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Sobre os limites da violência
Giorgio Agamben

Publicado originalmente em Nuovi Argomenti, n. 17, 1970, pp. 154-174. Tradução de Diego Cervelin.

Vinte anos depois da publicação do ensaio de Benjamin sobre a crítica da violência e mais de sessenta anos da aparição de Réflexions sur la violence de Sorel, uma nova meditação acerca do problema dos limites e do significado da violência certamente não corre o risco de parecer inatual. E isso não tanto porque, com a possibilidade da destruição instantânea do gênero humano, a violência alcançou uma dimensão que nem Benjamin nem Sorel podiam imaginar, de modo que podemos dizer que vivemos hoje sob a constante ameaça de uma violência que não é mais objetivamente conforme a medida do homem, mas talvez porque nunca como hoje a relação da violência com a política foi posta em termos tão ambíguos. Por isso, neste estudo, deslocaremos o eixo de uma crítica da violência da exposição da sua relação com o direito e com a justiça (que era a tarefa à qual Benjamin se havia proposto) para a exposição de sua relação com a política. Somente uma correta colocação de sua relação com a política poderá permitir-nos colocar de fato o problema da violência em si e por si, isto é, o problema do limite (se é que um tal limite existe) que separa a violência da esfera da cultura humana entendida no seu sentido mais amplo. E também somente nesse contexto poderemos colocar o problema da única violência hoje capaz de ser reconduzida à medida do homem: a violência revolucionária.


À primeira vista, a exposição da relação entre violência e política pode parecer uma tarefa contraditória. Segundo uma tradição que remonta às origens da história européia, violência e política de fato se excluiriam reciprocamente. Os gregos, que inventaram quase todos os conceitos dos quais atualmente fazemos uso para exprimir nossa experiência da política, designavam precisamente com o termo polis o modo de vida fundado sobre a palavra e não sobre a violência.

Ser político, viver na polis, significava antes de tudo aceitar o princípio de que tudo fosse decidido através da palavra e da persuasão, e não com a força e a violência.[1] Consequentemente, o atributo essencial da vida política se exprimia na sua caracterização como peitarquia, poder da persuasão; e esse poder era levado tão a sério que até mesmo o cidadão condenado à morte devia ser persuadido a matar-se com as próprias mãos.

A identificação da política com a linguagem e a compreensão da linguagem como esfera da não-violência eram de tal modo totais que tudo aquilo que se encontrava fora da polis – ou seja, tanto as relações com os escravos quanto aquelas com os bárbaros –, para os gregos, eram aneu logou, o que evidentemente não se referia a uma privação fisiológica da palavra, mas à exclusão do único modo de vida em que somente a linguagem realmente tinha sentido.

Essa propriedade da linguagem de excluir de si toda possibilidade de violência é atestada, como Benjamin bem observou, pela impunidade da mentira em todas as mais antigas legislações. A caracterização da vida política como peitarquia se fundava de fato sobre uma peculiar compreensão de sua relação com a verdade, ou seja, sobre a crença de que a verdade tinha por si o poder de persuadir a mente humana. Para os gregos, “persuasão” indicava originariamente não uma técnica particular (aquela que, mais tarde, se tornaria a arte do sofista), mas um atributo da verdade. O constante conflito da filosofia grega, desde o seu surgimento, com a esfera política tinha sua razão de ser precisamente no fato, observado pelos filósofos (e, com particular amargura por Platão, que tinha assistido impotente à condenação à morte de seu mestre Sócrates), de que as verdades políticas tinham começado a perder o seu poder de persuasão e, consequentemente, se encontravam cada vez mais expostas à ameaça da violência; por isso eles se puseram a buscar verdades que – situando-se para além da esfera político-temporal – fossem radicalmente subtraídas de toda possibilidade de violência.

Desse ponto de vista, nossa experiência da política é totalmente diversa daquela grega, e isso porque pudemos observar com nossos próprios olhos que não apenas (como os filósofos gregos já tinham notado) a verdade, na política, não é por si suficiente para persuadir diante da violência, mas que, além disso, é possível uma forma de violência – totalmente desconhecida na antiguidade – que consiste precisamente na introdução maciça da mentira na esfera política.


Nesse ponto, a identificação da linguagem com a esfera da não-violência deve necessariamente sofrer alguma restrição. Podemos dizer ainda que o desmantelamento desse princípio é uma das características que mais claramente distingue a nossa experiência política daquela da antiguidade, e que a diversa relação com a linguagem que disso deriva elimina totalmente a credibilidade de uma teoria política que ainda queira fundar-se sobre pressupostos gregos.

Cabe à época moderna, então, o triste privilégio de ter transformado a óbvia constatação do poder sugestivo da palavra no projeto consciente de introduzir a violência na própria linguagem. A manipulação das consciências através da violência lingüística organizada se tornou uma experiência tão comum que uma exposição das relações entre violência e linguagem é hoje parte integrante de uma teoria da violência.

Além disso, essa experiência não se limita à esfera da política em sentido técnico, mas já faz parte do patrimônio cotidiano dos divertissements do homem. A explosão da pornografia a partir do fim do século XVIII de fato não é senão a descoberta (destinada a logo em seguida sair do terreno relativamente inócuo da literatura) de que determinadas expressões lingüísticas em um certo contexto podem produzir sobre quem as percebem um efeito que resta subtraído de sua vontade. Esse efeito, que, ao agir sobre o patrimônio instintivo do corpo humano, passa por cima da vontade e opera aquela redução do homem à natureza – que é o procedimento típico da violência –, é a excitação erótica. Assim, aquilo que constitui o fascínio da pornografia é precisamente a aparição da violência no reino mesmo da não-violência, isto é, na linguagem. O mais sério e coerente dos teóricos da pornografia, o Marquês de Sade, havia formulado o projeto consciente (que constitui a exata contrapartida do projeto kantiano de uma máxima de ação que pudesse elevar-se enquanto lei universal) de encontrar uma forma de violência “cujo efeito continuasse a agir infinitamente, ainda quando eu tivesse cessado de agir, de modo que não houvesse um só instante da minha vida que, até mesmo dormindo, não fosse causa de alguma desordem e essa desordem se estendesse a ponto de provocar uma corrupção generalizada e uma alteração tão formal que o efeito se prolongasse inclusive para além de minha vida”. A violência lingüística lhe ofereceu esse multiplicador universal da violência.

De outra parte, olhando mais atentamente, essa característica da pornografia também está, de algum modo, presente em uma forma de expressão lingüística que se costuma situar no lugar mais alto da hierarquia dos valores culturais: a expressão poética. Não é por acaso que, durante os mesmos anos em que Sade formulava o seu projeto de uma multiplicação universal da violência, Hölderlin (que é apenas o primeiro de uma longa série de poetas que se serviriam de imagens de violência para descrever sua experiência da poesia) falava da violência da palavra trágica como aquilo “que dá a morte, porque o corpo que ela aferra realmente mata”.

A descoberta de que, em certa medida, o uso da violência é parte integrante da linguagem poética pode, além disso, ser percebida em Platão. É curioso notar como o fundamento do tão discutido ostracismo por ele imposto aos poetas raramente tenha sido compreendido, embora seja, em certo sentido, perfeitamente explícito. Tal fundamento repousava na convicção de que a persuasão não podia em circunstância alguma tornar-se violenta. É esse o pressuposto da teoria socrática que define como maiêutica (arte da parteira) o caráter mais autêntico da livre relação lingüística entre os seres humanos. A maiêutica é incompatível com a violência, porque a violência, como irrupção do exterior que tem por efeito imediato a negação da liberdade daquele sobre quem é exercida, de modo algum pode trazer à luz a espontaneidade criativa interior da sua vítima, mas tão somente a sua nua corporeidade. Exatamente porque a poesia efetuava uma forma de persuasão que não dependia da sua relação com a verdade, mas da sua peculiar eficácia emotiva, ligada ao ritmo e à música – e agia, então, de algum modo, violenta e corporalmente –, Platão se viu forçado a banir os poetas da sua cidade.

Mas aquilo que verdadeiramente cava um abismo entre nossa experiência política e aquela grega é a descoberta de que a própria persuasão pode (em determinadas formas e circunstâncias, isto é, quando ela esteja desvinculada, graças às modernas possibilidades de reprodução da linguagem escrita e falada, da livre relação lingüística entre dois seres humanos) tornar-se violência. Essa descoberta é o fundamento de uma forma de violência amplamente difundida em nossa sociedade e que, pelo menos em sua atual estrutura, é a única que o nosso tempo pôde legitimamente pretender ter inventado: a propaganda.


A aparição da propaganda nos conduz de volta ao problema que constitui propriamente o nosso objeto, isto é, aquele da relação entre a violência e a política. A esse respeito, podemos observar que em nosso tempo se difundiu uma teoria da violência que inverte completamente as idéias tradicionais sobre o tema.

Segundo essa teoria, a violência, longe de ser incompatível (como Platão acreditava) com a arte da parteira, pelo contrário, seria, nas palavras de Marx, “a parteira de toda sociedade grávida de uma nova”. Essa frase do Capital adquire particular importância não só porque se pode dizer que as modernas discussões sobre a violência não são outra coisa senão tentativas de exegese dela, mas também porque, se se tem presente a identificação marxiana de política e sociedade, sua correta interpretação permitirá compreender inclusive de que modo Marx entendia a relação entre violência e política.

O problema não é tão simples como parece porque é evidente que o juízo de Marx não se refere a qualquer tipo de violência. Em oposição à violência que, demolindo a velha forma social, exerce uma ação maiêutica em relação à nova sociedade, está, de fato, a violência que conserva o direito existente e se opõe a qualquer mudança. Isso significa que, nesse ponto, o problema passa a ser aquele da identificação de uma violência justa, isto é, da violência que, voltada para algo radicalmente novo, possa legitimamente aspirar a definir-se revolucionária.
O critério mais comum de identificação dessa violência se baseia sobre aquilo que se poderia definir como uma espécie de darwinismo aplicado à história. Segundo essa teoria (que, na realidade, embora seja costumeiramente mistificada como marxismo ortodoxo, tem muito pouco a ver com o marxismo e deriva, pelo contrário, da concepção sociológica burguesa da história desenvolvida na segunda metade do século passado sob a influência do darwinismo), a História se configura como um processo regido por leis necessárias em tudo análogas àquelas que governam o reino natural. A identificação marxiana do homem e da natureza – que implicava uma transformação radical dos dois conceitos (a sua aufhebung, em termos dialéticos) – vem aqui compreendida grosseiramente como a redução da História à idéia de natureza predominante na ciência oitocentista.[2] A conciliação hegeliana de necessidade e liberdade que Marx constantemente almejava se torna assim pressuposto de uma instauração do reino da necessidade mecanicista, que não deixa, na realidade, lugar algum para a atividade humana livre e consciente.

A partir desses pressupostos, o problema da identificação da violência justa é rapidamente resolvido: que a violência seja a parteira da história significa, segundo essa teoria, que ela não tem outra tarefa senão aquela de apressar e de ajudar a verificação – também inevitável – das leis necessárias da História, e como justa se define, então, a violência que responde a esse fim; e como injusta, aquela que lhe oferece resistência. Para entender plenamente o grosseiro dessa interpretação, convirá observar que, com base nela, o papel do revolucionário se torna aquele de um naturalista que, identificada – no âmbito da natureza – qual seria a espécie condenada a sucumbir na luta pela vida, se pusesse a acelerar esse desaparecimento através de todos os meios de que dispõe, tendo como único escopo a apressar a realização das leis da evolução.

E esse é, de fato, o modelo de ação dos movimentos totalitários que, em nosso tempo, invocaram para si o direito ao uso da violência revolucionária, assim como dos processos involutivos criados no seio dos autênticos movimentos revolucionários: em suma, é o que aconteceu na Alemanha nazista com a deportação dos judeus, e, na Rússia, na época dos grandes expurgos de 1935, com a deportação de inteiras populações soviéticas, com a única diferença de que enquanto, no primeiro caso, Hitler queria “apressar” a realização de uma lei de natureza (a superioridade da raça ariana), no segundo, Stalin acreditava «apressar» a verificação de uma lei histórica não menos necessária.

Mesmo não levando em consideração as tenebrosas conseqüências que ela acarretou sobre os destinos políticos de nosso tempo, o defeito dessa teoria, do ponto de vista que aqui nos interessa, reside na sua busca pelo critério da violência fora da própria violência. Ela não faz senão enquadrar a teoria da violência em uma teoria mais ampla dos meios em relação a um fim superior que se coloca como único critério da justiça dos próprios meios. Benjamin observou com razão que aquilo que pode emergir de um tal sistema já não é um critério da violência mesma como princípio, mas simplesmente um critério para os casos da sua aplicação. A teoria que tende a justificar o meio revolucionário através da justiça do seu fim é tão contraditória quanto a teoria legalista que tende a garantir a justiça dos fins através da legitimidade dos meios repressivos.

Como a violência que reina na natureza não pode ser definida como justa senão em relação ao desenho cósmico da providência divina, também a violência humana pode ser dita justa apenas por aqueles que concebem a história como movendo-se em um tempo linear homogêneo ao longo de um trilho pré-determinado (essa é a visão do progressismo vulgar). E como a cultura européia sentiu necessidade de uma teodicéia, ou seja, de uma justificação filosófica de Deus, somente quando, extinta a fé imediata na justiça divina, ela perdeu a capacidade de conciliar a crueldade da história com a bondade celeste, do mesmo modo se começou a sentir necessidade de uma justificação da violência apenas quando já se tinha perdido a consciência de seu significado original. Mas uma teoria da violência revolucionária enquadrada em uma teodicéia da história esvazia de todo conteúdo a palavra «revolução», porque o revolucionário se tornaria paradoxalmente uma espécie de Pangloss convencido de que tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis.

O problema que aqui nos interessa não é, portanto, aquele de uma justificação da violência (entendida como meio em relação a um fim justo), mas aquele da procura de uma violência que não precise de nenhuma justificação, ou seja, enquanto tenha em si mesma o critério do próprio direito de existir.

Tanto Sorel quanto, em sua trilha, Benjamin perceberam a necessidade, para fundar uma teoria da violência revolucionária, de sair do círculo vicioso dos meios e dos fins e de procurar uma forma de violência que, por sua própria natureza, fosse irredutível a qualquer outra. Sorel respondeu a essa exigência distinguindo a força, que tende à autoridade e ao poder – ou seja, a um novo estado –, da violência proletária, que quer, pelo contrário, abolir o próprio estado. Segundo Sorel, a fonte de todo mal-entendido no tema da violência proletária residia no fato de que Marx tinha descrito com muita minúcia os fenômenos da evolução da ordem capitalista, com suas mudanças também violentas, mas tinha sido inversamente muito sóbrio quanto aos pormenores da organização do proletariado. “Essa insuficiência da obra de Marx teve como conseqüência o desvio do marxismo de sua verdadeira natureza. Aqueles que se orgulhavam de sua ortodoxia marxista não quiseram acrescentar nada àquilo que seu mestre tinha escrito e acreditaram que deviam utilizar, em seu raciocínio sobre o proletariado, aquilo que tinham aprendido da história da burguesia. Ou seja, nem ao menos suspeitaram que houvesse de estabelecer-se uma diferença entre a força que move em direção à autoridade e procura realizar uma obediência automática, e a violência que quer romper com essa autoridade. Segundo eles, o proletariado deve adquirir a força assim como a burguesia a adquiriu, servir-se dela assim como a burguesia o fez e acabar por chegar a um Estado socialista que substitua aquele burguês”.[3]

Desenvolvendo a teoria soreliana da greve geral proletária, Benjamin procurou o modelo da violência revolucionária na distinção entre violência mítica, que põe o direito e, por isso, pode ser chamada de dominante, e violência “pura e imediata”, que não quer pôr o direito, nem mesmo na forma de um ius condendum, mas depô-lo juntamente com a força na qual ele se apóia, isto é, o Estado, e, desse modo, abrir uma nova época histórica.

Em ambos os casos, todavia, a exigência de encontrar uma violência que contivesse em si mesma o próprio princípio e o próprio centro foi satisfeita apenas pela metade; e isso porque, em última instância, ainda é um critério teleológico – ou seja, o fim para o qual ela se volta – que decide a questão: a deposição do Estado e o início de uma nova época histórica. Não obstante, tanto Sorel quanto Benjamin, sob um olhar mais atento, se lançaram sobre o limiar extremo a partir do qual uma teoria da violência revolucionária se torna possível. O que é, de fato, uma violência que não põe o direito? Não contradiz a essência mesma da violência o fato de que ela não afirme um poder? E o que confere à violência revolucionária a miraculosa capacidade de fazer saltar o continuum da história e de dar assim início a uma nova era? Na resposta a essas interrogações se precisa a tarefa de uma teoria da violência revolucionária.


A idéia de uma violência que deliberadamente não se propõe a afirmar um direito, mas a romper a continuidade do tempo humano e, assim, dar início a uma nova época, não é tão inconcebível como parece à primeira vista, e se conhece pelo menos um exemplo dela, ainda que situada fora da experiência dos povos chamados civilizados: a violência sacra. Quase todos os povos primitivos conhecem rituais violentos cuja celebração visa a interromper o fluxo homogêneo do tempo profano e, re-atualizando o caos primordial, a permitir ao homem, tornado novamente o contemporâneo dos deuses, alcançar a dimensão original da criação. Toda vez que a vida da comunidade está ameaçada ou toda vez que o cosmos lhe aparece esvaziado e esgotado, o homem primitivo recorre a essa espécie de regeneração do tempo, antes da qual uma nova época (uma nova revolução do tempo) não poderá ter início.

De modo bastante curioso, esses ritos de regeneração do tempo podem ser encontrados com especial freqüência entre os povos considerados criadores de história: babilônios, egípcios, hebreus, iranianos, romanos, como se esses povos, que foram arrancados de um modo de vida fundado sobre um registro puramente cíclico e biológico do tempo, sentissem com maior intensidade a ânsia de regenerar-se periodicamente, renovando ritualmente o ato de violência que tinha dado origem à sua história.

O desejo de reintegrar na violência sacra o tempo da criação original, nos povos em que essa violência existe, não nasce de uma recusa pessimista da vida e da realidade. Ao contrário, é tão somente através dessa irrupção imprevista do sagrado e dessa interrupção do tempo profano que o homem primitivo assume, a cada vez, até o ponto mais extremo (isto é, até o sacrifício de si e do próprio sangue) a sua responsabilidade em relação ao cosmos e readquire, assim, o poder de aceder mais uma vez à criação de uma cultura e de um mundo histórico.

Os gregos, que, por sua concepção da polis, se punham com especial premência o problema da violência sacra, expressavam todo seu inquietante significado na figura de Dionísio, ou seja, de um deus que morre e renasce. Na intuição dessa proximidade essencial da vida e da morte, da violência e da geração, e na descoberta de que, fazendo experiência disso, o homem pode alcançar uma nova geração do tempo e um novo nascimento, está o caráter específico da violência sacra. E, nessa perspectiva, adquire um significado especial o fato de que As Bacantes de Eurípides – ou seja, uma tragédia que tem precisamente por objeto o conflito entre a violência sacra do deus e a violência profana de um tirano – se fechem com as palavras que exprimem a eterna fé do homem na possibilidade de que alguma coisa de absolutamente novo e inesperado possa produzir-se, dando novamente início ao tempo:


A vontade de um deus tem muitas formas
e muitas vezes ele surpreende-nos
na realização de seus desígnios.
Não acontece o que era de esperar
e vemos no momento culminante
o inesperado.[4]



Há uma frase de Marx, na Ideologia alemã, em que a capacidade da revolução para dar um novo início à história e para fundar a sociedade sobre novas bases é explicitamente relacionada ao caráter especial da experiência que a classe revolucionária nela realiza. Marx escreve que “a revolução não é necessária apenas porque a classe dominante não pode ser abatida de nenhuma outra maneira, mas também porque somente através da revolução a classe que a abate pode conseguir liberar-se de toda a velha sujeirada e, por isso, tornar-se capaz de fundar novamente a sociedade”. Ou seja, aquilo que confere à classe revolucionária a capacidade única de abrir uma nova época histórica é o fato de que, na negação da classe dominante, ela experimenta a própria negação.

Se atribuirmos agora à violência o caráter que Marx confere à experiência revolucionária, podemos dizer que encontramos o critério sobre o qual uma teoria da violência revolucionária pode ser fundada.

Não a violência que é simplesmente meio para o fim justo da negação do sistema existente, mas a violência que na negação do outro faz experiência da própria autonegação e que na morte do outro traz à consciência a própria morte, é a violência revolucionária. Apenas na medida em que é portadora dessa consciência, isto é, apenas na medida em que diante da ação violenta sabe que é essencialmente a sua própria morte que, em todo caso, está em questão, a classe revolucionária adquire não mais o direito, mas assume, em vez disso, o terrível compromisso de recorrer à violência. Assim como a violência sacra, também a violência revolucionária é antes de tudo paixão, no sentido etimológico da palavra, autonegação e sacrifício de si. Desse ponto de vista superior, tanto a violência repressiva – que conserva o direito – quanto a violência do delinqüente – que se limita a negá-lo –, assim como toda violência que se exaure na posição de um novo direito e de um novo poder, são equivalentes, porque a negação do outro realizada por elas permanece simplesmente como tal e jamais pode tornar-se negação de si. Toda violência meramente executiva, de qualquer projeto de que se considere instrumento – como a sabedoria popular intuiu maculando de infâmia as figuras do carrasco e do policial –, é essencialmente impura, porque lhe permanece impedida da única possibilidade que poderia redimi-la, ou seja, aquela de fazer da negação do outro a própria autonegação.

Por isso, apenas a violência revolucionária resolve aquela contradição em que já Hegel vira o íntimo dissídio da violência, isto é, o fato de que “ela destrói a si mesma imediatamente no seu conceito, enquanto manifestação de uma vontade que anula a manifestação ou a existência de uma vontade”.[5]

Essa observação nos fornece também o único critério segundo o qual uma violência poderá aspirar legitimamente a definir-se revolucionária, porque é evidente, se consideramos que a experiência comum que nossa sociedade nos oferece é aquela de uma violência que quase nunca é consciente da própria contradição fundamental, que o efeito revolucionário não segue imediatamente todo ato violento dirigido contra a classe dominante como o efeito taumatúrgico à absorção do remédio. Só quem, através da violência, atingiu conscientemente a negação de si e, assim, se “liberou da velha sujeirada”, pode dar um novo início ao mundo e, como toda revolução sempre fez, reivindicar uma interrupção messiânica do tempo e a abertura não apenas de uma nova cronologia (um novus ordo saeculorum), mas de uma nova experiência do tempo, de uma nova História.


O problema da definição da violência revolucionária se revelou ser, então, aquele da exposição de sua relação com a morte. Essa circunstância também nos permite precisar em que sentido é possível conceber a relação entre a violência revolucionária e a cultura.

Toda cultura está voltada, de fato, para a superação da morte. Pode-se dizer que tudo aquilo que os homens pensaram, conheceram, escreveram ou formaram como cultura foi formado, escrito, conhecido ou pensado com o escopo de reconciliar-se com a morte. Esse também é o fundamento da oposição que o homem sempre viu entre violência e linguagem: porque a linguagem é por excelência a potência humana dirigida contra a morte e o único terreno sobre o qual é possível ao homem reconciliar-se com ela. À pergunta extrema “por que há algo em vez do nada?”, a cultura responde reportando a atenção para o mistério, que Benjamin certa vez definiu como “algo para o qual o invólucro é essencial”, e termina finalmente nos levando a uma região onde “nada” e “algo”, “vida” e “morte”, “geração” e “negação” revelam seu recíproco co-pertencimento e se aproximam até o limite das possibilidades da linguagem. Tendo-nos conduzido até o limiar daquilo que não pode ser ulteriormente conhecido na linguagem, a cultura esgota a sua função. Na sua tarefa de reconciliar o homem com a morte, a cultura não pode seguir adiante sem negar-se.

Apenas a violência revolucionária pode ultrapassar esse limiar. Ela é o ponto em que o homem experimenta do modo mais deslumbrante a indissolúvel unidade da vida e da morte, da geração e da negação. Que essa tomada de consciência possa ter lugar somente em uma esfera que – por estar além da linguagem – perturba e expropria radicalmente o ser humano (porque a violência, enquanto autonegação, não pertence nem ao agente nem à vítima, mas é essencialmente – como haviam intuído os gregos, ao lhe darem forma através da figura de um deus louco – embriaguez e expropriação de si) a ponto de o vivente não poder reconhecer a própria e essencial proximidade com a morte sem, ao mesmo tempo, negar-se, é o selo colocado sob custódia do mistério mais profundo e mais sagrado da existência do homem entre os seus semelhantes.

Na medida em que é essa experiência da própria negação, a violência revolucionária é, de fato, o arrheton por excelência, o indizível que eternamente ultrapassa as possibilidades da linguagem e elude toda justificação. Mas exatamente na medida em que, na violência revolucionária, o homem vai além da linguagem e se nega como ser dotado de palavra, ele pode alcançar a esfera original onde o conhecimento do mistério que encontrou sua forma na cultura se despedaça e um novo início se torna possível para sua ação e para sua palavra. Se no início da história da salvação e da conciliação com a morte sempre estará escrito “no princípio era o verbo”, no início de toda nova história temporal sempre se lerá “no início era a violência”.

Esse é o limite e também a insuprimível verdade da violência revolucionária. Na medida em que supera o limiar da cultura e se detém, no seu gesto, em uma zona inacessível à linguagem, a violência revolucionária afunda, por assim dizer, no Absoluto e justifica o fato de que Hegel tenha podido exprimir o caráter mais profundo da verdade através da imagem violenta de um “delírio báquico em que não há nenhum membro que não esteja ébrio”.



[1] Veja-se a exposição que Hannah Arendt faz sobre essa concepção grega da política no primeiro capítulo de A condição humana. [Voltar ao texto]

[2] É notório que a ciência contemporânea abandonou essa idéia e não mais conhece leis de natureza calcadas sobre um modelo mecanicista do mundo. [Voltar ao texto]

[3] Sorel. Réflexions sur la violence, Paris, 1908, p. 156 [edição brasileira: Reflexões sobre a violência. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1992]. [Voltar ao texto]

[4] Eurípides. Ifigênia em Áulis. As Fenínias. As Bacantes. Tradução de Mário da Gama Kury.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 279. [Voltar ao texto]

[5] Hegel. Lineamenti di filosofia del diritto, I, III, 92. [Voltar ao texto]



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