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The Communist Postscript

de Boris Groys

Tradução ao inglês de Thomas H. Ford

Londres: Verso, 2009


O Logos de Estado

por Alexandre Nodari

Um espectro ronda a universidade – o espectro das Maiúsculas. Do discurso sobre a arte (Cânone, Literatura) àquele sobre a metafísica (Absoluto, Universal), a busca pela forma-Estado do conceito (o “fundamento místico da autoridade” no campo do saber) parece obcecar acadêmicos à direita e – mais fortemente – à esquerda. Talvez seja no campo da filosofia política que esse verdadeiro retorno não só apareça mais explicitamente, sendo enunciado sem meias palavras ou floreios, como também revele o seu pano de fundo, seus avatares: comunismo, cristianismo e platonismo (não necessariamente nessa ordem). Os dois representantes mais conhecidos dessa nova esquerda autoritária são Badiou e Zizek, mas Boris Groys sem dúvida faz parte do “panteão”. Em The Communist Postscript (publicado originalmente em alemão em 2006), o filósofo alemão não só defende veementemente a experiência soviética em sua quase totalidade (chegando a afirmar que ela terminou por decisão deliberada: o verdadeiro triunfo do comunismo seria poder encerrar o próprio projeto), como também afirma o estatuto materialista dialético dos dogmas cristãos (p. 46 e ss: “Como o dogmatismo comunista, o dogmatismo cristão visa ser totalmente aberto e inclusive – ele só persegue heresias porque estas heresias desejam excluir as heresias que lhe são opostas”) e equipara o sujeito revolucionário ao sujeito filosófico (p. 24): “O poder soviético deve ser interpretado primariamente como uma tentativa de realizar o sonho de toda a filosofia desde sua fundação platônica, o do estabelecimento de um reino da filosofia” (p. 29); “A União Soviética se compreendia literalmente como um Estado governado exclusivamente pela filosofia” (p. 33), etc. – aliás, um dos sintomas da volta das maiúsculas talvez seja o exageramento patético que os intelectuais fazem da sua própria atividade. É claro que não falta a equiparação dos pensamentos de Deleuze e Derrida, bem como dos movimentos de minorias, à lógica do funcionamento do Capital. E se Groys não reivindica, como Badiou, o Universal (pelo contrário, o critica – p. 43), não deixa de eleger a sua “maiúscula”: a Totalidade. Esta obsessão pelo Todo ofusca uma série de contribuições interessantes do livro (e o ensaio de Groys sobre o Google publicado neste número do SOPRO comprova a força de seus insights): por exemplo, a crítica à miopia da crítica ocidentalizante à experiência soviética; ou a passagem sobre a arte em que afirma que “a novidade não emerge pela expansão, mas pela redução” (p. 111-112); ou ainda, sua leitura do princípio lógico-formal tertium non datur, segundo a qual o tertium excluído da linguagem coerente se torna dinheiro, o “núcleo obscuro” que a converte em mercadoria (p. 13); ou, por fim, a reabilitação da “paranóia objetiva”como afeto político (p. 26). Mesmo assim, a única forma de ler o livro de forma sadia é tomando-o como uma grande ironia, uma espécie de peça pregada sobre o retorno do Comunismo, assim com maiúscula, bem como das demais maiúsculas – ainda que nada indique tal ironia. Parafraseando o próprio Groys: talvez se trate de uma ironia objetiva, o que, aliás, iluminaria o restante da obra do filósofo, calcada sobre a busca humana por imortalidade – é como ele lê, por exemplo, a recorrência de vampiros e zumbis na cultura –, numa época em que está mais do que claro que até as baratas são mais “imortais” do que os humanos, pois sobreviverão a estes; e com a Barata, os acadêmicos parecem não querer se confrontar, algo que Clarice Lispector realizou de forma magistral e apaixonada, erigindo um pensamento até hoje insuperado e pouco compreendido.

A tese central do livro, embasada numa definição do logos como contradição (e paradoxo – p.7) e, por isso, capaz de abarcar o Todo (e nem é preciso sublinhar a visão falocêntrica desse desejo de totalidade que paradoxalmente exclui o feminino, o nãotodo segundo Lacan), é a oposição entre linguagem e dinheiro, palavras e números, lingüística e economia, discurso filosófico e discurso sofístico, em suma, comunismo e capitalismo. Enquanto “o todo do capitalismo aparece no medium do dinheiro”, o todo do comunsimo aparece no “medium da linguagem”: “A revolução comunista é a transcrição da sociedade do medium do dinheiro para o medium da linguagem. Trata-se de uma virada lingüística ao nível da práxis social” (p. XVI). E, para Groys, essa linguistic turn que caracterizaria o comunismo, e que em nada se assemelha ao consenso habermasiano, só poderia ser realizada pelo Estado: “A questão sobre a possibilidade do comunismo está, portanto, profundamente conectada à questão da possibilidade do governo, da organização e da administração política serem realizados na linguagem e pela linguagem” (p. XXI). Aqui, não se trata apenas de uma opção pelo socialismo estatal em sua antiga querela com o anarquismo: o que parece caracterizar a atual esquerda autoritária é a ausência de qualquer horizonte da abolição do Estado; ou melhor, ela se define pela equação Comunismo = Estado - Mercado. De fato, segundo Groys, a realização desse poder da linguagem sobre o todo teria se dado com o Estado soviético, “uma forma do reino da filosofia” (p. 69): como nem o mercado (p. XX) nem os interesses privados (p. XVIII) existiam na União Soviética (o autor sublinha que não se tratava de uma supressão, mas de uma inexistência), esta podia se guiar “exclusivamente por sua razão política independente” (p. XIX). Ou seja, o governo do Todo pela linguagem (única capaz de abarcar a totalidade da vida, para o autor) acarretaria uma autonomização da esfera política, liberta tanto do mercado quanto dos assuntos privados. Trata-se de uma formulação semelhante àquela mais recente de Vladimir Safatle, para o qual deve haver uma “indiferença às diferenças” particulares para que as diferenças verdadeiramente políticas possam aparecer. Ambas as postulações (a de Groys e a de Safatle) parecem tenebrosamente coincidir com aquelas do teórico-mor da autonomia do político e do Estado Total, a saber, Carl Schmitt. A decisão sobre a guerra, isto é, a determinação de quem é o inimigo, cerne da política segundo o jurista alemão, só seria autonomamente política após um “processo da constante neutralização da vida cultural”, quando os diversos “núcleos da vida espiritual” fossem neutralizados, ou seja, quando a metafísica, a economia, a teologia, etc. não mais influíssem na esfera do político. Deste modo, não é um acaso que a seguinte passagem de The Communist Postscript pareça pertencer a O conceito do político: “Ser total significa não ter inimigos – fora aqueles que conscientemente e deliberadamente se escolheu” (p.31). O resultado só pode ser o mesmíssimo decisionismo estatalista professado por Schmitt: a União Soviética “não renuncia seu poder soberano de determinar quem são seus inimigos. O comunismo não reconhece nenhuma relação amigo-inimigo que o preceda e determine. (...) A liderança comunista, de acordo com isso, sempre se reservou o direito de determinar quem deveria ser declarado pertencente ao proletariado e quem à burguesia, e quando e porque pertenciam” (p. 30-31). Desse modo, o problema do fascismo, de acordo com Groys, residiria em ser, apesar de totalitário, pouco total, isto é, em deixar que a relação amigo-inimigo seja determinada extra-politicamente (dito de outro modo: o erro de Schmitt seria o de não ser schmittiano o suficiente).

Todavia, seria o Estado capaz, de fato, de eliminar o mercado, ou domar a economia? A meu ver, a separação entre Estado e mercado não só não aconteceu historicamente na experiência soviética, como também constitui uma impossibilidade estrutural. Por um lado, o mercado não existe sem o Estado, e mesmo o dinheiro que Groys opõe ao logos não existe sem o aparato estatal: o Estado precisa cunhar e garantir a moeda, em um processo que é, ao mesmo tempo, econômico e lingüístico, que se dá ali onde o mercado e a política se encontram – a ponto de Marc Shell sugerir que toda teoria da linguagem é uma teoria do dinheiro, e vice-versa, e também que a filosofia e a cunhagem de moedas nasceram conjuntamente: é o Estado que possibilita a conversão de palavras em números e de números em palavras. Mas, além disso, talvez fosse possível afirmar também o contrário: que o Estado não existe sem a economia. Dito de outro modo, todo Estado é censitário, todo Estado tem um princípio de seleção, ao mesmo tempo lingüístico (censura) e econômico (censo) que determina quem faz parte do seu Todo, que conta, quantifica e enumera seus integrantes; ou ainda, toda política dentro dos marcos estatais é uma economia. O poder censório é aquilo que permite quantificar a linguagem e estatizar a economia: é uma ordenação econômica da esfera pública, bem como uma ordenação estatal da esfera privada (e a decisão sobre quem é proletário e quem é burguês, ou seja, sobre quem faz parte do Todo, constitui uma ordenação desse tipo). Não por acaso, no relato mítico da história romana, confere-se uma importância decisiva ao primeiro censo atribuído ao lendário Sérvio Túlio (“instituidor de toda a organização política”, segundo Plutarco), que teria promovido, pela contagem dos cidadãos e seus bens, pela classificação de patrimônios e títulos, pela disposição taxonômica da cidade em ordens (militares e civis), uma otimização gerencial dos ofícios de paz e de guerra, que seriam cumpridos, a partir de então, de modo censitário, isto é, proporcionalmente à hierarquia. O poder censório, tido como essencial à organização política de Roma (a fonte de nosso Estado patriarcal), era o que possibilitava uma retroalimentação entre público e privado, política e mercado, segundo o princípio enunciado por Mommsen de que “o bem público se beneficia da boa administração da casa” (o censor romano podia moderar, diminuir ou aumentar o valor da propriedade taxável, tendo em vista não só questões econômicas, mas também aspectos morais, por exemplo: como a fortuna havia sido adquirida, como era gerida, etc.).

Não parece ser fortuito, portanto, que a União Soviética tenha se amparado num aparato censor tão gigantesco. Se Groys, por um lado, insiste tanto na idéia de que a palavra, convertida em mercadoria, é muda no capitalismo, por outro, fica quase mudo quanto ao silêncio imposto pelo regime comunista soviético. Se a cifra para entender o funcionamento mágico da economia é o significante vazio que chamamos de dinheiro (que, usando o argumento de Groys, é o terceiro excluído que governa ocultamente), talvez a chave para decifrar a linguagem não resida tanto no Todo contraditório, mas no silêncio, caracterizado num conto de Saramago como o “sinônimo geral ou omnivalente”: o silêncio (negativo ou positivo: é possível silenciar obrigando a dizer a fórmula correta) imposto pelo regime soviético diz muito mais a respeito do suposto Todo que os discursos dialéticos de Stalin que Groys analisa. E que tal aparato censor tenha sido eufemizada na forma de órgãos de planejamento cultural ou de imprensa é uma prova ulterior do entrelaçamento entre o econômico-numerário e o político-lingüístico.

E, se estamos corretos, também o outro lado do poder censório, a conversão da política em economia, do público em privado, foi decisivo na experiência do comunismo soviético. Numa entrevista em que apresenta “quatro erros de Marx”, Oswald de Andrade afirma que, assim como “Freud é apenas o outro lado do catolicismo”, “Marx é o outro lado do capitalismo. Como os comunistas são os novos burgueses da época transitória”. A boutade vem a calhar para questionar a suposta autonomia do político que Groys atribui à União Soviética: o “interesse público” que rege essa esfera não tem um conteúdo positivo; pelo contrário, ele é simplesmente o negativo da esfera privada, que, assim, não é propriamente inexistente, mas tanto mais existente quanto mais ausente. De fato, as teorias que tentaram definir o Estado e a esfera pública a partir de algo como o interesse público nunca conseguiram sair desse curto circuito. Assim, por exemplo, Montesquieu coloca como fundamento da República um “sentimento” (“A virtude numa república é algo muito simples; é o amor pela república; é um sentimento e não uma série de conhecimentos”), ou seja, algo da ordem privada, que, todavia, consiste justamente na renúncia ao interesse privado: “Esse amor, exigindo sempre a supremacia do interesse público sobre o interesse particular, produz todas as virtudes individuais; elas não são mais do que esta supremacia”. É patente aqui a circularidade da virtude, um verdadeiro círculo virtuoso: a virtude, essa “renúncia a si próprio”, produz a virtude, o “amor pela república”. O interesse público, sem conteúdo positivo, não passa de um significante vazio, cujo significado é determinado por um soberano, isto é, por uma classe política. Mas, o mais importante (já que Groys admite e apregoa um tal decisionismo) é ressaltar que a própria noção de “interesse” está viciada, na modernidade, pela economia. No artigo “The Juridical Subject of ‘Interest’”, Dean Mathiowetz insistiu sobre a relevância que as práticas jurídicas do começo da era moderna tiveram em transformar o conceito jurídico de interesse e também sobre a importância decisiva que tal modificação teve para a história do capitalismo. No direito romano e medieval, o “interesse” dizia respeito apenas a direitos reais, e era determinado sempre a posteriori, visando reestabelecer uma situação passada. O que ocorre na primeira modernidade é que o interesse se torna o cavalo de Tróia jurídico pelo qual a usura é legalizada: passa-se a considerar que os bens fungíveis, em especial, o dinheiro (a fungibilidade pura) também são passíveis de interesse, e, além disso, que o valor de tal interesse pode ser determinado a priori, por tabelas de mercado. Ou seja, na era pré-moderna, o interesse era o instituto jurídico que permitia ao dono de um imóvel, por exemplo, ser indenizado no caso deste ser danificado por aquele que o tomou emprestado, por meio de uma avaliação individual: o interesse permitia a substituição excepcional de uma coisa por outra (imóvel por dinheiro ou outro bem: uma indenização). Por outro lado, com o surgimento dos mercados globais modernos, os tribunais passaram a reconhecer que o empréstimo de dinheiro também gera um interesse (no caso, mais dinheiro, mais do mesmo), o qual, ademais, pode ser calculado previamente – e daí que, em algumas línguas modernas, “interesse” e “juros” sejam sinônimos. O que ocorre é uma quantificação do futuro, e a formação da noção corrente de interesse como o “indicador de uma racionalidade livremente exercida por atores cujas identidades formam uma cortina de fundo para as instituições políticas e o poder”. Assim, a raiz metafísico-econômica do interesse privado, mesmo que este permaneça ausente, continua a determinar a definição do interesse público (a economia continua a determinar a política), entendido como o planejamento racional e soberano do futuro – não é preciso recordar a pretensão soviética de planejar e quantificar o futuro. Por isso, não espanta que Groys afirme que a intenção tanto de Stalin quanto do Partido Comunista Soviético durante a abertura tenha sido “a de ser mais rápido que a história, mais rápido que o tempo” (116), e que “o capitalismo representa o melhor mecanismo para a aceleração econômica” (p. 118). Como argumentou Susan Buck-Morss em Dreamworld and Catastrophe, a guerra fria se caracterizou pela disputa entre, por um lado, a dominação do espaço pelas potências capitalistas, e, por outra, a dominação do tempo pelas experiências comunistas. Sabemos e sentimos hoje os efeitos dessa pretensão de dominar tanto o espaço quanto o tempo, de acelerar a história e controlar a matéria, de quantificar a natureza e calcular o futuro: o planejado reino idílico veio na forma da catástrofe, a suposta domesticação da natureza não a humanizou, mas, pelo contrário, tornou-a mais estranha aos humanos. Portanto, talvez esteja na hora de pensarmos e praticarmos aquilo que Eduardo Viveiros de Castro definiu como a “causa ecológica”: “a luta pela libertação do espaço-tempo: não queremos nos livrar do espaço e do tempo, mas liberar a sua virtualidade”, isto é, deixar o futuro cumprir a sua tarefa, que é, segundo Whitehead, a de ser perigoso. Isso implica, por outro lado, repensar a noção de interesse, desestatizá-lo e deseconomicizá-lo no mesmo gesto, seguindo a máxima oswaldiana de que “Só me interessa o que não é meu” (retomada magistralmente por Décio Pignatari no poema Interessere). Um tal interesse, o entre-ser ou ser-entre, só pode surgir ali quando a identificação falha, quando o estranhamento emerge: portanto, quando o equivalente geral perde todo valor e sentido e lidamos com o imprevisto.

Uma das características da esquerda autoritária é o repúdio, consciente na maioria das vezes, da experiência de 1968. Desse modo, ela é partidária do backlash conservador que se seguiu e que consistiu em separar a alegria da paranóia. A paranóia objetiva pode muito bem ser o fundamento da revolução, conforme afirma Groys, mas ela também é o fundamento do Estado e do seu interesse público gerador de silêncio e da quantificação da felicidade – o contrário da alegria, que só se dá no contato, no encontro, na diferença. Sem a alegria, a paranóia dá origem à razão de Estado. Com ela, ao contrário, aprendemos a desconfiar da forma-Estado em todas suas manifestações, inclusive as maiúsculas. A paranóia objetiva sem a alegria inter-subjetiva é apenas mais um avatar político-econômico da sociedade de classes.

Texto anterior:

Google: palavras para além da gramática
(Boris Groys)


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.