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Em trânsito

de Alberto Martins

São Paulo:
Companhia das Letras, 2010


Circulando, circulando:

mobilidade e trabalho na poesia de Alberto Martins

por Fabio Weintraub

Uma das principais contradições da vida urbana degradada ao longo das últimas décadas diz respeito à combinação paradoxal entre paralisia e mobilidade. Se, por um lado, a ideia de fluxo impõe-se sobre a de território, submetendo pessoas, produtos, informações à ditadura do movimento e da uniformização, do deslizamento contínuo, exotópico, pelas metageografias da metropoleletrônica[1], por outro, prospera a segregação socioeconômica e toda a sorte de enclausuramentos, opondo as elites flutuantes, conectadas às redes transnacionais de consumo e entretenimento, à população pobre nas periferias guetificadas, nas favelas planetárias ou vivendo ao relento, no olho da rua, exposta a toda sorte de violências.

A utopia da motorização individual (a liberdade de um transporte não subordinado a trilhos ou horários) converte-se facilmente em prisão quando o automóvel se populariza, estendendo-se à sociedade como um todo.[2] Tendo determinado nos países capitalistas centrais um tipo de urbanização fragmentada e dispersa, com baixa densidade de ocupação, e atiçado o capital imobiliário em direção a empreendimentos como os condomínios fechados e shopping centers no entroncamento de avenidas e rodovias, a “carrolatria” matou a rua e o pedestre (“pedestre, perdeste”, constata um grafite espalhado em algumas faixas de pedestres de São Paulo) e também esvaziou áreas centrais urbanas, que, abandonadas pela elite, passam a ser ocupadas pelas camadas mais pobres da população até que o mercado imobiliário volte a se interessar por elas, em processos de “revitalização” de áreas degradadas. Na periferia do capitalismo, esses fenômenos de destituição da calçada pela autovia são ainda mais agravados pela falta de fiscalização no uso do solo, pela construção à margem da legislação urbanística, pela destinação de recursos públicos em desacordo com as necessidades da maioria da população e pela desigualdade brutal nos índices de mobilidade, determinada pelo nível de renda.

Aceleração paralisante das urbes midializadas, “bunkerização” das elites, guetificação dos pobres, destruição da rua pela autopista... Muitas são as dimensões em jogo nessa complexa combinação entre fluidez e paralisia. Elas determinam uma lógica circulatória bem diversa daquela que nos habituamos a identificar na poesia urbana moderna, a qual ainda dava espaço a encontros fortuitos e à flânerie baudelairiana. Nessa nova lógica, em que os espaços públicos adquirem estatuto residual, constituindo uma espécie de intervalo intransitável entre ambientes privados, especialmente dramático é o destino da calçada. Tradicionalmente oferecendo acolhida para aqueles que tudo perderam (desempregados, loucos, mendigos, vagabundos de toda sorte, “ciscos” que encontravam pouso no olho da rua), também a calçada sucumbiu à mobilidade compulsória do “circulando, circulando”, divisa que aparece no discurso das políticas públicas voltadas para a segurança e preservação do patrimônio, nas ações da Guarda Civil Metropolitana e na arquitetura antimendigo, em franca proliferação na selva das cidades.





Tal divisa, segundo Jean Paul Maulpoix, leva ao desconcerto do flâneur pós-moderno, que, contradizendo Pascal, não encontra o centro em parte alguma e é


o tempo todo reenviado às margens da cidade, como um lutador de box arremessado às cordas. Periferia por toda parte, só periferia, pois tudo é periférico. O retorno é infinito, ele dura todo o tempo da vida de um homem. Nada de sentido então, mas de zigue-zagues, nada de alegoria [...] “Circulando, não há nada para ver”: eis a palavra do fim.[3]

“Circulando, circulando”: quando a exigência de mobilidade se transfere do âmbito econômico para o espaço público, “todo corpo inerte se torna suspeito”, afirma Alban Lécuyer.[4] O videomaker Giles Paté, no documentário Le Repos du fakir [O descanso do faquir], fez um inventário dos dispositivos de repressão à imobilidade em uma cidade como Paris. Afirma ele:


Le Repos du fakir esboça uma tipologia dos mobiliários anti-SDF[5] parisienses, mas a observação dos espaços públicos da capital vale para todas as cidades onde essa concepção de espaço público se dissemina. A gestão tecnocrática considera os corpos como objetos que perturbam a regulação dos fluxos. Os cidadãos são infantilizados, agredidos por esses dispositivos antiergonômicos que visam descartar os sem-teto dos espaços públicos, atingindo, porém, todos os cidadãos. O espaço é assim degradado e deixa de ser um espaço partilhado.[6]

Assim, de um lado, temos esses expedientes de repressão da imobilidade (ligados à “rehaussmanização” generalizada das cidades, levada a cabo a partir da voga neoliberal dos anos 1980), de outro, temos a promoção desigual da circulação, que distingue entre uma suposta “boa circulação”, ligada ao consumo, ao turismo, ao transporte de mercadorias e trabalhadores qualificados, e a “má circulação”, de imigrantes pobres, desempregados, delinquentes. Nota-se então como alguns segmentos da sociedade são alvo de solicitações contraditórias, que, ao mesmo tempo, lhes proíbem a imobilidade e dificultam a circulação.

Tendo em vista tal contexto, o presente artigo pretende examinar algumas figuras dessa complexa lógica circulatória na poesia de Alberto Martins, cuja mais recente coletânea de poemas, Em trânsito (2010), explora de modo sistemático as relações entre mobilidade urbana e trabalho, mobilidade e memória, circulação e propriedade.

O título do livro é o mesmo utilizado em uma exposição de 2007, retrospectiva que reunia a produção gráfica e escultórica do autor ao longo de duas décadas. Em texto para o catálogo dessa exposição, o crítico Guilherme Wisnik se vale da ideia de trânsito para entender o próprio percurso criativo de Martins como um artista entre a poesia e as artes plásticas (e, no âmbito da gravura, entre o abstrato e “certo figurativo”), acolhendo a mobilidade como denominador comum entre as artes a que ele se dedica:


a mobilidade não é apenas um tema abordado formalmente na sua obra, mas o próprio motor criativo que a põe em funcionamento. Princípio que reflete uma compreensão estrutural da natureza mercurial das duas artes, já que a gravura – assim como o texto impresso – é o suporte multiplicável, e portanto circulante, de uma matriz única.[7]

A percepção desse princípio comum já havia sido formulada anos antes em um depoimento do próprio Martins ao se referir à base tipográfica como estrutura “real e imaginária” que dá materialidade à gravura e é “intrínseca ao escrever”.[8] Tal aproximação entre transporte, escrita e inscrição também se ligava, àquela altura, no princípio da década passada, ao “desrecalque do figurativo” na gravura, após um período marcado pela abstração geometrizante – o que corresponderia, nos poemas ilustrados de Cais (2002), à passagem de uma poesia de tipo mais sentencioso, impessoal, abstrata, marcada pelo jogo entre erosão e memória, pelo atrito entre luz e pedra do livro de estreia, Poemas (1990), para uma escrita lastreada pela experiência da paisagem (a Serra do Mar, o porto de Santos) como lugar inaugural, sítio que articula memórias familiares (o luto pela figura paterna), a história nacional, novo-mundista, relatos de viajantes, diálogos com outros poetas, como Rimbaud etc.[9]

Wisnik procura relacionar certos “motivos obsedantes” da poesia de Cais – o interesse por processos formativos lentos e graduais (sedimentação, calcificação), em oposição aos contrastes acentuados (ligados à busca de uma nitidez acerada, de matriz cabralina), bem como a abundância de imagens ligadas ao lodo, à água, ao mangue – à presença de sujeiras, zonas de contato e infiltração nas gravuras que os acompanham. O crítico reconhece aí certo amadurecimento formal, o qual ele tributa ao lastro oferecido por uma paisagem concreta que, ao mesmo tempo, traz para as gravuras o tema das trocas sem lastro, das aparições da forma-mercadoria desterritorializada (referindo-se, sobretudo, à série de caixas e engradados). Porém a morosidade no movimento dessa forma, entregue a inércias e suspensões, seria também característica “da experiência brasileira, ou sul-americana, da paisagem e do território” – o que se evidencia ainda nas esculturas articuladas de Martins, cujo movimento é tolhido pelo peso.

Assim, nesse artista, a mobilidade tipográfica da escrita e da gravura não se deteria na fetichização do próprio fazer, não derivaria para a autonomia dos jogos metalinguísticos autônomos, pois nela o lastro (mesmo aquele fornecido pelas fantasmagorias do comércio) torna o trânsito transitivo.[10]

É preciso levar em conta todos esses nexos entre circulação e memória (registro/escrita/inscrição); lastro e lentidão (e caráter nacional); transporte e transitividade, sem, no entanto ampliar demais o nosso foco a ponto de perder de vista o problema da circulação humana no espaço concreto da cidade. Se em Cais (bem como nas gravuras contemporâneas dos poemas nele reunidos) a mobilidade está mais circunscrita à experiência de uma paisagem específica, onde as coisas “ancoram e demoram” numa suspensão cheia de ressonâncias míticas, históricas e familiares, os poemas de Em trânsito parecem se ocupar menos da paisagem que dos percursos parciais, dos trajetos repetidos ao longo dos trilhos, “a caminho do trabalho” (título da seção inicial da coletânea), a caminho da padaria, de volta para casa; as travessias breves ou longas, as sondagens noturnas, imaginação adentro. Os versos vão na cola dos passantes e transeuntes, dos trânsfugas (termos que dão títulos a poemas), às voltas com questões como “Que marcas tais percursos deixam nas calçadas?”, “O que grava a cidade em nós?”, “A quem ela pertence?”, “O que se perde ou ganha nas cadeias produtivas ou fora delas?”. Essa mudança no estatuto dos trânsitos permite também um aprofundamento da articulação entre as dimensões subjetiva e pública em jogo nessa poesia, conforme explica o próprio autor:


A literatura é um meio de transporte. Ela nos move, em vários sentidos, nos leva a distintos lugares e condições da realidade. O livro, por exemplo, tem muitos pontos em comum com o transporte público. Ambos reúnem a dimensão íntima do destino individual (Aonde eu quero ir? Em que estação quero descer?) e a dimensão coletiva, pois aquele veículo não existe em função de um único indivíduo, mas sim como uma necessidade coletiva. [...] O destino da literatura está diretamente vinculado à possibilidade de uma rede de transportes públicos digna, decente, que torne possível o livre trânsito da população.[11]

Desde o poema-epígrafe, dirigido ao leitor comum, “anônimo, pedestre/ modesto passageiro de seu tempo// [...] que neste mundo engarrafado/ usa o poema como meio de transporte”, Em trânsito parece buscar essa perspectiva pedestre e pública de observação do espaço urbano, atenta ao esforço necessário para vencer distâncias, pois aqui a mobilidade é indissociável da dimensão do trabalho.

O livro divide-se em três seções. A primeira, “A caminho do trabalho”, se concentra justamente nos percursos de obrigação, no contraste entre faina e devaneio, entre a noite onírica, ou insone e especulativa (“Noite no apartamento”, p. 19; “Apartamento na noite”, p. 20; “Vira-lata na madrugada”, p. 23), e o dia industrioso e amortecedor, dia que despede a paisagem – “dar adeus a esse dia azul” (“Working day”, p. 35); “eu observo as nuvens// [...] eu ignoro/ o que se passa com elas/ quando viro as costas/ a caminho do trabalho” (“Maio – de tarde”, p. 44) –, oblitera a percepção e a linguagem – “o dia transcorre// [...] enquanto alguma coisa/ feroz/ funda/ e imprecisa/ foge –// sem que eu consiga/ apanhá-la pelo nome” (“Poema sem nome”, p. 38) –, mas que também é atravessado por pausas epifânicas para o café, por ímpetos demissionários contrapostos à identificação compassiva com o trabalho (precário ou desvalorizado) dos homens-sanduíche e dos revisores[12] e por repentes líricos como o da inveja das paineiras que se desvencilham dos fardos de algodão “sem aviso prévio” (“A caminho do trabalho”, p. 46).

A segunda seção, intitulada “Inscrições”, retoma os paradoxos dos trânsitos “não transitórios” (isto é, movimentos que, à força de se repetirem, deixam marcas de nossa passagem na cidade e da cidade em nós), deslocando a relação entre memória e mobilidade para um plano temporal e geográfico mais dilatado. Os registros aqui remetem à paleontologia, a fósseis e a estrelas, ao passado do Brasil (Anchieta) e da Europa, à história da arte nos campos da gravura (Hiroshige, Dürer) e da imprensa, da fotografia (Rodchenko, Capa), da poesia (Horácio, Vallejo, Áttila József), entre outras coisas. Trata-se de uma espécie de interregno no livro, um hiato temporal entre a primeira e a última seção, cujo foco se concentra de modo predominante no presente e no espaço geográfico da cidade de São Paulo, reconhecível por meio de alguns topônimos. Em certa medida, trata-se de uma seção próxima dos poemas recolhidos em Cais, pela adoção de uma visada histórica mais ampla. No entanto, ao mesmo tempo, concentrando-se na questão do registro, que ultrapassa o contexto “geoepocal” e nos torna contemporâneos do mais distante (de Horácio, num poema recitado por Flávio Di Giorgi, da constelação do Cruzeiro, “contemporâneo dos meus ossos”, p. 55), evidencia-se aqui, sobretudo nos poemas sobre gravadores, fotógrafos, poetas e artesãos anônimos, a dimensão pública da arte. Assim é que na casa do pintor Apeles, não havia pintura no reboco (“a arte/ estava a serviço da cidade/ e o pintor era um bem comum/ de toda a terra”, p. 59), da mesma forma que a pobreza de Hiroshige e Dürer atestava o privilégio por eles dado aos interesses da cidade e a descoberta da forma por Rodchenko em tempos revolucionários “era fruto/ do trabalho comum – e o trabalho comum/ uma alegria de todos” (p. 71).

Esses poemas, além de se somar às imagens do trabalho “alienado” da primeira seção e de enfatizar a centralidade do vínculo entre intimidade e esfera pública, também retomam a associação entre resistência e mobilidade, posta em relevo desde o primeiro poema do livro, “Estação Pinheiros” (p. 13), em que passageiros prestes a partir observam o trabalho da draga desassoreando o rio. É como se o deslocamento dos próprios passageiros dependesse da “carga revolvida” no fundo do canal, como se a fluidez só se estabelecesse graças ao trabalho sobre essa resistência oposta pela cidade, pela natureza e por outros homens. Tal articulação entre deslizamento e resistência atravessará o livro de ponta a ponta.

Assim, ainda nessa segunda seção, o tema da resistência vai aparecer principalmente no díptico “Na oficina”, sobre o custo corporal e a contraparte de paralisia do gesto criativo (“para uma boa sessão de trabalho/ vários dias parado”, p. 69) e sobre o contraste de resistências entre a alma da madeira e a da carne (“Na oficina II”, p. 70). Assim, a dimensão pública e às vezes anônima da arte conecta-se com a experiência dessas resistências e com certa mística do trabalho manual, por exemplo, no poema que encerra a seção. Nele, o livro é parido no útero da gráfica, destacando-se a importância das mãos em meio ao trabalho mecanizado, mãos que “como parteiras livram a passagem/ da morte à vida” (p. 78).

Por fim, na terceira seção, que dá título ao livro, há uma volta ao presente e a retomada de algumas das questões postas nas seções anteriores. Vemos aqui também poemas sobre o contraponto entre errâncias diurnas e noturnas (vários poemas sobre insônia), sobre os percursos invisíveis que sustentam a vida citadina (o trajeto do lixo e o da lenha que alimenta os fornos da cidade), sobre interrupções no fluxo de trabalho que não estancam as dívidas do alfaiate (“A noite de insônia do alfaiate endividado”, p. 91) e obrigam os operários da construção civil a “passar um tempo no sol/ um tempo na sombra” (“No canteiro de obras”, p. 96).

As imagens de bloqueio/obstrução do trabalho e do espaço, das vias de passagem, são usadas para figurar tanto a fragilidade dos que vendem sua força no mercado como as forças de acumulação do capital, as quais ordenam a produção do espaço urbano construindo eclusas que impedem “a graça da água em fuga” (“Sobre a arte do negócio”, p. 95), faturando com o tráfego nas marginais (“Reflexões no trânsito”, p. 97) e mantendo lotes urbanos ociosos com fins especulativos, conforme se vê em “Observações à mesa de trabalho” (p. 99). Esse último poema compara a mesa arrumada “entre um trabalho e outro” ao mato queimado no terreno vizinho, guardado pelo proprietário “para alguma operação imobiliária”. A comparação é curiosa, pois justapõe o uso produtivo da mesa ao uso improdutivo do solo, em prol do aumento da renda fundiária. Aqui como em outros momentos do livro, o bloqueio se liga à repetição (“por quanto tempo permanecerá assim/ o mato crescendo e sendo queimado/ crescendo e sendo queimado”), a um movimento que se repete por incapaz de se completar, de passar a outro estágio, de converter o trânsito em viagem, o que configura uma espécie de mobilidade imóvel. Não por acaso, esse bloqueio ditado pelos imperativos da acumulação, no livro, vem espelhado, com outro poema sobre a prodigalidade dissipadora do artista que joga no papel tudo o que tem (“um tampo de mesa sem limites/ e os ruídos (inaudíveis)/ da cidade”, p. 98) alegrando-se com sua “reserva de pobreza”.

O motivo do bloqueio por repetição, verdadeira pena de Sísifo, reaparece ainda uma vez na segunda parte do poema “Na véspera da mudança” (p. 104), que fala de um sonho com uma casa “construída pela metade” (“a outra metade/ eu construía/ e pegava fogo/ construía/ e pegava fogo”).

Sem embargo, a fim de melhor compreender a intrincada teia de relações entre cidade, trabalho e mobilidade estabelecida por Alberto Martins, cumpre analisar mais detidamente um poema para o qual parecem convergir várias linhas de força do livro.


POVO ERRANTE

na esquina do farol
o menino me empurra
duas balas por um real.
Dou a nota
mas digo para guardar as balas.
Ele insiste
– pega a bala, doutor –
quer completar a transação.
O sinal continua fechado.
Pergunto seu nome.
Moisés.
Aquele mesmo
diante de quem um dia
se abriu o mar vermelho.(p. 101)

O poema retoma uma cena familiar no cotidiano das cidades: um flash do trabalho desses ambulantes, adultos ou crianças, que se aproveitam da parada imposta pelo semáforo para vender, ou melhor, empurrar, balas, garrafas d’água, flores e outras mercadorias de baixo valor aos motoristas que aguardam impacientemente o sinal verde. Não há menção explícita ao carro, depreendido, no entanto, a partir do contexto.

A situação de encontro promovido pelo “impasse cinético” do sinal fechado é sobreposta à transação comercial, que não se completa diante da recusa do motorista em levar as balas. A circulação do dinheiro sem a contraparte da mercadoria descaracteriza a venda, degrada a operação em esmola e fixa o menino na posição de pedinte, o que já estava de certo modo anunciado na escolha do verbo “empurrar” para definir a ação da criança, indicando coação do motorista “doutor”, obrigado a comprar coisas que não deseja ou de que não necessita. A assimetria de classe sinalizada pela diferença nos meios de transporte (menino pedestre × adulto motorizado) é reforçada pela transação defeituosa, incompleta.

A ambiguidade entre venda e esmola, comércio e caridade é um traço importante da vida metropolitana que recentemente vem ocupando a atenção de sociólogos e urbanistas. Ela se liga ao que Telles e Hirata chamam de “mobilidades urbanas laterais”, isto é, ao “trânsito” de trabalhadores perdidos entre “o trabalho precário, o emprego temporário e os expedientes de sobrevivência e as atividades ilegais, clandestinas ou delituosas”.[13] Essas mobilidades laterais e ambíguas parecem produzir um complexo de efeitos morais e psicológicos que vale a pena investigar. Em “Povo errante”, por exemplo, destaca-se a atitude do vendedor ambulante cujo comportamento extrapola a motivação econômica, segundo a qual receber o dinheiro e conservar a mercadoria seria mais vantajoso. Mas a transação bloqueada tem alto custo psicológico, custo talvez correspondente ao ganho de quem dá a esmola, aplacando a possível culpa de classe e “pagando” imaginariamente a dívida social.

Poema recente de Francisco Alvim descreve cena muito semelhante no que se refere a esse ganho implícito:


ACONTECIMENTO

para Roberto

Quando estou distraído no semáforo
e me pedem esmola
me acontece agradecer[14]

A distração aqui é na verdade atenção redobrada, que, intuindo lucro na doação, desloca a gratidão do pedinte para o benfeitor, talvez também servindo como compensação para o pudor de quem faz caridade em vez de justiça.

Ainda com relação à ambiguidade entre comércio e esmola, lembro-me de um poema de Tarso de Melo da coletânea Lugar algum.[15] Nele (o último da seção intitulada “Por nada”) descreve-se a situação de um pedinte que consegue amealhar algumas moedas expondo a perna doente na via pública. A perna disputa a atenção com as vitrines despontando ela também como uma “mercadoria estranha/ que ninguém recolhe”. De certa maneira, esse poema representa a contraface da ambiguidade presente em “Povo errante”: se em Martins o trabalho se degrada em esmola, em Melo a esmola integra-se ao mundo do comércio, competindo com outras mercadorias e sendo observada por uma criança “logo engolida pelas sacolas/ com que divide a mão/ de sua mãe.

No entanto, em “Povo errante”, o bloqueio cinético e comercial ainda se desdobra temporalmente na evocação de um episódio bíblico do Êxodo. O nome do menino vendedor de balas coincide com o do profeta judeu que guiou seu povo escravizado para fora do cativeiro egípcio – e o vermelho do sinal fechado se liga metonimicamente ao nome do mar cujas águas tiveram de se abrir.

A sobreposição de tempos históricos é um recurso presente em outros poemas do livro – por exemplo, “São Paulo: 19:45” (p. 103), no qual também um nome, Pompeia, conecta o bairro paulistano à cidade romana destruída pela erupção do Vesúvio. Em “Povo errante”, porém, a sincronia parece mais fortemente motivada, determinada por vários elementos: o nome, a cor, a condição erradia e escravizada de um povo e de uma classe. O menino que “quer completar a transação” também se encontra sob o cativeiro da caridade e do trabalho ilegal, e precisa empreender a travessia (quem sabe rumo a que deserto, talvez sem a ilusão de nenhuma Terra Prometida – à qual, aliás, o xará bíblico tampouco chega).

O desfecho do poema não resolve o impasse: ele não diz se o motorista aceitou as balas, se a transação se completou antes de o sinal abrir, conservando-se, portanto, nesse limiar carregado de tensões.

Algo na composição faz também lembrar a célebre canção “Sinal fechado”, composta por Paulinho da Viola em 1969, regravada por Chico Buarque, em LP homônimo, de 1974. Escrita em um dos piores momentos da ditadura militar, logo após a promulgação do AI-5, a canção flagra o desencontro entre dois amigos que o sinal fechado aproxima sem reunir. No diálogo todo vazado em frases-clichê, avulta a urgência de dizer algo que “foge a lembrança” e desaparece “na poeira das ruas”, sob o látego da pressa, “alma dos negócios”. Testemunho de outros fechamentos ligados à circunstância histórica em que foi composta, tal música marca um momento de aceleração urbana, ditada pelo açodamento desenvolvimentista, que separa os amigos e detém o diálogo no nível fático, poeticamente trabalhado. O sonho de um “lugar no futuro”, mais plausível à época, alimenta o bloqueio na canção, que não explora assimetrias de classe, reproduzindo as falas de interlocutores de igual condição, ambos motorizados. “Povo errante”, em contrapartida, explora essa assimetria como um componente do bloqueio, filtra a narração da perspectiva do interlocutor motorizado, que refere a expectativa de superação não a um “lugar no futuro”, mas no passado, um passado mítico, bíblico, talvez irrecuperável.

A imagem do inconcluso/bloqueado em diferentes situações de classe também aparece noutro poema, extraído da primeira seção do livro:


WORK IN PROGRESS

em cima da mesa
muitas coisas permanecem
inconclusas

uma xícara de café
e aquele homem em pé
à beira do viaduto (p. 39)

Como em “Observações à mesa de trabalho”, em que o espaço da mesa é equiparado a um lote de terra, a mesa aqui funciona como um diagrama da cidade (como a imago mundi em talismãs antigos): o que nela jaz inconcluso remete a outros bloqueios, como o do homem estacado à beira do viaduto. Louco, mendigo ou desempregado, sua mobilidade é economicamente regulada e afeta a mobilidade dos demais concidadãos. O in progress aqui não deixa de ter ressonância irônica, indicando menos a aproximação a alguma espécie de término ou resolução formal que o travamento da obra e a injustiça, a falta de oportunidades que fixam o homem à beira do caminho.

Assim, vemos como o nexo entre trabalho, memória e mobilidade constela todo o livro e define tanto as várias possibilidades de circulação como os bloqueios e aporias da vida urbana. A perspectiva de observação presente em vários poemas, mesmo quando se percorre o espaço urbano “do ângulo de baixo”, expressão cunhada por Martins para descrever os percursos do gravador flâneur Evandro Carlos Jardim, atesta o lugar ambíguo do artista/intelectual, que se identifica e solidariza com os socialmente pequenos, como o homem à beira do viaduto e o lavrador de mãos escalavradas (como as do editor), sem perder de vista a própria condição de “doutor” (“pega a bala, doutor”) e a proximidade com os donos da cidade (conforme observamos em “Observações à mesa de trabalho”). É de se perguntar se tal ambiguidade não abranda o gume crítico da indignação patente em certas passagens e liricamente associada a um vago desejo de mudança – “preciso urgentemente/ de outra geografia” (p. 106); “ainda não fiz cinquenta anos/ dá tempo de mudar alguma coisa” (p. 109), lê-se ao final dos dois últimos poemas do livro –, desejo que talvez subestime o peso dos bloqueios internos na dificultação das travessias.

De todo modo, trata-se de um livro notável na figuração dos impasses inerentes à lógica circulatória que hoje se impõe nos grandes centros urbanos, principalmente pela exploração dos nexos entre fluidez espacial e liberdade criadora na confluência entre memória, trabalho, em um horizonte em que ainda se aspira à potência pública da arte e dos transportes.    


[1] DI FELICE, M. Paisagens pós-urbanas. O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume, 2009. [Voltar ao texto]

[2] MARICATO, E. “O automóvel e a cidade”. Em: O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 172. [Voltar ao texto]

[3] MAULPOIX, J.-M. “Dans la rue de la ville: réflexions sur le sort moderne de la poésie urbain.” Em: Le poète perplexe. Paris: José Corti, 2002. p. 81. [Voltar ao texto]

[4] LÉCUYER, A.; ROUSSEAU, M. e PATÉ, G. “Entretien croisé entre Max Rousseau et Giles Paté”. Tête-a-tête. Revue d’art et d’esthétique, n.1 (Résister). Lormont: Le Bord de l’eau. Printemps 2011. p. 6. [Voltar ao texto]

[5] Sigla para “Sans Domicile Fixe”, sem residência fixa, sem-teto. [Voltar ao texto]

[6] Idem, p. 7. [Voltar ao texto]

[7] WISNIK, G. “Em trânsito”. Em: MARTINS, Alberto (coord. editorial) Em trânsito: gravuras e esculturas de Alberto Martins (Catálogo de exposição). São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2007. p. 14. [Voltar ao texto]

[8] MARTINS, A. “Conversa de porto”. Rodapé: crítica de literatura brasileira contemporânea, n. 3. São Paulo: Nankin, nov. de 2004. p. 211. [Voltar ao texto]

[9] Cf. WEINTRAUB, F. “Porto & deriva”. Sebastião, v. 2. São Paulo: Sebastião Grifo, 01 set. 2002. [Voltar ao texto]

[10] WISNIK, G. “Em trânsito”. p. 23. [Voltar ao texto]

[11] MARTINS, A. “Literatura e transporte público – entrevista concedida a Eduardo Sterzi, Fabio Weintraub, Manuel da Costa Pinto e Reynaldo Damazio”. K Jornal de crítica, n. 12, jun. 2007. p. 5. A articulação entre intimidade e destino coletivo vem sendo construída desde há muito na consciência do artista, encontrando equivalências também na sua maneira de encarar a obra de outros gravadores. Por exemplo, comentando o trabalho de Evandro Carlos Jardim, de quem foi aluno, Martins o descreve como gravador flâneur, que “conjuga, em seu perambular, espaço interior (do sujeito lírico) e destino coletivo (espaço da cidade)”, que “não se coloca no ponto de vista do planejador urbano – que deseja e planeja a intervenção e com quem o artista moderno se identificou –, mas sim no do transeunte que em seu percurso diário transporta a cidade de um lado para o outro e a experimenta na própria pele”. Esse ponto de vista que percorre o espaço urbano “do ângulo de baixo”, ainda segundo Martins, encerraria grande potencial crítico num contexto “em que as intervenções urbanas, resguardadas raríssimas exceções, não escondem seu viés autoritário e costumam ser feitas de cima para baixo”. (MARTINS, A. “A cidade e o passante: figuras de Evandro Carlos Jardim”. Em: MUBARAC, C. (coord. editorial). O desenho estampado e a obra gráfica de Evandro Carlos Jardim. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2005. p. 52 e 54). [Voltar ao texto]

[12] A identificação se evidencia mesmo no caso de trabalhos mais prestigiosos, como o de editor, metaforicamente equiparado ao de lavrador (“Não trabalha no campo/ mas tem as mãos escalavradas:/ a pele dos dedos descama feito pergaminho”, versos de “O editor”, p. 45). [Voltar ao texto]

[13] TELLES, V.; HIRATA, D. “Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. Em: KOWARICK, L.; MARQUES, E. (Orgs.). São Paulo: novos percursos e atores. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 375. [Voltar ao texto]

[14] ALVIM, F. O metro nenhum. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 13. [Voltar ao texto]

[15] MELO, T de. Lugar algum (com uma Teoria da poesia). São Paulo: Alpharrabio Edições, 2007. p. 63. [Voltar ao texto]

Próximo texto:

Coisas de idioma e folclore (Raul Bopp)

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Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.