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Crítica Acéfala
de Raúl Antelo
Buenos Aires, Editora Grumo
(Coleção Materiales), 2008


Um jagunço de posse da eletricidade

por Alexandre Nodari

"La Historia es mera exterioridad de la ficción”. Tal sentença, verdadeiro “objecto gritante” que encontramos em Crítica Acéfala recapitula – no duplo sentido de cumprimento e abolição – o percurso crítico de seu autor, Raúl Antelo. A frase, integrante do ensaio voltado às transformações do capitalismo (a passagem da concorrência ao monopólio, da empresa ao cassino, do emprego ao jogo, em suma, da indústria ao espetáculo) através da análise de A cartomante, de Machado de Assis, e duas de suas “traduções”, a de Jorge Luis Borges para a Revista Multicolor de los Sábados, e a de Clarice Lispector n’A hora da estrela, sentencia não o fim da história, mas o seu caráter aleatório. Não há mais Destino. Ou melhor, ele não pode ser previsto pelo gesto de leitura (das cartas, mas também dos indicadores econômicos). Não foi à toa, portanto, que, ao tentar definir o dinheiro, o jovem Marx tenha feito uso de uma formulação que parece conceituar a ficção, ou a linguagem: “O dinheiro – enquanto exterior, não oriundo do homem enquanto homem, nem da sociedade humana enquanto sociedade – faz da representação efetividade e da efetividade uma pura representação, transforma igualmente as forças essenciais humanas efetivas e naturais em puras representações abstratas e, por isso, em imperfeições, angustiantes fantasias, assim como, por outro lado, transforma as efetivas imperfeições e fantasias, as suas forças essenciais realmente impotentes que só existem na imaginação do indivíduo, em forças essenciais efetivas e efetiva capacidade”. O dinheiro, enquanto linguagem objetificada, apresenta-se como pura exterioridade. É no mesmo sentido que podemos ler os espólios do célebre debate no cenário jurídico do século XIX, entre Ihering e Savigny sobre a natureza do instituto jurídico da posse. Se houve um vitorioso neste jogo agonístico, já que a maioria das legislações adotou a concepção do primeiro, tudo se complica quando atentamos ao objeto em disputa: o lugar onde um fato vira direito (ou seja, onde uma coisa se torna um objeto, onde a ficção toca a história). Ihering definia a posse justamente como a “exterioridade, a visibilidade da propriedade”, mas a proibição jurídica de argüir questões de propriedade em ações possessórias, bem como a hercúlea, incessante, mas infrutífera, tentativa dos juristas de isolarem as pseudo-posses (ficta possessio, posse indireta, etc.), revela que é possível que a exterioridade não seja uma exteriorização, que o fora independa do dentro, que haja um apossamento que não seja posse, a nuda detentio, assim como há vida nua sem forma de vida, como há dinheiro sem valor, como há história sem ficção. É este o campo que Lacan chamou de Real. Neste sentido, a crítica não pode declarar falência, como quer certa matriz de pensamento brasi-frankfurt-kantiana; ela é, desde sempre, infalível (ainda que perca a cabeça), pois não visa julgar a adequação de comportamentos a normas de valor, mas desativar estas normas que vigem sem valorar, como pura força. Isto não significa que a crítica passe a girar em falso, que ela se converta, para usar as palavras de Araripe Jr. na sua invectiva contra o hermetismo de seguidores de Mallarmé (e, avant la lettre, contra certo pensamento ingênuo-desconstrucionista), em “niilismo literário” (cujas conseqüências máximas seriam a “verbolisia” e o “estilismo agudo” - “um estilo que persegue um assunto”), a idéia – que teria tomado conta, por exemplo, de Raúl Pompéia – de “que toda a tradução do pensamento humano era uma queda satânica, um suplício de Prometeu, e que, neste caso, mais valia impedir que esse poema se cristalizasse no bico da pena do compositor”. Se há história sem ficção, se há literatura sem sociedade, a crítica não só não pode se limitar a relacionar as duas esferas, como não pode cair no perigo oposto, ainda que conjugado ao primeiro, o de separá-las, o de valorizar (e praticar) o mero delírio. A tarefa continua sendo aquela apontada por Guy Debord no Relatório que apresentou quando da fundação da Internacional Situacionista de Cosio d’Arroscia, em 1957: “É preciso (...) racionalizar mais o mundo, primeira condição para torná-lo apaixonado”. É neste contexto que se deve compreender a erudição e o cuidado filológico, sempre apontados como marcantes nas análises de Antelo, e que continuam presentes neste novo livro, publicado pela coleção Materiales da Editora Grumo, e que reúne parte da sua vastíssima produção mais recente. Não se trata de esforço historicista, nem seu oposto – o diferimento infinito. Antes, o resultado parece ser o saber daquele “jagunço civilisado”, descrito por Araripe Jr. em carta a Euclides da Cunha, que, “de posse da eletricidade, terá sobre o extrangeiro a vantagem de conhecer não só os caminhos secretos da vida interior, mas tambem de saber que são de pedra os monstros, que fazem esgares das torres da velha cathedral e não obstante assustam os desprecavidos que ali penetram”. Trata-se, nas palavras do próprio Antelo, de “ruptura imanente”. Se, de fato, como argumenta Deleuze, o conceito é o momento poético do pensamento e, como quer Agamben, os dispositivos são formas de capturar a vida, máquinas de produção de subjetividade, a noção poética de “ruptura imanente” visa, no corpo-a-corpo com a história e a ficção, liberar a potência Comum a ambas – e isto quer dizer: desativar a relação que separa, articulando interioridade e exterioridade. Não é por acaso que esta noção tenha sido apresentada por Antelo no contexto de uma dupla refutação, que é também uma dupla aceitação: tanto da tática “desconstrucionista”, quanto da “marxista” (e o caráter aleatório desta oposição é muito bem traçada em um dos ensaios que compõem Crítica Acéfala, com a alternância de posições entre os dois lados da polêmica), tanto do “entre-lugar” quanto das “idéias fora do lugar” (e, de fato, a “ruptura imamente” é, ao lado destes dois conceitos, provavelmente o mais criativo e elucidativo no cenário da crítica brasileira das últimas décadas), tanto da antropofagia quanto da antropoemia, os dois “tipos ideais” entrevistos por Lévi-Strauss em Tristes Trópicos. Pois já não se trata de optar por um ou outro, já que o pluralismo gueto-globalizante articula ambas estas “políticas canibais”, cristalizando o que poderíamos chamar de abertura limitada ao Outro. Como definiu Debord, “O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado”. Por sua vez, a “ruptura (antropofágica) imanente (antropoemética)” propõe devorar aquilo que se costuma vomitar e vomitar o que se deveria devorar: se o limiar antropofágico “assinala o penúltimo, algo que estando prestes a se encerrar, torna-se a abrir incessantemente” e o limite antropoemético “imagina encontrar um termo de fixação e controle do diferendo”, o horizonte de universalidade proposto se constrói pela desconstrução e apropriação “desse limite institucional para torná-lo um limiar perspectivo a partir do qual se realiza a crítica retrospectiva de toda situação liminar”. Observe-se a atenção dedicada ao duplo movimento da história: abertura ao futuro na conversão do limite em limiar, e rememoração do passado, pela crítica da decisão atualizadora de uma dentre muitas possibilidades históricas. Para usar outra expressão de Clarice Lispector, “saudade do futuro”. O universal, o limite, deste modo, não é uma consciência relampejante das diferenças, o fim ou o Marco Zero da história, mas o que possibilita toda história, uma abertura não-originária, ainda que ontológica: “Uma tal aliança indissolúvel entre apropriação e expulsão designa, sem dúvida, a diferença ontológica como luta permanente, porém, ultrapassa esse círculo postulando que o elemento do mesmo, que é assim evocado como solo comum de todas as coisas diferentes ou inautênticas, nelas compreendidas as que se opõem entre si, nunca é uma dimensão originária, situada fora do ente, mas um traço que lhe é apenso.” Ou seja, a história – a História universal da infâmia – não pode ser prevista porque ela é exterioridade de uma exterioridade (a ficção). A leitura não prevê porque não há o que ser previsto. Ou melhor, porque a linguagem não serve para prever. A história só se repete como farsa; a literatura, como paródia. Em ambos, nos encontramos diante de um novo gesto humano, de um novo gesto de linguagem. E cada novo gesto re-presenta um recomeço, um nascimento, como diria Hannah Arendt - e uma chance de felicidade, isto é, “aquilo que livra o homem afortunado do imbróglio dos Destinos e da rede de seu próprio destino” (Walter Benjamin). Por isso, ao tentar definir a ficção, Juan José Saer insistia que ela não era “una reivindicación de lo falso”, que não era “una claudicación ante tal o cual ética de la verdad, sino la búsqueda de una un poco menos rudimentaria”. Assim, diante “de la posición singular de su autor entre los imperativos de un saber objetivo y las turbulencias de la subjetividad, podemos definir de un modo global la ficción como una antropología especulativa”. Dito de outro modo: a ficção investiga o gesto ético da linguagem, presente em cada ato de fala (e isto quer dizer: em cada instante histórico), pois, como argumenta Agamben em seu mais recente livro, “O elemento decisivo que confere à linguagem humana as suas virtudes peculiares não está no instrumento em si, mas na posição em que este deixa o falante, no seu predispor dentro de si uma forma vacante que o locutor deve a cada vez assumir para falar. Isto é: na relação ética que se estabelece entre o falante e sua língua. O homem é aquele vivente que, para falar, deve dizer ‘eu’, deve, isto é, ‘apanhar a palavra’, assumi-la e fazê-la própria”. Vivemos em um momento histórico em que o capitalismo vídeo-financeiro objetificou a linguagem em espetáculo. Agora, não só o dinheiro replica a estrutura da linguagem - a linguagem também se tornou dinheiro. O dispositivo que permite ambas estas operações, que possibilita a relação-separação entre interno e externo, entre ficção e história, é a meta-noção de objeto. Em sua contribuição, não-publicada, para a Enciclopédia Soviética, Arte absoluta e política absoluta, Carl Einstein sustentava que “No objeto acumula-se a tradição; nele a imediaticidade é adiada, deslocada. (...) O homem está farto de objetos que o descrevem; ele experimenta uma Utopia do objeto que, sem respeito aos homens, lhes impõem o trabalho objetificado”. Por isso, “A tarefa da Revolução” seria a “desrealização, destruição do objeto para a salvação dos homens.” O pathos da Crítica Acéfala de Raúl Antelo se mostra quando descarregada toda a eletricidade acumulada para des-realizar o objeto autônomo: aquele habitus próprio da humanidade (o apossamento da linguagem e da história), onde, como lemos na Epístola do Vivente filho do Vigiante de Avicena, “Todos estão no deserto e não necessitam de abrigo”.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.