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Uma fome

de Leandro Sarmatz

Rio de Janeiro: Record, 2010


“Misturar desejo com história”
por Flávia Cera

Se fosse possível sintetizar em uma expressão o livro Uma Fome, de Leandro Sarmatz, essa que dá título à resenha talvez fosse a mais apropriada. E, o fato de ela estar no conto Barra da Tijuca, manhã do dia 5 de junho, em que “um cara com PhD em estudos culturais” é convidado para escrever o roteiro de um programa especial de natal para a televisão, marca-a como um sintoma do nosso tempo em que academia e televisão quase se confundem, assim como ficção e realidade, passado e presente. Se, por um lado, não temos um reduto que nos garanta qualquer estabilidade, por outro, temos o desafio, não menos estimulante, de não ter fronteiras, de podermos transitar livremente por aqui e por ali.

O anacronismo deliberado dos contos de Sarmatz, sobretudo no primeiro do livro, Harry Abbot, é o que permite conjugar tão bem essas duplicidades que se fundem em determinado momento. Em Uma Fome vemos que literatura se faz com memória, com arquivos, é o passado que pode definir infinitamente o presente; entretanto, ele não age sozinho, é preciso “histerizá-lo” (lembremos que memória é negação da loucura): “a forma pela qual cada geração lê o passado é a verdadeira ficção do futuro”. O presente, ou o futuro, não serão construídos sobre fatos, mas a partir dos modos de leitura de cada geração, ou seja, é preciso que, na história, se interfira com o próprio corpo: ler para ex-crever, para escrever a história fora de si mesma.

É claro que esse corpo, famélico como sugere o título, está muito além do desejo de suprir necessidades biológicas, de matar a fome. Saciar a fome, como em Freud, está muito mais perto do princípio do prazer do que da objetividade do estômago: “é como se houvesse uma espécie de instinto, ou se quisermos, de segunda natureza. Trata-se de um atributo independente da própria vontade. A vida está ali oferecendo seus desafios, para quem dizer o que for necessário sem entrar em maiores filosofias”. Fome de escrita de Julio Pogoretz, mas também fome de memória.

A memória judaica resgatada por Sarmatz se entrecruza com a memória do “velho enrabado pelos milicos” durante a ditadura brasileira; os delírios esquizofrênicos do roteirista, com o indefinido Álvaro; a carta à mãe que quis virar estrela, com os inacabados contos do escritor menor. Entre “Atores” e “Abandonos”, as duas partes do livro, a ausência é uma constante. Mas não se trata de melancolia, ou de agarrar um passado perdido. Trata-se da tarefa, se é que podemos chamar assim, da arte: criar possibilidades de vida. Afinal, só conseguimos falar de ausências através das presenças, das marcas que essas ausências deixaram, ou de seus fantasmas. Não se trata de uma dialética entre visível e invisível, entre dentro e fora, mas de uma proposta de esvaziamento que Jean-Luc Nancy, filósofo francês, chamou de “ser abandonado”. Abandono, explica Nancy, evoca abundância, é um excesso de nomes, de rostos, que não são preenchidos por um conteúdo determinado. Como lemos no conto Uma Fome: “Perdido. Vou: perdido no meio dessa gente, desse casal agonizante na estrada, perdido no meio dessa gente, ouvindo os delírios desse velho enrabado, perdido no meio dessa gente, vendo a cara de pascácio desse doutorzinho que nunca leu Dostoiévski, no meio dessa multidão de enfermeiras, perdido nessa escuridão, abrindo e fechando os olhos nessa luz amarela, às vezes é mais branca e mais clara, perdido no meio dessa gente, vão tomar no cu, perdido no meio dessa gente, essas vozes todas, perdido no meio dessa gente, a coruja debaixo d’água, perdido no meio dessa gente, de boca fechada, de boca fechada”. No meio da multidão, ou na tentativa de voltar a algum lugar da infância, como é o caso de Fleischer no conto O Conde, ou ainda o filho acometido por um “glaucoma do bravo”, nenhum personagem consegue manter laços firmes, o que conseguem no máximo é uma presença “espectral”: “consigo enxergá-la com a consistência de um fantasma”, escreve o filho em Caninos Quebrados. Fantasmagórica, porém viva e é o saber o que fazer com essa memória, com esse abandono, que cabe a cada geração.

Mas no meio desses abandonos, surgem também os encontros e com eles, as possibilidades; todo abandono contém também o chamado para olhar para frente. Entretanto, nem tudo é otimismo e felicidade, a consciência, na falta de melhor definição, da catástrofe está sempre presente, uma sorte de sadismo inerente aos acontecimentos, uma schadenfreude que intitula um dos contos. Não existe pureza, nem um mundo onde a bondade plena possa reinar. O que não quer dizer que tudo está perdido, que estamos fadados ao insuportável do mundo. Sarmatz, ao contrário, nos mostra que não, através da disseminação dos nomes, ao invocar os fantasmas, mostrando que o passado passa– mas estamos longe de qualquer concepção cronológica do tempo –, ou seja, o passado está sempre passando por nós, a história está sempre se re-significando. Assim podemos reorganizar o presente e o futuro: sem nenhuma conotação definitiva, ou determinada, mas aberta às possibilidades de fazer das ausências, presenças, de fazer encontrar morte e vida, ou seja, à contingência, às possibilidades de vida; daí misturar desejo com história, corpo e memória. Nada é tão decisivo que não possa ser mudado, mas para virar o jogo é preciso manter a fome, o desejo.

Texto anterior:
Repensando a
trajetória de Oswald

de Luiz Costa Lima

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.