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A vida sensível
de Emanuele Coccia

Tradução de Diego Cervelin

Desterro, Cultura e Barbárie
(Coleção PARRHESIA), 2010


Um corpo do tamanho do mundo

por Flávia Cera

Emanuele Coccia, jovem filósofo italiano, vem desenvolvendo, desde seu livro A transparência das imagens: Averróis e o averroísmo, uma leitura fundamental sobre a imagem, que altera radicalmente a compreensão de uma série de pressupostos que perseveraram por muito tempo. Em A vida sensível, publicado pela editora Cultura e Barbárie, Coccia apresenta uma reflexão contundente (que supera, evidentemente, as fronteiras da filosofia e alcança a psicanálise, a antropologia) sobre uma física do sensível e uma antropologia da imagem, deslocando o sensível do psíquico, colocando-o em um fora absoluto e afirmando que o que difere o homem não é a racionalidade, mas uma especial relação com as imagens.

“O sensível não é algo meramente psíquico”. As imagens, o sensível, não nascem ou acontecem através do funcionamento cerebral, elas existem, antes, fora de nós. Ao sensível, temos que fazer devir, porque o mero contato entre o sujeito e o objeto não produz percepção. E para fazê-lo devir, precisamos de um meio, de um espaço intermediário que não é, contudo, alerta Coccia, um vazio: ele é “sempre um corpo, sem nome específico e diferente em relação aos diversos sensíveis”, mas que, entretanto, mantém uma capacidade comum, a saber, a capacidade de poder gerar imagens.

O espelho é esse lugar intermediário por excelência, nele o sujeito contempla sua imagem separada de si, fora de si. Ali, o sujeito existe como mera visibilidade, como exterioridade a si mesmo, sem consciência, como “ser puro do conhecimento”. O espaço intermediário, entretanto, não se reduz ao espelho: a imagem, o sensível, diz Coccia, é “a existência de algo fora do próprio lugar”, “qualquer forma e qualquer coisa que chegue a existir fora do próprio lugar se torna imagem”. De modo que, podemos dizer, não existe intimidade, tampouco uma interioridade do ser ou uma oposição entre corpo (exterioridade) e alma (interioridade), mas sim, para falarmos com Lacan, uma extimidade, uma intimidade estranha a si mesma, que o sujeito não contém, que não lhe é própria. “O ser das imagens é o ser da estranheza”, ou seja, as imagens não têm um ser natural, mas sim um “esse extraneum”.

É justamente quando Coccia dialoga com o estádio do espelho de Lacan, que surge a pergunta: “O que significa, de fato, ser capaz de viver em nossa forma mesmo quando ela não existe mais em nós, não nos dá mais vida e não é mais o lugar onde pensamos?” Ao que responde imediatamente: o que torna essa vida possível é a faculdade mimética. A possibilidade de imitar e ser imitado é o que garante essa existência fora de nós mesmos. É o sensível que permite que as formas sejam veiculadas, multiplicadas, reproduzidas, transmitidas e apropriadas infinitamente.

Essas possibilidades se aprofundam e “tomam corpo” quando outro tema caro à psicanálise aparece: o sonho. “Toda vez que sonhamos, a própria natureza deixa de ser definida pelo corpo anatômico ou por aquele fantasma existencial que chamamos de ‘eu’”; no sonho, podemos tornar-nos outras formas, somos invadidos por vozes, histórias, imagens que passam a fazer parte de nós mesmos. No sonho, a oposição entre eu e mundo desaparece: “o eu descobre que seus limites são os mesmos do mundo, e todo mundo está contido no eu e é recriado por ele”. Sonhar, contudo, quer dizer imaginar, e é a capacidade de imaginar que assegura a nossa existência. É com Sinésio de Cirene que Coccia passa a explicar essa “vida imaginativa” do sonho (que, embora seja uma vida menor, ainda é vida), “o primeiro corpo da alma”, denominado por Sinésio como “espírito fantástico”. São, portanto, a fantasia e a imaginação que constituem o vivente. O vivente é o que é capaz de imaginar, seus limites são os limites do alcance da imaginação. O que nos faz pensar que o sonho e a imaginação são tão “reais” que constituem a “realidade”, e vice-versa, que a “realidade” não é feita de outra coisa senão do sonho e da imaginação. E essas questões nos empurram para o limite do questionamento entre fato e ficção: existe ficção que não seja fato? Existe fato que não seja ficção?

Ora, se, a todo o momento, nos apropriamos e emitimos imagens ao mundo estamos longe de poder conceber uma pureza de gêneros ou de formas. É o que Coccia nos permite ler em uma das nossas atividades mais corriqueiras: vestir-se. Existimos enquanto aparência, nós damos a ver nosso corpo em uma autopresentação. Essa operação se faz ver, sobretudo, na moda. Na moda, o vivente se apropria de um sensível exterior: “o vivente é aquilo que não tem nenhuma substância, mas que adere à própria substância apenas através do costume, de uma moda”. Ou seja, não somos um ser, temos, apenas, modos de ser. Isso porque o ato de vestir-se, maquiar-se, decorar-se, permite-nos emitir um traço singular de nós mesmos, mas ele, por outro lado, confunde-se com diversos traços do mundo. A moda é uma maneira de ser singular- plural: incorporamos, do mundo, o que nada tem a ver conosco e emitimos nossos traços mais pessoais ao mundo. Ou seja, “para nos tornarmos reconhecíveis, confundimo-nos com algo que não nos pertence”. É aí que o mundo se transforma em nossa pele, que nosso corpo passa a ser uma imagem, que existimos mais fora do que dentro de nós. Se somos imagem na moda, isso significa que precisamos de outros corpos, de outros meios, para aparecer. De modo que estamos sempre em um corpo a corpo ou em um pele a pele com o mundo e com os outros.

Corpo e imaginação, pele e linguagem estão, portanto, em íntimo contato. O ato da fala é o que faz a nossa pele existir fora de nós: “a linguagem é a faculdade suprema de apropriação imaterial das coisas”. Essa faculdade suprema da linguagem, nos leva de novo ao meio. Nesse caso, especificamente, aos meios de comunicação de massa. Não é por acaso que Coccia usa termos medievais para descrever as imagens, tais como “veiculação”, “transmissão”, “recepção”, “reprodução”. É aí que está a radicalidade política da proposta de A vida sensível. Foram esses, exatamente, os termos apropriados pela sociedade espetacular, pelo reino dos meios de comunicação. Dizer que somos “atravessados por imagens” parece ser uma novidade quando tratamos da enorme indústria da publicidade, ou dos meios de comunicação em geral, seria um “sintoma da nossa época”. Entretanto, como se pode ver, somos todos desde sempre (e independente da constituição de um sujeito), atravessados por imagens. Recebemos e produzimos imagens, ou seja, o velho clichê utilizado pelos críticos apressados da indústria cultural para condenar ao expurgo e à alienação (termo recorrente no livro) o sujeito que é “atravessado por imagens” pode ser, ali, revisto.

Dizer que somos manipulados, pura e simplesmente, pelas imagens, pela mídia, não expressa a perversão dos “meios de comunicação de massa”. O que eles mediam é a própria medialidade da imagem. Mediam a imaginação pública, ou seja, modelam o meio (o lugar onde se produz o sensível) para controlar o real. Mas não há como ser imune a eles (as imagens são transmissíveis, ou seja, são contagiosas), não existe uma roupa protetora e nem mesmo a possibilidade de não ser afetado, por exemplo, deixando de assistir televisão, ou deixando de assinar um jornal. Isso porque as imagens estão no mundo indiferentemente à presença de um sujeito, independentemente de qualquer tipo de controle.

Talvez uma das formas mais radicais de inoperar os meios tenha sido “El arte de los medios” planejada e executada (ou não-executada) por Roberto Jacoby, Eduardo Costa e Raúl Escari em 1966, ou seja, contemporânea às reflexões do estádio do espelho de Lacan e da sociedade do espetáculo de Debord evocadas por Coccia. Lê-se no manifesto: “Em uma civilização de massas, o público não está em contato direto com os fatos culturais, mas se informa sobre eles através dos meios de comunicação. A audiência de massas não vê, por exemplo, uma exposição, não presencia um happening ou uma partida de futebol, mas vê a sua projeção em um noticiário”. O que eles pretendem colocar em questão é a indiferença ao acontecimento – ou não-acontecimento – do fato: o que interessa é a imagem construída pelos meios de comunicação. Daí que eles vão ao “interior dos meios” noticiar um happening que, “de fato”, não acontece, mas é noticiado como se tivesse acontecido. Assim, tentam constituir uma arte puramente dos meios, que não passa da veiculação de uma notícia que relata os fatos de um happening que aconteceu (nos meios), mas que não aconteceu (“de verdade”). O que eles propunham era uma “‘obra de arte’ [que] desapareça o momento de sua realização”. E prosseguem: “Levamos assim até sua última conseqüência uma das características dos meios de comunicação: a des-realização dos objetos. Desse modo se privilegia o momento da transmissão de uma obra mais do que o momento da sua constituição. A criação consiste em deixar sua constituição vinculada a sua transmissão”. Ou seja, a imagem só é compreendida, apropriada, na sua transmissão, na sua veiculação. Se os meios de comunicação se apropriam das formas, da medialidade dos meios, capturam a linguagem, as imagens, a arte dos meios se apropriou, em contrapartida, da forma dos meios de comunicação. Ao “tematizar os meios como meios”, ao inoperar essa mediação do meio, ao fazer da transmissão o objetivo próprio do meio para a realização do objeto, nesse caso, do happening, a “arte de los medios” não fez outra coisa senão mostrar a surrealidade do real. Ali, na transmissão, onde os meios de comunicação exercem um poder, a arte dos meios desarticula-o, apropriando-se da sua forma.

A intenção, ou seja, a capacidade do vivente de produzir imagens, de produzir sensível, “é surreal pela sua capacidade de veicular.” E uma intenção surreal “tem a capacidade de veicular o real e o psíquico em um estado de ser ulterior. Graças a esse terceiro estado que nosso mundo é sempre um mundo mágico”. Essa afirmação está muito longe de ser um disparate. Se são as imagens que permitem a “animação do corpóreo”, se “não convém medir os limites da vida animal pelos confins de seu corpo anatômico”, se somos afetados pelas imagens e somos capazes de produzir imagens, somos, perdoem o trocadilho da “cultura de massas”, desenhos animados, uma vida sensível, um corpo extensivo aos limites do mundo, aos limites do sensível, aos limites da paixão – infinitamente transmissíveis e apropriáveis.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.