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La comunidad
de los espectros.
I. Antropotecnia

de Fabián J. Ludueña Romandini

Buenos Aires,
Mino y D’Avila editores, 2010


Resposta aos amigos do SOPRO

por Fabián Ludueña Romandini

1. No ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha, Oswald de Andrade escreveu que “nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental”. Esta caracterização do espírito ancestral do Brasil talvez seja uma das mais belas já feitas. Em todo o caso, é aquela que me mostra hoje a hospitalidade dos amigos do SOPRO e da qual quero dar testemunho agradecido nesta carta dirigida a todos eles e, em particular, a Alexandre Nodari, que teve a generosa disposição de resenhar meu livro La comunidad de los espectros I. Antropotecnia, um livro, na verdade, proveniente da Ultima Thule, onde quase nada acontece, nos confins da terra que os homens habitamos, e que serve a Nodari de pretexto para dar mostras do que pode significar ainda hoje, e sobretudo hoje, por em ato da inteligência crítica.

Portanto, se devo agradecer alguma coisa, não é somente a grande (e seguramente imerecida) acolhida oferecida pelos amigos do SOPRO, mas também que esta seja uma hospitalidade crítica, uma hospitalidade que interpela o recém-chegado sem que nunca exista outra comodidade possível que não seja a da discussão filosófica como condição da amizade (e não o contrário, como alguns costumam proclamar para anular toda verdadeira discussão).

A exaustiva e aguda resenha de Nodari não me permite retomar aqui todos os problemas nela colocados, já que seria impossível fazer-lhes justiça nesta resposta (o que, na verdade, é um excelente ponto de fuga para a continuação deste diálogo em outros textos e, talvez, também em outras geografias). No entanto, queria aproveitar a ocasião para deter-me em alguns pontos colocados pela resenha e que me parecem da maior importância. Ao mesmo tempo, aproveitarei esta oportunidade para buscar pensar, junto aos (ou graças a ajuda dos) editores de SOPRO, alguns temas que formam parte, conforme acredito, de nossas preocupações teóricas comuns. Em certo momento, Nodari critica a utilização que faço em meu livro de algumas utopias modernas assinalando que estas não apenas contêm elementos de programação e seleção do humano, mas que o impulso primordial (ou, ainda mais importante, a condição de possibilidade) que as guia (e que eu perderia de vista) está dado pelo “descobrimento” do Novo (velho) Mundo que revela ao homem europeu a possibilidade de novas formas de organização político-social. Daí que Nodari me convide a considerar, na genealogia da zoopolítica, no lugar das utopias, a “ciência (ou filosofia) política em sentido estrito”.

Em princípio, eu não teria nenhum inconveniente em aceitar essa proposta. Meu livro, em nenhum momento, pretende dar respostas fechadas ou definitivas a nenhum dos problemas nele colocados. Nenhuma nova fonte potencial está descartada a priori, nenhuma linha que possa complexificar a problematização está excluída. Ao contrário, busca ser um convite ao leitor para escrever uma história da qual apenas tracei os primeiros esboços. Provavelmente, essa história poderia se continuar, por exemplo, com Jean Bodin e sua preocupação pela Censure, ainda que ela não me pareça refletir um programa eugenésico tão claro como o de Campanella (ainda que constitua, sem sombra de dúvida, uma base fundamental na arqueologia do Estado de população).

No entanto, porque escolhi a Civitas Solis, a utopia de Campanella, como exemplo paradigmático da eugenia moderna? O caso do filósofo neoplatônico Marsílio Ficino e também, ainda que Nodari não o mencione, o do helenista racista Hans Günther (que formam uma espécie de tríptico especial acerca do qual trata o livro até o final da primeira parte), constituem exemplos dos avatares da eugenia platônica, e um dos propósitos do livro é precisamente mostrar a marca platônica de toda eugenia (ainda que, em outro nível, mais profundo, Platão seja apenas um herdeiro tardio do ius exponiendi como matriz primordial da política). Por outro lado, o objetivo de todo o livro é considerar, justamente, textos que não pertençam à ciência política em sentido estrito. Ou seja, a aposta consiste em mostrar como a politicidade dos textos do passado ocidental não depende em absoluto de sua classificação canônica, e sim de seu conteúdo enunciativo e de seus efeitos práticos. Assim, o livro advoga que se considere como textos fundamentais da ciência política tanto um tratado de aritmologia mística como o De Numero Fatali, de Ficino, quanto os evangelhos cristãos, e ainda os tratados medievais sobre a ressurreição dos mortos. Todo trabalho genealógico deve ser, primariamente, uma destruição do cânone do campo de saber considerado.

Entretanto, um contraditor poderia me dizer que Tomás Campanella é um autor que pertence, com pleno direito, ao cânone da ciência política. E, com efeito, teria razão. Campanella é, como queria Nodari, também um autor político em sentido estrito ainda que não tenha merecido a devida atenção por parte dos que estudam filosofia política. A obra “estritamente política” de Campanella é, de fato, muito ampla. A pergunta, então, que podemos deixar aqui aberta, é: a Civitas Solis pertence ao cânone político ou devemos excluí-la dele? A resposta, em todo caso, não é importante, ainda mais que nos obrigaria a deslizar rumo a uma espécie de filo-teo-logia da textualidade que, precisamente, eu queria evitar. Não obstante, permanece o problema fundamental: o descobrimento do Novo (Velho) mundo como inspirador de um pensamento hetero(u)tópico.

Com efeito, Campanella se ocupa, e amplamente, do Novo Mundo, que era o lugar perfeito para se pôr em obra seu projeto utópico. Na verdade, elabora muitos planos para esse Mundo (para nossos ancestrais, antecessores, e, por conseguinte, para nós): tanto em sua Monarchia di Spagna, de 1598, o “livro secreto” destinado ao rei da Espanha, quanto em seu Sermo di iuribus Regis catholici super novum Hemispherium, de 1607, desenvolve sua utopia – que não é outra coisa que um programa de messianismo administrativo em grande escala – para o Novo Mundo: despovoamento voluntário dos novos territórios com translado de seus habitantes originários ao Velho Mundo para convertê-los em trabalhadores, servos e artesãos, e repovoamento da América com soldados espanhóis para a constituição de uma força militar de conquista irrefreável. Se algum dos nativos da América se opõe, escreve Campanella: ‘delli ostinati farne schiavi’. Por suposto, o dominium de todos os bens dos habitantes do Novo continente devem transladar-se ao Rei da Espanha. Não obstante, a legitimidade última da constituição de uma nova ordem social estava dada, aos olhos de Campanella, pelas graves ofensas, cometidas pelos nativos, contra a auctoritas papal, a saber, a sodomia pública, a idolatria e a antropofagia. Com efeito, a antropofagia, longe de ser inspiradora de uma nova política, para Campanella justificava o extermínio dos primigênios habitantes da América.

Neste contexto, tenho sérias razões para duvidar da benevolência das utopias modernas, e, em especial, daquelas como a de Campanella. Nenhum projeto utópico como os que propõem Campanella está destinado simplesmente a permanecer como ideal inalcançável. Ao contrário, são sempre a expressão detournée de um programa de ação política. Por isso, a utopia de Campanella é um texto central na zoopolítica moderna dado que contribui, em sua medida, a assentar as bases de uma ratio gubernatoria que concebe a antropofagia como o radicalmente inassimilável do mundo americano que justifica, em última instância, o extermínio que, na realidade, teve lugar. Inserido nos regimes discursivos apropriados, um texto como a Civitas Solis pode se constituir como a cifra inesperada e macabra do destino do Ocidente europeu e da depredação do mundo inteiro. Chegados neste ponto, o “affaire Sardinha”, como diria José Paulo Paes, adquire toda sua importância inaugural. Por isso é que sempre se há de desconfiar do cânone tradicional da ciência política e explorar as vias inesperadas por onde a politicidade adquire, também, seus rostos mais sombrios. Assim lhe pergunto, estimado amigo Nodari, como deveríamos considerar, por exemplo, o tratamento dos demônios que Jean Bodin leva adiante em seu Colloquium Heptaplomeres? Pertence esse texto à tratadística política? Do meu ponto de vista, está no centro mesmo desta ciência.

2. Abordemos agora o problema metodológico que Nodari me coloca a respeito de como devemos entender o problema do mito, da teologia e da secularização (em outros termos, a continuidade entre o messianismo cristão e o (pós-) humanismo moderno). A vastidão da questão faz com que seja inabordável neste espaço, o que não impede, por outro lado, que se possam dar alguns aclaramentos a respeito.

Jean Starobinski ainda podia perguntar-se, com enormes cautelas, no último terço do século XX, se era possível levar a cabo “uma leitura puramente literária do texto evangélico” sem ter em conta que, já no século XIX, o gênio de Bruno Bauer havia demonstrado precisamente essa possibilidade especialmente com o Evangelho de Marcos, o mesmo que Starobinski queria analisar. Essa sintomática dificuldade para compreender a natureza textual do Novo Testamento persiste até hoje em dia com uma força quase idêntica. Claramente, os textos bíblicos são um gênero particular de literatura: pertencem à mitologia. Por isso mesmo, Emanuele Coccia pôde se perguntar, com aguda intuição, por que motivo, apesar dos progressos da ciência do mito, “o texto bíblico tenha sido só raramente interrogado com a desapegada e refinada serenidade com a qual se lêem os mitos gregos, os egípcios, ou, mais recentemente, as lendas centro-americanas”. Nesta perspectiva, a noção de “desmitologização” (Entmithologisierung) do kerygma cristão, defendida por Rudolf Bultmann, carece de sentido: sem mitologia, não é possível a existência mesma do cristianismo.

Se podemos dizer que a vida, a morte e a ressurreição de Jesus-messias, por exemplo, é um mito em sentido próprio, também é verdade que se trata de uma forma mitológica particular a partir do momento em que se entrelaça de maneira inextricável com o direito. Ou seja, o cristianismo constitui, entre outras coisas, uma mistificação da lei, ou melhor, uma espécie de direito mítico que, contra todas as aparências positivas, rege, sem benefício de inventário, boa parte do que entendemos por normatividade jurídica em nosso mundo contemporâneo. Nenhuma civilização pôde, até o presente, viver sem o mito, e em nosso caso vivemos sob o império de um mito-nomo-logia cujos contornos tratei de começar a delinear no livro. Esta perspectiva não me parece oferecer “um conceito muito pobre e prejudicial de ‘mito’”. A riqueza imensa de um mundo mítico não deve se confundir com sua desejabilidade ético-política: um bom exemplo disto é o mito-motor cristão que governa ainda nossas vidas sociais em quase todos os seus aspectos. Não se trata aqui somente da “violência mítica (mythische Gewalt)” instauradora do direito de que falava Benjamin, e sim de algo ainda muito mais obscuro e de difícil apreensão como é a “espectralização do direito”, o advento de um direito necro-poiético que faz de certos mitos fundacionais a via régia do acesso do mundo das potências espectrais à dimensão da articulação política das comunidades humanas.

Esta posição não implica, contudo, que as mitologias de outras culturas – como pode ser o caso das “metafísicas canibais” – não possam constituir uma espécie de contra-modelo à zoopolítica espectral do Ocidente (como mostra Nodari com toda acuidade). Porém, mutatis mutandis, tampouco significa que toda mitologia ofereça um modelo político louvável per se. No caso do mundo ocidental, a inusitada fusão do jus com o mythos produziu um dispositivo político sem precedentes que conduz, em sua própria substância, ao processo de secularização que estamos vivendo. Ou seja, a secularização não é apenas um avatar histórico contingente da história da religião ocidental cristã, e sim um componente inerente e necessário que forma parte da essência mesma de uma teologia política centrada sobre a Encarnação, isto é, na interpenetração entre o mundo espectral e o mundo humano sob a forma de um nomos vivo-e-morto representado por Jesus-messias.

Deste ponto de vista, todo humanismo é morfologicamente um descendente direto do cristianismo dado que, com Jesus-messias, aparece pela primeira vez o Homem como centro direto do que chamei antropotecnologias pós-antigas. A analogia não é só formal, mas também material posto que são os próprios trans-humanistas, por exemplo, que confessam abertamente o caráter apocalíptico-messiânico de seu propósito e se declaram os herdeiros modernos – na era da técnica – do profetismo antigo. Isto não é apenas uma declaração de princípios, mas constitui a continuidade e transformação de um alicerce milenário que, desde as origens do cristianismo, vem sedimentando as bases político-sociais de nosso mundo, de nossas condutas, de nossas aspirações e até mesmo de nossas revoluções.

O caso da imagem é similar. Não creio que exista um salto argumentativo entre a análise da querela iconoclasta e o postulado da mesma como ponto de ancoragem para a compreensão do domínio atual das imagens técnicas. De fato, novamente é necessário esclarecer que não se trata de dar explicações monocausais ou englobantes sobre o funcionamento técnico das imagens em uma cena planetária tecnificada. O objetivo do livro é, ao mesmo tempo, mais modesto, porém também de outro nível, a saber, trata de indagar genealogicamente o primado da imagem como elemento político. Nessa dimensão, o propósito consiste em mostra a raiz teológica que habita em toda imagem, a teurgia que assiste como elemento fundamental a toda imagem medial da chamada “sociedade do espetáculo”. Não me proponho realizar uma ontologia da imagem, e sim tentar mostrar, ao contrário, como certo tipo de imagens – próprias da liturgia política – puderam ser capturadas – “separadas”, teria dito Debord – graças a um dispositivo em cujo centro subjazem as potências do direito mítico cristão.

Se bem que este seja um tema que merecerá desenvolvimentos ulteriores em investigações futuras, o horizonte sobre o qual se move esta pesquisa é a determinação do caráter autopoiético com o qual se apresenta toda imagem técnica para um homem do mundo contemporâneo. Segundo creio, toda imagem-fetiche tem seu ponto de partida teológica na imagem do Cristo aquiropita que, em essência, é o paradigma mais ambicioso que, com suas devidas modelagens e transformações, hoje, mais do que nunca, governa o destino teológico das imagens na era da técnica. Que outro destino seja possível para a imagem e que a mesma não se reduz, de maneira alguma a sua filiação teológica, é o que busco sugerir com o chamado à recuperação da “transparência” da imagem, algo que a obra de Emanuele Coccia sobre o ser intencional da imagem [A vida sensísvel] me parece mostrar de uma maneira especialmente sofisticada.

Mas, então, isto nos leva ao que Nodari chamou de “o maior problema do livro”: seu pessimismo e o papel da filosofia no mundo contemporâneo. Com efeito, sou metafisicamente um pessimista em relação ao destino do animal humano e do cosmos que ele habita. Isto deriva da firme convicção de que essa espécie de animal logocêntrico que conheceu seu advento no terceiro planeta de um sistema solar perdido nas dobras de um cosmos incomensurável não tem nada de necessário: sua aparição foi o resultado de uma contingência e sua desaparição será, pelo contrário, o destino inelutável ao que o condena sua própria existência em um Universo onde nada permanece estável e onde tudo tende a uma entropia irremediável. Henry Adams – um personagem polêmico e politicamente questionável, se é que estes existem – publicou em 1910 uma admirável Letter to American Teachers of History, na qual estabelecia a peremptoriedade de que a História humana se enredasse com a história cósmica. Desta perspectiva, a “entropia do Universo” é parte constitutiva de qualquer ordenamento humano.

Adiantando-se em muito às formulações de Claude Lévi-Strauss a respeito, Adams postulava o irrefreável processo que – mais além do que hoje se conhece como o paradoxo de Schrödinger – conduzirá à inevitável extinção de todo mundo humano. Se a vida pode alimentar-se de uma “entropia negativa”, não obstante, nada torna necessária a subsistência da vida humana e o mais seguro e esperável é a completa desaparição do Homo sapiens como espécie. Contudo, o conceito de “antropotecnologia” não possui uma matiz apenas pejorativa, ou, em todo caso, apenas a tem na medida em que se tratou, até agora, de tecnologias produtoras do humano. Mas a técnica é parte do universo mesmo da vida e as técnicas especiais que o animal humano se auto-impõe para sua constituição são inevitáveis: o desafio consiste em pensar se por acaso é possível que exista uma tecnologia não antropológica que possa se aplicar sobre nossa animalidade com vistas a criação de uma in-humanidade portadora de um mundo ainda desconhecido.

Um mundo que, não obstante, não está garantido, de maneira alguma, que seja de um âmbito melhor ou eticamente superior a humanitas. O anti-humanismo que reina em certa filosofia contemporânea pode conduzir ao falso otimismo de que toda forma não-humana que adquira o animal humano será necessariamente melhor. Nada mais afastado da minha perspectiva. Recriando livremente uma frase pronunciada por um prestigioso sociólogo polonês, podemos dizer que o otimista pensa que um mundo não-antrópico seria necessariamente o melhor dos mundos possíveis e, ao mesmo tempo, o mais distante do humanismo que até agora construímos; um pessimista seria, então, quem pensasse que o otimista poderia ter razão.

Isso significa que um mundo de pesadelo sempre espreita qualquer ordenamento humano. A única coisa que sabemos com certeza é o caráter ominoso do experimento zoopolítico da antropotecnia cristã que hoje ameaça acelerar exponencialmente a entropia de nosso sistema histórico-social. Porém nada, absolutamente nada, nos garante que o que possa vir seja melhor. O pessimismo metafísico rege absolutamente minhas convicções últimas, mas, por isso mesmo, a filosofia me parece uma ferramenta privilegiada na “entropia negativa” de nossos esforços por perseverar na existência.

Como posso outorgar tal poder à filosofia se, como sustenta Nodari, o livro comporta “ataques à filosofia antiga e moderna”? Justamente pela mesma razão. As críticas do livro nunca são à filosofia enquanto saber, mas sim a certos paradigmas com os quais a filosofia se conduziu até nosso presente. Mas em qualquer dos filósofos com os quais discuto poderiam se encontrar elementos com os quais concordaria também. Se admitimos que a filosofia – a diferença do saber teológico – é necessariamente doxológica e não dogmática (como diria Emanuele Coccia) –, então sua potencialidade é inesgotável e em seus domínios a busca da verdade não coincide com a destruição das opiniões dos filósofos com os quais se discute. A multiplicidade de aproximações filosóficas à verdade é condição de possibilidade da mesma enquanto exercício agonístico do pensamento. De fato, a filosofia é o menos estritamente humano que existe posto que depende inteiramente do pensamento e o menos que podemos dizer é que o homem é apenas um “efeito acidental do pensamento” e não que o pensamento é a essência do humano como certa tradição obstinadamente buscou nos fazer crer.

Por isso, a filosofia é, essencialmente, o pensamento do afora do humano e é dali que pode constituir-se o que alguma vez se chamou “contemplação”, e que não é outra coisa senão a consideração da verdade por fora de todo viés humano (ainda que, paradoxalmente, a historicidade possa encontrar seu lugar específico também aqui). Porém, não é tarefa do filósofo anunciar os tempos de um novo messianismo nem ser o profeta da nova revolução (que não seria, de todas as maneiras, mais que um novo avatar da apocalíptica). Se cremos que a revolta (não a revolução) é possível – e pessoalmente anseio que assim seja – então é importante saber que não se necessitam filósofos para produzi-la. Se o Uno ou a forma-Estado devem ser desconstruídos e entregues às forças da revolta – uma ânsia inconfessada que provavelmente percorre com desespero pelos espíritos de todos os habitantes do globo –, é certo que, em tal processo, a filosofia não terá a última palavra e nem sequer a primeira. A revolta é construída por aqueles que lutam e o papel da filosofia não é desenvolver a epistemologia da revolta. Não se pode esperar da filosofia o que deve vir da política como estratégia de luta. O papel da filosofia é contemplativo (ainda que isso soe tão impopular aos ouvidos contemporâneos) e, no máximo, pode proporcionar um enquadramento ético para o desenvolvimento de seus iniciados.

Mas nem todo homem escolherá ser filósofo e a maioria não o será nunca. Como nem todo homem pode ser médico ou poeta. A filosofia pode aspirar a conhecer o mundo e a produzir uma metánoia de um tipo muito especial. Isto já é muitíssimo. Pode somar-se ao desejo, também, de transformar esse mundo, mas para consegui-lo, deve já o filósofo abandonar a filosofia para se transformar em um homem que põe em ato sua politicidade (uma distinção que nada tem a ver, não obstante, com a consabida separação entre teoria e práxis). A confusão destas dimensões conduziu ao extravio da política contemporânea (que esqueceu que a stasis e o movimento agônico são sua esfera constitutiva) e expôs muitos filósofos ao ridículo de enunciar “alternativas políticas” que fariam sorrir a qualquer um que conheça minimamente em que consiste a violência do poder.

Um último esclarecimento antes de terminar esta carta aos amigos do Brasil. O livro que hoje Alexandre Nodari resenhou tão generosamente é o elo inicial de uma pesquisa que haverá de prosseguir por sendas que deverão superar os limites epistemológicos do método genealógico (apenas parcialmente seguido no primeiro volume) para se adentrar em uma metafísica da espectralidade. Talvez esta metafísica se entrecruze com os antropófagos ou com as metafísicas canibais de Viveiros de Castro, mas ainda não sabemos. O que podemos sim afirmar é que no enigma metafísico do espectro subjaz também um novo acesso ao território de uma politicidade até agora nunca iluminada com a luz adequada. Quando Norman Mailer escreveu seus pensamentos sobre o ofício do escritor, intitulou seu livro A spooky art. Essa denominação espectral contem um ambigüidade própria do inglês norte-americano, dado que spook significa tanto espectro quanto agente secreto e Mailer escreveu de modo célebre sobre os agentes de inteligência. Mas se poderia generalizar esta particularidade idiomática e esta conjuntura existencial do escritor norte-americano e dizer que quem trabalha com uma espectrologia lida, sempre, com spooks. Por isso, o espectro é também o agente secreto que se infiltrou, até agora sem ser descoberto, no seio da política humana até o ponto em que constitui a base da comunidade por excelência. Mas isto já forma parte da pesquisa por vir e o êxito da busca não estará, certamente, nos resultados, mas sim na fortuna de contar com a amizade discutidora dos filósofos antropófagos.

Clique aqui para ler a resenha escrita por Alexandre Nodari >>

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Fabricar o humano


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.