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Os anões
de Veronica Stigger

São Paulo,
Cosac Naify, 2010


Genealogia bastarda de Veronica Stigger

por Alexandre Nodari

Recentemente, em uma resenha de tamanho desproporcional aos padrões de onde foi publicada (o caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, conhecido por suas resenhas magras de tamanho), Roberto Schwarz identificou em Leite derramado os traços que permitiriam filiar seu autor, Chico Buarque, à herança de Machado de Assis. É evidente que forma e conteúdo – sem contar o posicionamento político pessoal condizente com o que Schwarz identifica nos textos de “maturidade” machadianos – fazem do músico e escritor o filho legítimo do patriarca. Todavia, se mudássemos o enfoque, veríamos que a herdeira atual mais legítima de Machado é também a mais bastarda. A premissa dessa genealogia bastarda é ver nas ficções de Machado não um conflito entre as idéias – liberais – e o lugar de sua enunciação – marcado pela escravidão –, mas o modus operandi de uma então nascente forma da linguagem que prescinde de sua relação tanto com as coisas, quanto com a verdade, de um novo tipo enunciado que não diz mais respeito a quem enuncia ou ao local de enunciação, em suma, da sociedade do espetáculo, aquele momento da história do capitalismo quando a linguagem se torna dinheiro. Por vezes, este modo de funcionamento da linguagem esvaziada e convertida em puro valor de troca é tematizado explicitamente por Machado – como em A teoria do medalhão, ou em O segredo do bonzo –, por outras, chega a ser teorizado – como no caso mais evidente da teoria do humanistismo, mas também em O espelho, que é, como diz o subtítulo, o “esboço de uma nova teoria da alma humana”, e não um conto filosófico estritamente existencial. Mas, na maioria das vezes, ela está presente difusamente (ainda que de modo quase onipresente), na forma de cartas anônimas, cartomantes, mediadores (agregados), interesseiros de discurso volátil, etc. Não havendo conflito, não há também margem para o elemento subjetivo da ironia que marcaria a disjunção: a tão propalada verve irônica machadiana poderia ser lida como efeito de um absurdo objetivo. Isso diminui a importância capital que Schwarz atribui a um narrador implicado e permite ver na “neutralidade” objetiva do narrador de A cartomante, O alienista, A causa secreta, O caso da vara – e tantos outros – uma certa proximidade com Kafka.

São estes traços da linguagem esvaziada e convertida em dinheiro que permitem remetermos a escritora contemporânea Veronica Stigger à Machado de Assis. Em Os anões, o seu mais recente livro, esta filiação bastarda fica evidente. Nele, nos deparamos com um exemplo explícito da monetarização da linguagem produzida pelo espetáculo, o conto Tatuagem (reproduzido nesta edição do SOPRO). Mas talvez mais interessante seja o tratamento que Stigger – nesse ponto muito próxima a outro autor brasileiro contemporâneo, André Sant’Anna – dê aos “tipos”, noção essencial na história da literatura e da sociologia. Sabemos que na década de 1930 a política cultural soviética adota como padrão literário o realismo proletário, privilegiando a literatura de “tipos” já advogada por Engels. Como os juristas que enquadram ações em tipos penais, os censores estalinistas, convertidos em críticos literários, passaram a avaliar se a construção literária de personagens se adequava aos tipos desejados – o camponês, o operário, etc. Mas o que é um tipo? Quando a noção de “tipo” se firma nas ciências sociais e humanas, em oposição ao método empírico-comparatista de Durkheim, é exatamente o seu estatuto de pura imagem que é ressaltado: para Max Weber, os tipos puros ou ideais, com que sedimentou sua sociologia, não poderiam ser encontrados “na realidade”; o que existia “de fato” era sempre um compósito, mais ou menos híbrido, de tipos que – e daí a sua natureza circular – se construíam a partir de elementos dispersos nesta mesma “realidade” em que eram (não-)aplicados. A experiência que se quer capturar, conceituar, falta – e é esta falta que permite a sua captura. A própria etimologia de tipo já indica este seu caráter puramente lingüístico, de uma referencialidade impossível: o grego typos significa imagem, vestígio, rastro, ou seja, ausência, índice de uma presença imemorial. O tipo é um modelo sem molde, oscilando entre a pura abstração e a empiria mais rasa; portanto, a única forma de minar a sua generalidade é ressaltar os vestígios empírico-referenciais que o sustentam, isto é, convertê-lo em estereótipo. O problema é que este endurecimento, paradoxalmente, obscurece o que quer elucidar, criando um fosso ainda maior entre saber e vida. Dito de outro modo: a noção de tipo assemelha-se a de rótulo – e, não por acaso, a literatura que privilegia os tipos é, em geral, literatura de propaganda. É à desconstrução dessa propaganda – que liga o rótulo a uma situação determinada, enrijecida – que se dedica o conto que dá nome ao livro de Stigger. Mas tal desconstrução não se dá – como seria o modo mais fácil – pela complexificação dos personagens-tipos, o casal de anões –, mas por seu esvaziamento completo: nada, a não ser o tamanho, um dispositivo de identificação (um rótulo) os diferencia de seus assassinos (são tão cruéis quanto eles, aliás, chegam a provocar o próprio assassinato). O tipo se converte em uma tag, que, esvaziada de um conteúdo determinado, enrijecido, pode ser aproveitado pela sociedade do espetáculo. Esse passo ulterior é dado no conto seguinte, Teste, que é tanto prolongamento do conto Os anões, quanto um possível curto diálogo entre publicitários (provavelmente as duas coisas: o assassinato brutal dos anões sendo “apenas” um experimento mercadológico):

"- Que tal fazer, então, o mesmo teste
com mulheres gordinhas,
de cabelos crespos?
"

Não há, entretanto, nenhum maquiavelismo por parte destes supostos marqueteiros. Atores e públicos, como fica mais evidente em Teleférico, também não cessam de gozar diante deste espetáculo em que a linguagem e a esfera pública mais em geral se reduziram ao seu grau zero, ou seja, à sua negação enquanto valores singulares, o que quer dizer, à sua morte.

Contudo, como boa bastarda, Veronica Stigger não herdou de Machado a sensação de no way out que reside nele. Ao contrário, aprofundando o efeito de absurdo objetivo dos relatos de Kafka, ela aprofunda também a esperança que existe neles. Em Kafka, parece haver a constante disputa entre duas esferas da linguagem: a do Direito, burocrática, que captura e tipifica a vida, e a dos artistas. A esperança – retratada ao início e ao fim de O processo, por exemplo – é de que o Direito seja apenas uma ficção, de que os funcionários do tribunal sejam apenas atores (ainda que de segunda categoria), de que tudo não passe de um grande como se. Nos relatos de Stigger, essa esperança reaparece, mas se transfere dos atores para os espectadores. Como n’A cartomante de Machado, não há mais como diferenciar a verdade da ficção, o verdadeiro do falso. O que é possível – mas que não era no relato machadiano – é outra maneira de lidar com essa linguagem esvaziada, com o espetáculo: o que é possível é a ética. Isso fica mais patente no conto A caverna, releitura do mito platônico em que a caverna não aparece na forma de um shopping center, como em outra releitura de Platão, o romance de Saramago, mas na de um cinema. Todavia, à diferença de Platão e Saramago, no conto de Stigger, nada é exibido nas paredes – ou seja, não há um fora verdadeiro: quando a luz da caverna/cinema enfim se apaga, “um solitário facho de luz” revela “o branco sujo da parede à frente de todos”. O conto lembra um curto fragmento de Giorgio Agamben, Os seis minutos mais belos da história do cinema, em que Dom Quixote, vendo uma donzela em perigo na imagem projetada na tela do cinema, rasga-a de tal modo que só se vê a “estrutura de madeira que a sustentava”, para indignação do público e delírio das crianças. O relato de Agamben, por sua vez, traz à mente outro conto de Stigger, No teatro (presente no livro O trágico e outras comédias), em que a personagem Josefina, que tinha fobia de teatro pela proximidade dos atores com os espectadores, acaba sendo convencida a ir a uma peça, onde seu medo se torna realidade: “o ator gostoso – totalmente sem querer – esticou o braço para além dos limites do palco, levantou a espada e decapitou Josefina, cuja cabeça caiu rolando pelo teatro. Mesmo com o sangue espirrando do corpo da moça como um chafariz e manchando-lhe a malha, o ator gostoso continuou a pular, a dançar e a cantar. Imaculada, que havia recolhido a cabeça da amiga, tentava, sem sucesso, recolocá-la no lugar. E a platéia, extasiada com a veracidade do número, aplaudia enfaticamente”. Nos três relatos – o de Agamben, e os dois de Stigger – está em jogo a relação de mediação entre atores e espectadores, a separação espetacular. Todavia, A caverna é singular porque “nada” acontece: três páginas narram de modo extenuante uma constante mudança dos personagens-tags na platéia. No mesmo A república onde Platão narra o mito da caverna, o filósofo também liga o declínio ateniense ao que ele chama de “teatrocracia”, o domínio do auditório: os poetas começaram a misturar os gêneros, acabando com a diferença entre a boa e a má música, ao que se seguiu a intromissão cada vez maior do público nas encenações, público já incapaz de distinguir o bom do ruim, e prepotente ao ponto de levar esta intromissão à política, criando a democracia. Os movimentos angustiantes (ou entediantes) dos tipos esvaziados de Stigger na sala de cinema, esta caverna contemporânea, podem não significar nada – já que não há nada a ser visto. Mas estes movimentos, a relação com o nada e com os outros aqui se revela mais importante que o espetáculo – que não passa de uma parede suja.

Textos anteriores:
Tatuagem

(fragmento)

Do espetáculo sem desculpas
(resenha)

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.