria personagem. Talvez por isso, porque G.H. não seja mais ninguém, porque seja pura exterioridade, é que ela pode se aparentar com qualquer coisa: um homem, a própria barata e até mesmo Deus. O que a personagem perde também é o reconhecimento ou o controle sobre a própria vida. Depois de tudo, ela olha no espelho e não se vê: “Olhei o mural onde eu devia estar sendo retratada... Eu, o Homem”, diz. Onde eu devia estar sendo, onde eu não sou.

A maneira como G.H. passa a se despojar de seu nome e de seus atributos nos leva a concluir qualquer coisa sobre a loucura: G.H. torna-se homem, primeiro; e depois, diante da barata, torna-se o próprio animal, matéria morta: “Eu, corpo neutro de barata (...) – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede” – e depois ainda, para dizer de si, a personagem recorre a outra imagem que sugere, mais uma vez, um branco sobre branco, gravura impressa no nada, o retrato como falta e ausência de imagem: “Sou o silêncio gravado numa parede”. Finalmente, quando G.H. passa a falar sobre Deus, parece possível sugerir uma espécie de fluxo livre entre o humano, a barata (o mais baixo) e o divino, como se tudo fosse uma coisa só: “Ele é, nunca para de ser. (...) O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos que vemos Deus”. Não parece que G.H. fala aqui com a própria barata e, no limite, sobre si própria? Em outras palavras, parece não haver mais separação entre sala de estar e quarto de empregada; entre o retrato e seu negativo. O que se cliva aqui é a própria intimidade; o que se prolifera são os fantasmas, como diz a própria G.H. sobre Deus: trata-se de algo que nunca para de ser, não se interrompe, retorna, se altera.


5,
O que está sendo colocado em questão, a meu ver, através dessa espécie de deslizamento de auto-retratos – G.H. ora é homem, ora é a própria barata, ora parece ser Deus, qualquer coisa – diz respeito justamente a uma impossibilidade de formar retrato. De outra maneira, o romance de Clarice poderia ser lido como a tentativa – se trata sempre de uma tentativa – de dar alguma forma, mesmo informe, àquilo que não pode mais ter forma. O retrato segundo G.H., portanto, só pode ser o processo de esvaziamento da noção mais corrente que se tem de retrato. Afinal, depois de tudo, G.H. perde também a autonomia sobre a própria condição de humanidade: “Ser é ser além do humano”. A paixão de G.H., essa paixão sem nome, não se apresenta para a personagem como um estado de felicidade, mas um estado de contato; contato talvez entre seu lado visível e sua parte reprimida, entre humanidade e inumanidade, entre a beleza e o horror, forma e informe, sala e quarto de empregada, mas no fundo nada disso importa tanto: o que importa parece ser justamente a procura, a tentativa, depois a desistência – “A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio” – e finalmente o retorno.

Na verdade, G.H. torna-se máscara; não máscara de mentira, mas máscara de solenidade: “O único destino com que nascemos é o do ritual. Eu chamava ‘máscara’ de mentira, e não era: era a essencial máscara da solenidade. Teríamos de pôr máscaras de ritual para nos amarmos. Os escaravelhos já nascem com a máscara com que se cumprirão. Pelo pecado original, nós perdemos a nossa máscara”. A idéia não é aleatória: o romance de Clarice parece mesmo um baile de máscaras. Neste sentido não deixa de ser curioso que seu retrato seja um instantâneo, pela reprodutibilidade, a serialização, e não uma pintura. Por sua vez, a noção de máscara traz consigo outras noções que parecem fundamentais para uma teoria do retrato: as noções de opacidade, inexpressividade e neutro. A máscara se caracteriza, de fato, por não ter expressão; ou melhor, por ter sua “inexpressividade vibrante”, “diabólica”.

Quando G.H. diz que na verdade está tentando dizer sobre como chegou ao inexpressivo, a personagem sente que terá que entender o neutro. Mas o que é exatamente o neutro? A própria G.H., de maneira ao mesmo tempo precisa e lacônica, responde: “é o elemento vital que liga as coisas”; em outras palavras, o neutro é outro modo de desfazer as autonomias porque possui a qualidade de colocar os campos em relação. Seja como for, G.H. chega à noção de neutro através do próprio mistério de seu instantâneo escurecido na mesa da sala, o contorno do seu rosto na fotografia; ao mesmo tempo, chega ao neutro na medida em que abandona esse mesmo retrato. No neutro, assim como no instantâneo, não há luz: “A luz do miligrama não altera o escuro. Pois o escuro não é iluminável, o escuro é um modo de ser: o escuro é o nó vital do escuro, e nunca se toca no nó vital de uma coisa”. O escuro é outro modo de dizer a parte maldita, o demoníaco; G.H. estava sendo levada pelo demoníaco.

 

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