outros números

resenhas

dicionário crítico
(verbetes)

seção arquivo

informativo

contato
(e colaborações)


Ainda brasileira?
Literatura, ensino e a comunidade fundada na ausência de comunidade
Fernando Scheibe

No início de 1948, no “Clube agora”, Georges Bataille profere uma conferência intitulada La Religion surréaliste. Dando seguimento a sua besogne de “melhor inimigo”, ou de ennemi du dedans[1], do surrealismo, Bataille problematiza então a “nova” exigência surrealista: a da criação de mitos capazes de levar o “homem moderno” ao “desencadeamento das paixões”. Percebendo a importância e, ao mesmo tempo, a impossibilidade dessa iniciativa, Bataille enuncia uma espécie de trilogia das ausências: a ausência de mito, a ausência de comunidade e a ausência de poesia:


Creio que nunca é demais insistir na necessidade de ligar a consciência à despersonalização. Parece-me que o surrealismo avançou profundamente nessa via, parece-me também que essa via permanece aberta e que devemos nos adentrar ainda mais nela. Talvez seja bom pensar em criar mitos, em criar ritos e, de minha parte, não sinto a mínima hostilidade contra tendências dessa ordem. Todavia, parece-me que quando falei de um mal-estar resultante do fato de que esses mitos e esses ritos não serão verdadeiros mitos e ritos pelo fato de que não receberão o assentimento da comunidade, postulei a necessidade de ir mais longe e de conceber uma possibilidade que, à primeira vista, poderá passar por negativa, mas que talvez não seja, no fundo, senão a forma mais acabada da posição. Se dizemos, simplesmente por conta da lucidez, que o homem atual se define por sua avidez de mito, e se acrescentamos que ele se define também pela consciência de não poder ter acesso à possibilidade de criar um mito verdadeiro, definimos uma espécie de mito que é a ausência de mito. Exprimo aqui uma ideia bastante difícil de seguir. Todavia, é fácil perceber que, se nos definimos como incapazes de chegar ao mito e como em sofrimento, definimos o fundo da humanidade atual como uma ausência de mito. E essa ausência de mito pode se achar diante daquele que a vive, que a vive, entenda-se, com a paixão que animava aquele que queria outrora viver não mais na realidade descorada, mas na realidade mítica, essa ausência de mito pode se achar diante dele como infinitamente mais exaltante do que foram outrora mitos que estavam ligados à vida cotidiana. A essa ausência da particularidade no mito – porque definindo assim a ausência de mito definimos simplesmente a supressão da particularidade – a essa ausência está ligado um caráter que poderá passar, que pode passar por singular: o fato de que é impossível contestar a ausência de mito. Ninguém pode dizer que a ausência de mito não existe enquanto mito, não há homem que não seja obrigado a receber, mesmo na medida em que se esforça por criar um mito particular, a receber a imagem da ausência de mito como um mito real. A essa primeira supressão da particularidade pode-se acrescentar ou deve-se acrescentar a necessidade de uma ausência de comunidade. Que significa, com efeito, um grupo, senão a oposição de alguns homens ao conjunto dos outros homens? Que significa por exemplo uma Igreja como a Igreja cristã senão a negação do que não é ela? Há no fato de que toda religião no passado estivesse ligada à necessidade de se colocar como Igreja, como comunidade fechada, uma espécie de obstáculo fundamental; toda sorte de atividade religiosa, na medida em que era desencadeamento de paixão, tendia a suprimir os elementos que separam as pessoas umas das outras. Mas, ao mesmo tempo, a fusão que a festa antiga operava não tinha por fim mais do que criar um novo indivíduo que se poderia chamar indivíduo coletivo. Não pretendo com isso dizer que os indivíduos não são mais chamados a se agruparem como sempre o foram, mas, para além dessa necessidade imediata, o pertencimento de toda comunidade possível àquilo que chamo, em termos que são para mim voluntariamente estranhos, ausência de comunidade, deve ser o fundamento de toda comunidade possível, vale dizer, que o estado de paixão, o estado de desencadeamento que era inconsciente no espírito do primitivo pode passar a uma tal lucidez que o limite que era dado pelo contrário do primeiro movimento na comunidade que o encerrava sobre si mesmo deve ser transgredido pela consciência. Não pode haver limite entre os homens na consciência, e o que é mais, a consciência, a lucidez da consciência restabelece necessariamente a impossibilidade de um limite entre a humanidade e o resto do mundo. Isso deve ser levado, parece-me, até a ausência de poesia, não que possamos atingir a poesia sem ser pelo canal dos poetas reais, mas sabemos todos que cada voz poética comporta em si mesma sua impotência imediata, cada poema real morre ao mesmo tempo que nasce, e a morte é a própria condição de seu cumprimento. É na medida em que a poesia é levada até a ausência de poesia que a comunicação poética é possível. Isso equivale a dizer que o estado do homem consciente que reencontrou a simplicidade da paixão, que reencontrou a soberania desse elemento irredutível que está no homem, é um estado de presença, um estado de vigília levado ao extremo da lucidez e cujo termo é necessariamente o silêncio.[2]


Com seu hegelianismo nietzschiano, delirantemente lúcido, paradoxal e “sem reserva”, Bataille faz derivar da “supressão das particularidades” não o logos, a razão e o discurso, mas a paixão e o silêncio. Acredito ser na via aberta por essa reflexão que se insere, explícita e conscientemente ou não, o que há de mais potente na teoria crítica, político-literária, contemporânea.

*


Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura - o objeto - que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência.

Michel Seuphor[3]

*

O mito da ausência de mito pode se chamar literatura, escritura. Abertura infinita à comunicação[4]. E é evidente sua incompatibilidade com a clausura da nação.

*

Sustento aqui que a potência do literário – entendido como “interrupção do mito” e “abandono de cada identidade não a uma identidade comum, mas a uma comum ausência de identidade”[5] – é anulada pelo parti pris, ainda hoje predominante, de pensar, estudar e ensinar a literatura como fato nacional.

Não se trata simplesmente de afirmar que “os grandes autores ocidentais nunca se ativeram às fronteiras nacionais na escolha de seus modelos ou temas”[6]. Mas de insistir em que o gesto literário deve ser definido como avesso à nação enquanto fronteira, enquanto “indivíduo coletivo”, corpo coletivo imaginário que se opõe ao restante do universo.


O homem é um animal literário que se deixa desviar de sua destinação ‘natural’ pelo poder das palavras. Essa literariedade é a condição ao mesmo tempo que o efeito da circulação dos enunciados literários ‘propriamente ditos’. Mas os enunciados se apoderam dos corpos e os desviam de sua destinação na medida em que não são corpos, no sentido de organismos, mas quase-corpos, blocos de discursos circulando sem pai legítimo que os acompanhe  a um destinatário autorizado. Assim, eles não produzem corpos coletivos. Antes introduzem nos corpos coletivos imaginários linhas de fratura, de desincorporação.[7]

*

Tampouco se trata de afirmar qualquer tipo de autonomia da literatura. Pelo contrário, a literatura como mito da ausência de mito e comunidade fundada na ausência de comunidade não se distingue do político e não pode se fechar em si mesma (o que reproduziria a lógica que estamos questionando: a “comunidade dos (grandes) escritores”, mesmo transnacional, seria ainda uma igreja, algo que se opõe ao “que não é ela”).

Embora não se possa dizer que “nestes textos os sujeitos definem sua identidade por seu pertencimento a certos territórios”, o literário, como pensado aqui, converge muito com estas escrituras do presente a que Josefina Ludmer denomina “literaturas pós-autônomas”.

(Talvez fosse melhor falar antes em “anautônomo” ou, para voltar a Bataille, em heterogêneo e em heterogênese. Talvez essa aproximação com Ludmer seja ilegítima se fizermos mais caso da relevância que ela parece atribuir à existência de um território (“essas práticas literárias territoriais do cotidiano”) do que ao movimento diaspórico que – paradoxalmente? – também lhes atribui: “Porque essas escrituras diaspóricas não apenas atravessam a fronteira da ‘literatura’ como também da ‘ficção’ [e ficam fora-dentro nas duas fronteiras]”[8]).

*

Dizer que o literário não se distingue aqui do político está longe de significar que se lhe atribui algum poder. Mais uma vez Ludmer: “A literatura perde poder ou já não pode exercer esse poder”[9]. Mais uma vez Bataille:


Mas o escritor moderno recolhe, em contrapartida dessas misérias, um privilégio maior em relação aos reis a que ele sucede: aquele de renunciar a esse poder que foi o privilégio menor dos ‘reis’, pelo privilégio maior de nada poder e de se reduzir, na sociedade ativa, de antemão, à paralisia da morte.

Tarde demais hoje para procurar um viés! Se o escritor moderno não sabe ainda o que lhe incumbe – e a honestidade, o rigor, a humildade lúcida que isso exige, – pouco importa, mas desde então ele renuncia a um caráter soberano, incompatível com o erro: a soberania, ele devia sabê-lo, não permite ajudá-lo mas destruí-lo, o que ele podia exigir dela era que fizesse dele um morto vivo, talvez alegre, mas roído no dentro pela morte.[10]

*

É claro que a partir desse ponto de vista perde sentido a ideia de sistema e de formação de uma literatura nacional; e o lamento de Roberto Schwarz – “O sistema literário nacional parece um repositório de forças em desagregação”[11] – torna-se pouco comovente, uma vez que, como aponta Raúl Antelo, essa “decadência”[12] não é mais do que a recorrência da “dimensão do Unheimlich da própria experiência. [E] É isso, em última instância, que define o real.”[13]

Schwarz, na esteira de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado e Antônio Cândido, mas talvez com um acento que lhe é próprio, pensa a “superação da inorganicidade” como “força civilizatória”. Mas, se pensamos a comunidade à maneira de Jean-Luc Nancy, os valores se invertem, e a totalidade orgânica passa a ser vista como a barbárie por excelência, a obra de morte fascista:


A totalidade orgânica é a totalidade em que se pensa a articulação recíproca das partes sob a lei geral de uma instrumentalização cuja cooperação produz e sustenta o todo enquanto forma e razão final do conjunto (é ao menos o que desde Kant se pensa como o “organismo”: não é certo que um corpo vivo se pense apenas sob esse modelo). A totalidade orgânica é a totalidade da operação como meio e da obra como fim. Mas a totalidade da comunidade —entendo por isso: da comunidade que resiste a sua própria colocação em obra— é um todo de singularidades articuladas.[14]

*


Não nos deixemos enganar pelo presente que pretende que creiamos numa autoridade que possuiríamos ou numa influência que exerceríamos, tampouco nos importa o passado, e presumimos ainda menos (de) um porvir. Calamos a suposta responsabilidade impessoal dos grupos em que sempre se afirma, bem secreta, bem diretamente, o direito de alguns de dirigir aumentando seu nome com o do grupo. O ‘culto da personalidade’ não começa com a pessoa que se coloca por cima das demais a fim de encarnar uma verdade histórica. Começa com essa própria verdade, seja a do partido, a do país, ou a do mundo, verdade que, desde que se imobiliza, está sempre disposta a se unificar num nome, numa pessoa, num povo ou numa época. Como alcançar, então, esse anonimato cujo único modo de aproximação é a ofuscação, obsessão incerta que sempre despossui?[15]

*

A essa vontade de totalidade se opõe uma estética[16] do désoeuvrement ou do fragmento.

Eric Hoppenot traça uma sugestiva história da relação de Maurice Blanchot com a exigência fragmentária. Esta se teria feito sentir da maneira mais premente justo no momento em que, em seguimento à publicação do “Manifeste des 121”, Blanchot encontrava-se engajado no projeto de uma revista internacional que desse conta, não apenas em seu “conteúdo”, mas em sua “forma”, do pas au-delà de um tempo a outro:


Num tal momento extremo do tempo, pensar em fazer uma nova revista, apenas mais interessante ou melhor do que as outras, pareceria irrisório. É preciso, portanto, que tal projeto seja concentrado incessantemente sobre sua gravidade própria que é tentar responder a esse enigma grave que representa a passagem de um tempo a outro.


É portanto num contexto de insubordinação e de luta pela descolonização[17] que Blanchot formula, “pela primeira e última vez, a necessidade ideológica de recorrer à escritura fragmentária”:


“Simplificando, pode-se dizer que há quatro tipos de fragmento:
—1) O fragmento que não é mais do que um momento dialético de um conjunto maior.
—2) A forma aforística, concentrada, obscuramente violenta que, na qualidade de fragmento, já é completa. O aforismo é etimologicamente o horizonte, um horizonte que circunscreve e que não se abre.
—3) O fragmento ligado à mobilidade da busca, ao pensamento viajante que se realiza mediante afirmações separadas e que exigem a separação (Nietzsche).
—4) Por último, uma literatura de fragmento que se situa fora do todo, seja porque o todo já está realizado (toda literatura é uma literatura do fim dos tempos), seja porque junto às formas de linguagem em que o todo se constrói e se fala, palavra do saber, do trabalho e da salvação está o pressentimento de uma palavra totalmente outra: uma palavra que libera o pensamento de ser apenas pensamento com vistas à unidade ou, dito de outro modo, que exige uma descontinuidade essencial. Neste sentido, toda literatura, seja breve ou infinita, é o fragmento desde que libere um espaço de linguagem em que cada momento teria por sentido e por função tornar indeterminados todos os outros, ou (é a outra cara) em que está em jogo alguma afirmação irredutível a todo processo unificador.” E acrescenta Blanchot, entre parênteses: “(Naturalmente, essa questão do ‘fragmento’ pode ser considerada de outro modo, mas creio que, particularmente para este projeto, ela é essencial. É permanentemente a questão da revista como forma, como busca de sua própria forma).” (“Memorandum sur ‘Le cours des choses’”, Lignes, n. 11, pp. 187-188). [18]


O fragmento, a literatura, é a différance – aquilo que libera “um espaço de linguagem em que cada momento teria por sentido e por função tornar indeterminados todos os outros – e a soberania (acéfala, vazia) – “alguma afirmação irredutível a todo processo unificador”.

*

A fragmentação é também uma “desoperação” de leitura. Tornar novamente texto, fragmento, aquilo que foi erigido em obra. Que aquilo que foi apropriado pelo “sistema literário nacional consolidado” volte ao estado gasoso de “manifestação literária”. Que, em vez de “desler” Clarice à luz – chapada – da tradição afortunada, possamos reler Machado, Graciliano, Guimarães... à sombra do real que emana do texto/fragmento clariciano.


Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete?
Nesse intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de "para o meu gáudio". É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.
Estou com saudade. Saudade de meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste.
Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha.[19]


É necessário sublinhar a sem-cerimônia com que, para nosso gáudio, se misturam aqui as (não)leituras de Machado, Alencar, Mallarmé (e por tabela Drummond: “A carne é triste depois da felação / Depois do sessenta-e-nove a carne é triste”[20]) numa espécie de discurso da “vida como ela é” (saudade dos filhos, morte, tempo, telefone, televisão...)?

*

Mas como fica a questão, prometida no título deste ensaio, do ensino da literatura assim compreendida?


Diante da vacância de comunidade nacional, a comunidade negativa contemporânea é tão inoperante (Nancy) quanto o próprio texto (Barthes-Kristeva), conceito esse que poderíamos assimilar ao de des-obra. Não se trata, portanto, quando falamos de literatura contemporânea, de uma comunidade plenamente realizada, mas de uma comunidade infraleve (Duchamp), já que seu objetivo permanente consistiria apenas em postular, de maneira disseminada, a impossibilidade de enunciados assimétricos. Longe de colaborar, portanto, na constituição de parques zoológicos (Sloterdijk), pautados por quantificação, avaliação e controle, a soberania infraleve desses novos lindes ou fronteiras nos permitiria, entretanto, reabrir sem cessar a condição do valor acéfalo, escatológico ou excepcional (ex capere), funcionando, em última instância, como uma autêntica pedagogia da diferença. Como já deixamos claro em outra oportunidade, Una pedagogía de la diferencia presupone una pedagogía de la diseminación de los sentidos, es decir, un modo de captar, construir y recorrer un sentido que aún no se hizo posible o que ya no es más visible. Una pedagogía de la diferencia es una educación de los sentidos que pueda responder acerca de la contemporaneidad del analista, haciendo la salvedad de que lo contemporáneo nos impone siempre una relación ambivalente con el tiempo, al cual adherimos en parte, aunque no por ello dejemos de tomar distancia ante él. Esta particular concepción intempestiva del tiempo (que es la de Nancy o la de Didi-Huberman, para sólo dar dos ejemplos) es definida por Giorgio Agamben como aquella relación en que el crítico adhiere a su tiempo en la forma de un desfasaje y un anacronismo tan peculiares como deliberados. Ese hiato hace que el auténtico crítico de lo contemporáneo no vea las luces de su época, sino su niebla y su neblina, que son las que lo acechan e interrogan: “contemporaneo è collui che riceve in pieno viso il fascio di tenebra che proviene del suo tempo”.[21]


A nação, por mais que em determinados contextos possa parecer uma bandeira emancipatória[22], reconduz sempre ao Menschpark, ao indivíduo coletivo, à comunidade pesada, cefálica e operatória. Uma “autêntica pedagogia da diferença”, ou seja, mais do que uma pedagogia da literatura, uma pedagogia literária, só pode se dar – justamente como dom – num espaço outro em que a vida “cessa de estar separada do que está atrás do mundo”:


Não se trata de encontrar atrás do mundo algo que o domine, não há nada atrás do mundo que domine o homem, não há nada atrás do mundo que possa humilhá-lo; atrás do mundo, atrás da pobreza em que vivemos, atrás dos limites precisos em que vivemos só há um universo cujo brilho é incomparável e atrás do universo não há nada.

Aplausos.[23]



[1] “Não sou a pessoa certa, parece. Opus-me, cada vez que tive a ocasião de fazê-lo, ao surrealismo. E gostaria agora de afirmá-lo de dentro como a exigência que sofri e como a insatisfação que sou. Mas isto se impõe com clareza: o surrealismo é definido pela possibilidade que seu velho inimigo de dentro, que sou, tem de defini-lo decididamente. É a contestação verdadeiramente viril (nada de conciliador, de divino) dos limites admitidos, uma vontade rigorosa de insubmissão.” À propos d’assoupissements. Artigo publicado em janeiro de 1946 no segundo número da revista “pós-surrealista” Troisième convoi. BATAILLE, Georges. O.C. XI. Paris: Gallimard, 1988, p. 31. Todas as traduções de textos cuja fonte se encontra citada em “língua estrangeira” foram feitas pelo autor do presente artigo. [Voltar ao texto]

[2] BATAILLE, Georges. “La religion surréaliste”. Em: O.C. VII, p. 393-395. [Voltar ao texto]

[3] Trata-se da epígrafe de Água viva (1973) de Clarice Lispector. O contexto nos diz: onde se lê pintura, leia-se (também) escritura. [Voltar ao texto]

[4] “Uso o  termo ‘comunicação’ tal como Bataille o emprega, ou seja, segundo o regime de uma violência feita à significação da palavra, tanto na medida em que ela indica a subjetividade ou a intersubjetividade, como em que denota a transmissão de uma mensagem ou de um sentido. No limite, esta palavra é insustentável.  Conservo-a porque ressoa com a ‘comunidade’; mas superponho-lhe (o que as vezes significa substituí-la) a palavra ‘partilha’. A violência que Bataille infligia ao conceito de ‘comunicação’ era consciente de sua insuficiência: ‘Ser isolado, comunicação, têm uma única realidade. Em nenhuma parte há ‘seres isolados’ que não comuniquem, nem há ‘comunicação’ independente dos pontos de isolamento. Tenha-se a precaução de separar dois conceitos mal feitos, resíduos de crenças pueris; a este preço o problema mais intrincado será cortado.’ (VII, 553)  Solicitava-se assim, em suma, a desconstrução deste conceito, tal como Derrida a empreendeu (‘Signature événement contexte’. Em: Marges. Paris: Minuit, 1972), e tal como, de outra maneira ela se prolonga em Deleuze e Guattari (‘Postulats de la linguistique’. Em: Mille Plateaux. París: Minuit, 1980). Estas operações acarretam necessariamente uma reavaliação geral da comunicação na comunidade e da comunidade  (da fala, da literatura, do intercambio, da imagem, etc.), em relação à qual, o uso do termo ‘comunicação’ só pode ser preliminar e provisório.” (NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris: Christian Bourgois, 1983, p. 51, nota 11). [Voltar ao texto]

[5] ESPOSITO, Roberto. Comunitas – Origen y destino de la comunidad. Tradução ao castelhano de Carlo Rodolfo Molinari Marotto. Buenos Aires: Amorrortu, 2003. p. 202. [Voltar ao texto]

[6] Como faz Leyla Perrone-Moisés (Vira e mexe, nacionalismo – Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 11), sempre assumindo este outro parti pris: o da existência de “altas literaturas”. [Voltar ao texto]

[7] “Le partage du sensible – Entretien avec Jacques Rancière”. Alice 2: Été 1999. Disponível em: http://multitudes.samizdat.net/Le-partage-du-sensible [Voltar ao texto]

[8] Citações extraídas de LUDMER, Josefina. “Literaturas posautónomas”. Ciberletras. Revista de crítica literaria y de cultura, n. 17, jul/2007. [Tradução brasileira: Sopro, n. 20 (jan/2010)]. [Voltar ao texto]

[9] Idem. [Voltar ao texto]

[10] BATAILLE, Georges. Lettre à René Char sur les incompatibilités de l’écrivain. Publicada no n° VI da revista italiana Botteghe oscure, em 1950. Em: O.C. XII, p. 28. [Voltar ao texto]

[11] SCHWARZ, Roberto. “Os sete fôlegos de um livro”. Em: Sequências Brasileiras. Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 58. Claro eco dessa “constatação” encontramos em Grande Sertão.br, livro em que Willi Bolle defende a inclusão de Grande Sertão: Veredas na ilustre galeria de Retratos do Brasil: “Numa época em que o discurso sobre a educação é marcado sobretudo por estatísticas burocráticas, cogitações de lucro e a falta de ousadia e imaginação, as palavras-diamante de Grande Sertão: Veredas, que riscam o discurso das aborrecedoras mentes prosaicas, podem redespertar algo que o país já teve, mas que perdeu durante as últimas décadas: a paixão pela formação.” BOLLE, Willi. Grande Sertão.br – O romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004. p. 11. [Voltar ao texto]

[12] Sou eu que insiro esse termo pensando em suas ressonâncias nietzschianas e no contexto fin-de-siècle do artigo de Schwarz. [Voltar ao texto]

[13] ANTELO, Raúl. “Crítica híbrida e forma histórica”. Em: ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Nenhum Brasil existe – Pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Uerj/Univercidade/Topbooks, 2003. p. 912. [Voltar ao texto]

[14] NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Op. cit., p. 188. [Voltar ao texto]

[15] BLANCHOT, Maurice. Le pas au delà. Paris: Gallimard, 1973. p. 67. [Voltar ao texto]

[16] Há “portanto na base da política uma ‘estética’, a entender num sentido kantiano, eventualmente revisitado por Foucault: um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, do discurso e do ruído que define a um só tempo o lugar e a aposta da política como forma de experiência. A política tem a ver com o que se vê e com o que se pode dizer daquilo que se vê, com quem tem a competência para ver e a qualidade para dizer, com as propriedades dos espaços e os possíveis do tempo.” Le partage du sensible – Entretien avec Jacques Rancière. Alice 2: Été 1999, disponível em: http://multitudes.samizdat.net/Le-partage-du-sensible [Voltar ao texto]

[17] Aqui não posso recalcar a ambivalência do nacional, uma vez que a Déclaration sur le droit à l’insoumission dans la guerre d’Algérie (1960) não deixa de afirmar: “Para os argelinos, a luta, travada, seja por meios militares, seja por meios diplomáticos, não comporta nenhum equívoco. É uma guerra de independência nacional.” [Voltar ao texto]

[18] HOPPENOT, Eric. “Maurice Blanchot et l’écriture fragmentaire – ‘Le temps de l’absence de temps’.” Disponível em: http://remue.net/cont/Blanchot_Hoppenot.pdf [Voltar ao texto]

[19] LISPECTOR, Clarice. “Por enquanto”. Em: A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 47. [Voltar ao texto]

[20] Não resisto a assinalar, en passant, a maestria formal desses versos em que a inversão sintática do segundo evoca a movimentação dos amantes... [Voltar ao texto]

[21] ANTELO, Raúl. “Lindes, limites, limiares.” Boletim de Pesquisa - NELIC: edição especial v.1 - lindes / fronteiras (2008; grifos nossos). O texto de Agamben é, evidentemente, Che cos’è il contemporaneo. Roma: Nottetempo, 2008. [Voltar ao texto]

[22] Mas não enancypatória, para brincarmos com o conceito forjado por Paco Vidarte. Cf. VIDARTE, Paco. “La comunidad enancypada.” Revista Anthropos:nº 205, 2004, p. 78-85. Arguta, embora, para mim, insuficientemente convincente, defesa do potencial emancipatório da nação encontra-se em AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente – ensaios. Org. Maria Elisa Cevasco. Tradução Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2002. [Voltar ao texto]

[23] BATAILLE, Georges. La religion surréaliste. Op. cit., p. 395. [Voltar ao texto]



Próximos textos:

Notas para a reconstrução de um mundo perdido

(XXXV): O frio, o som e o trimestre bobo

(XXXVI): O sorriso e o trimestre bobo

Edicão integral:
HTML | PDF

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.