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Homo oeconomicus
Marsilio Ficino, la teologia y los mistérios paganos

de Fabián J. Ludueña Romandini

Buenos Aires,
Mino y D’Avila editores, 2006


De como apaziguar demônios:
renascimento, potência e ascese
por Leonardo D’Avila de Oliveira

Indagado pela máxima de Warburg, segundo a qual as divindades pagãs nunca cessaram de estar presentes enquanto demônios cósmicos na cultura européia, de modo que de tempos em tempos essas forças ressurgem, o jovem filósofo argentino Fabián Ludueña procura em seu livro Homo Oeconomicus, tese defendida em 2005 sob a orientação de Roger Chartier, publicado em Buenos Aires em 2006, esclarecer o lugar do florentino Marsilio Ficino[1] como um importantíssimo marco dentro da metafísica ocidental. Contudo, para além da mera curiosidade ou erudição, Ludueña demonstra que Ficino pode ter sua obra relida de forma a explorar a gênese de alguns conceitos que até hoje se fazem muito presentes na política e na filosofia, bem como ressaltar algumas nuances que dão ao pensamento renascentista algumas características bem singulares até então muito pouco destacadas.

Na obra são trazidas ao leitor uma série de fontes relativas às influências intelectuais de Ficino bem como dados sobre a atuação de seus contemporâneos em seu pensamento. Neste sentido, empenhado firmemente em não conceber Ficino apenas como o principal tradutor e difusor dos textos de Platão e da tradição neoplatônica para o contexto da renascença italiana, mas principalmente como um homem de seu tempo e influenciado por conceitos de sua época, como o tomismo, o joaquinismo ou alguns autores herméticos, como Jámblico ou Proclo, logo se revela no pensador argentino a forte determinação em não considerar seu tema de estudo de forma autonomista, senão justamente para ressaltar os gestos e as contradições nele encontradas, o que gera uma série conclusões inesperadas. Ludueña, dessa forma, explora certas passagens de Ficino sobre a astrologia, a magia ou o amor, para progressivamente fazer perceber a mútua implicação desses temas para a sustentação do paradigma de gestão (oikonomia) na vida divina e humana, de forma muito próxima ao que estuda Giorgio Agamben em Il Regno e la Gloria. Nisto, o animal político passa a ser o animal econômico, por exemplo, quando se conclui que a alma divina do homem pode imitar a ordem de Deus para governar o seu corpo biológico, tanto em nível individual quanto coletivo.

É notável da parte de Ludueña a coragem de fazer uma história da leitura que certamente descarta universalizações sobre os conceitos trabalhados, revelando as modificações conceituais em diferentes leituras e apontando singularidades, tal como preconiza o trabalho de Roger Chartier, e, por outro lado, o uso que, concomitantemente, faz da leitura da história de Agamben no que diz respeito ao paradigma da oikonomia, ligando a transcendência metafísica à gestão da vida em sua imanência. Ante essas duas influências, esta mais conceitual e aquela mais metodológica, Aby Warburg aparece no livro enquanto uma forte inspiração que serve de contrapeso a ambas as posições. Isto porque a sobrevivência (Nachleben) de elementos antigos na cultura renascentista permite a evidenciação de singularidades – e de fato são esclarecidas diversas influências, como a do joaquinismo ou a dos franciscanos espiritualistas, pensamentos radicais e hereges que logo são instrumentalizados e amenizados por Ficino para propósitos políticos e até para a defesa da Igreja – mas essas singularidades também puderam ser lidas dentro de um mesmo momento de união da Divina Providência e Governo Divino perante um poder que atua na vida biológica por meio de dispositivos como a astrologia frente a teologia ou a ascese filosófica perante o desejo. Essas sobrevivências da antiguidade, tão ressaltadas em qualquer manual sobre o renascimento, servem assim justamente a pôr em risco algumas certezas: a autenticidade de um retorno à antiguidade no século XV, porque fica expressa a continuidade e adaptação de temas através do tempo, bem como algumas alegorizações que demonstram gestos que nada simpatizam com a cultura clássica, principalmente no campo da moral. Neste proceder, o autor aponta algumas das principais dicotomias teológicas e políticas do renascimento, dando-se ênfase, é claro, à oikonomia, mesmo nos assuntos menos esperados. Como exemplo disso, ele demonstra em praticamente todo um capítulo como o amor aos efebos, a princípio uma reminiscência da antiguidade, passa a ser moralizado quando se separa o malévolo “desejo de tocar”  do desejo de “contemplação”, para redirecionar o desejo rumo a uma ascese filosófica, certamente uma forma clara de cuidado de si.

Enfim, seja pela burocratização dos demônios de forma divinamente ordenada, pela submissão do corpo natural à alma humana com características divinas, pela prescrição da contenção do amor aos rapazes ou pela instrumentalização de autores apocalípticos heréticos, Marsilio Ficino transparece na obra de Ludueña como moralizador dos impulsos antigos. Alguém que se utiliza de reminiscências daquilo que não se insere na metafísica do Um para novamente adequar essas fagulhas erráticas dentro de uma ordem governamental, a qual tende a ser em última instância uma determinação sobre a vida natural (zoé). Mesmo a magia passa a ser revista nesses termos quando o autor esclarece sobre a cisão entre magia natural e astral a partir do posicionamento demoníaco – que sempre divide – frente à ordem divina. Enquanto a magia natural era permitida ao Cristão, tendo em vista que ela serviria a governar, relegando separado o celeste do terreno e assim não influenciando no lugar burocrático de anjos e demônios na gestão do mundo, a magia astral consistiria em adorar o mundo através do culto a demônios ou a estátuas animadas, de forma a juntar céu e terra e assim romper as hierarquias espirituais (Deus-anjo-demônio, etc), sendo portanto algo atentatório à oikonomia que tomava força. Curiosamente, essa determinação sobre a ordem natural e a espiritual, em cujo espaço o homem passa a ter ontologia duvidosa, tendo em vista que sua alma tem caráter divino e em seu corpo predomina o animal, nota-se que o homem se assemelha a Deus podendo fazer milagres sobre a criação, imitando a potência divina na medida em que se contrapõe à manifestação da providência divina com o livre arbítrio.

Luduenã aproveita Warburg para demonstrar como conceitos vão se transformando gradativamente no tempo, muito mais próximo a Norbert Elias e seu conceito de figurational change do com as rupturas de um Foucault, como ele próprio afirma. Mas os seus estudos minuciosos ainda podem gerar questionamentos muito mais radicais sobre o tema, não sendo necessário para tanto alguma aderência a uma visão da história por rupturas ou subjetivismo. Note-se que quando Ficino comenta “O Banquete” de Platão para ressaltar uma soberania da alma tomada pelo “furor divino” sobre o biológico, o florentino faz o exato oposto do que Platão preconiza em seus textos, na medida em que este nega a autoria do poema ou o controle sobre o amor, porque o furor para Platão (potência divina) seria da ordem de um demônio impessoal que transcende o governo de si, regente tanto do rapsodo quanto do amante para um fora-de-si. Portanto o ateniense e o florentino não coincidem neste caso nem no significante e tampouco no significado. Este tipo de contraposição pode demonstrar que a tomada de uma forma clássica esvaziada de seu conteúdo certamente revela gestos próprios de uma determinada época, mas também pode inclusive abalar as categorias de Warburg, já que por vezes as sobrevivências não se demonstram nem simplesmente reminiscências de forma, como em Panofsky, e nem mesmo permanência de processos, como trabalham Didi-Huberman ou Nancy. Quem sabe algumas sobrevivências possam ser esvaziadas até mesmo ao pastiche, já que determinadas repetições renascentistas sobre temas clássicos eram tão exageradamente explícitas que custam a convencer sobre alguma reminiscência, inconsciência ou mesmo restos de fratura, como por vezes se dá com o apelo direto aos deuses antigos, de influência certa do obstinado Giorgio Gemisto Pletone – que inclusive queria instituir o paganismo como religião estatal no decadente império bizantino – sobre Ficino.

Seja qual for a posição que se tome frente o livro, tanto por aquilo que conclui quanto por aquilo que abre, é salutar o trabalho de Ludueña sobre a leitura de autores que fizeram parte do redirecionamento dos estudos sobre Platão dentro do Ocidente a partir do renascimento. Isto porque a tradução e a leitura de um texto clássico muito mais se enriquecem quando se descartam leituras universalizantes para que se possam manifestar outras singularidades dentro de alguma pluralidade, o que consiste em considerar não apenas um texto em si, mas os modos de recepção de textos na história, bem como os conceitos que nortearam cada leitura em cada época e em cada lugar. Neste sentido, Fabián Ludueña tem razão em empreender suas leituras minuciosas sobre as influências e as circunstâncias de tal obra dentro do dito renascimento florentino e, ao mesmo tempo, reconhecer em Ficino um autor chave para os conceitos políticos, filosóficos e teológicos contemporâneos: tudo isso sem confiná-lo em um museu.  



[1]
Pouco tratado nos estudos brasileiros, Marsilio Ficino (1433-1499) foi um dos principais protagonistas da cultura renascentista florentina, exerceu influência em autores como Pico della Mirandola ou Angelo Poliziano, e esteve presente ativamente na própria política da cidade, sendo muito próximo do próprio Lorenzo de Medici. O autor é um dos principais difusores do neoplatonismo no Ocidente, tendo sido o próprio a fazer as primeiras traduções diretas do texto grego ao latim de grande parte da obra platônica, além de ter escrito tratados sobre medicina, magia, teologia e astrologia.

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Começa a idade da revolta


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.