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 Entidade
 Leonardo D’Avila

Por mais que seja um termo de uso comum na atualidade, curiosamente empregado para significar tanto essências como sociedades civis ou mesmo, num sentido mais esotérico, divindades ou espíritos, entidade é um neologismo que surge na Idade Média latina, tendo sido muito recorrente nas metafísicas escolásticas. No entanto, seus diferentes empregos na história sugerem uma imprecisão da parte de qualquer tentativa de lhe determinar um único sentido correto ou proeminente. Contudo, se forem assumidas as próprias dificuldades junto às quais a palavra entidade foi associada, colocando-a mais como um tema do que como um signo, nota-se que entidade se relaciona geralmente a objetos de difícil precisão ontológica, mais especificamente abstrações geradas a partir dos sentidos.

Etimologicamente, entidade não suscita tantos problemas, uma vez que se trata da composição de latim tardio entitas,-atis. Resumidamente, trata-se de um substantivo abstrato derivado da flexão verbal do próprio verbo ser (esse) ao seu particípio presente, ou seja, a forma nominal mais ou menos correspondente a “ente” em português ou espanhol modernos, cuja forma latina seria ens, -tis. A essa operação, o sufixo “dade” (tas, -atis) se acrescenta ao ente para dar-lhe um sentido abstrato, resultando em entitas. Neste sentido, diferencia-se de outro substantivo abstrato derivado do verbo ser, a saber, a essência (essentia, -ae), cujo sufixo se acrescentaria diretamente ao verbo no infinitivo. E por mais que, como será visto, algumas vezes essência não tenha sido aplicada de modo a se diferenciar de entidade em discussões filosóficas, é importante saber que “entidade” constitui uma abstração do ser flexionado nominalmente, ou seja, sujeito à determinação do particípio, diferentemente de essência, que seria uma abstração do ser puro no infinitivo, sem qualquer afirmação pessoal, temporal, casual etc. Mas qual seria a discussão em que aparece entidade, e de que maneira ela se destaca como um termo técnico? É preciso, então, demonstrar alguns exemplos de seu emprego pela escolástica.

Quando Tomás de Aquino (1225-1274) emprega o termo entidade, ele o faz de uma maneira abrangente e sem um sentido técnico preciso, o que era comum no período. Ainda assim, é possível perceber que Tomás já começa a destacar entidade de essência, visto que aquela adviria da própria coisa, aproximando-se da aparência. Isso transparece, por exemplo, quando o autor teoriza a respeito da verdade, esclarecendo que entes criados possuiriam entidade ao passo que entes de razão não a possuiriam. Isto quer dizer que, enquanto a pedra seria um ente criado (por possuir ser verdadeiro), composto de matéria e forma, o conhecimento que se pode obter dela abrangeria a verdade que está na coisa, isto é, sua entidade, e também a verdade decorrente da própria pedra relacionada com a inteligência humana; já a cegueira, por ser apenas uma privação de visão, seria verdade apenas por ser possível falar sobre ela, já que ela em si não possuiria essência, sendo, por isso, um mero ente de razão. Ou seja, poderia haver verdade no falar sobre a pedra tanto quanto no falar sobre a cegueira, mas a verdade sobre a cegueira se daria apenas na adequação da privação ao intelecto humano, e não por possuir entidade. Neste sentido, Tomás de Aquino resume a situação ao dizer que, “a verdade nas coisas criadas não consiste em nada além da entidade da coisa e da adequação da coisa ao intelecto ou então na adequação do intelecto à coisa ou à privação da coisa” (veritas in rebus creatis inventa nihil aliud potest comprehendere quam entitatem rei, et adaequationem rei ad intellectum vel adaequationem intellectus ad res vel ad privationes rerum).[1] De um modo interessante, o autor separa diversas vezes uma verdade composta por entidade e outra que não a possui, certamente porque esta última seria mera intelecção enquanto a primeira seria matéria sensível antes de estar presente ao intelecto.

Para além dos entes de razão, a concepção de entidade se amplia quando passa a abarcar também o problema dos universais, como é o caso dos gêneros, a exemplo do homem, antes de ser propriamente este ou aquele homem. Quem melhor se deteve no problema da determinação individual em oposição à filosofia dos universais que era preponderante no continente europeu, no entanto, foi o franciscano britânico Duns Scotus (1266?-1308), cuja discussão sobre entidade foi provavelmente a mais impactante que se fez até hoje.

Ao tratar dos universais, Duns Scotus utilizará o termo entidade tanto de um modo mais genérico, algo próximo ao que fez Tomás de Aquino quando tomava entitas enquanto uma abstração sensível ou abstração posterior ao ente, quanto de um modo mais específico, fixando a alcunha de entidade como “princípio de individuação”, ou ainda haecceitas. O primeiro emprego é comumente utilizado no autor para diferenciar entitas quiditativa de entitas positiva, de modo que a entidade “quiditativa” equivaleria à essência pensada abstratamente, ou seja, uma generalização daquilo a que se refere a pergunta pelo quê algo é (o quê?). Trata-se, assim, da pergunta por aquilo que qualifica um ente, como seu gênero, seu número, sua unidade. A pergunta pelo quid é, no entanto, uma pergunta pelo um, ou ainda, uma pergunta que chegaria no máximo à espécie perante o gênero, mas nunca ao indivíduo mesmo. Para explicar a individuação, Scotus estabelece a entitas positiva para encontrar aquilo que é individual num ente, ou seja, aquilo que não é possível conhecer, mas que faz com que o ente seja “este” ou “aquele” ente individual (qual?). Contudo, a associação de entidade com positividade logo ganha em Duns Scotus um sentido técnico de princípio de individuação, que pode ter ainda outros nomes, como haecceitas, cuja tradução aproximada seria “estidade”, ou ainda differentia individualis. Para Scotus, portanto, a entidade positiva passa a ser o princípio de individuação do ente, não sendo nem uma coisa e nem mesmo sua natureza, uma noção que os homens não poderiam conhecer efetivamente, mas através da qual uma essência (sempre metafisicamente neutra, uma herança de Avicena) poderia vir a ser um ente individualizado e existente, por exemplo, o Sócrates ou esta pedra; e essa entidade não acrescentaria ao ente a individualidade.

A entidade individuante não estaria no que não é indivíduo, como em universais, no entanto, ela não se confundiria com a existência. Aliás é justamente este o ponto que separa D. Scotus de Tomás de Aquino. Para o dominicano, a existência era o princípio do indivíduo, mais especificamente no assinalar da matéria pelos acidentes, portanto, nas marcações, imperfeições dos corpos, como também no fato de possuírem unidade. Isso, contudo, é válido apenas a entes compostos de matéria e forma, como homem, os animais, objetos mundanos etc. Também implica dizer que, no caso de entes compostos tão somente de forma, como os anjos, cada espécie teria de ser um indivíduo distinto e a individualidade não seria dada mais pela existência, senão pelo gênero, ou essência, formando um problema sério que o franciscano Duns Scotus tentou resolver em sua teoria sobre a individualidade. Sendo assim, separando-a do um ou da quididade, Scotus prevê uma entidade positiva a todo ente singular, algo que se acrescenta ao ser, mas que se aplica a todos os entes, inclusive à pedra, ao homem e aos anjos e ao próprio Deus, que é individual pela mesma entidade individuante, que não estaria nem nas coisas e nem na nossa mente (absque omni operatione intellectus[2]), sendo uma formalidade neutra. Essa, no entanto, nunca poderia ser confundida com a existência porque a existência dentro do sistema de Scotus é determinada diretamente pela essência, enquanto a entidade individuante seria algo de positivo que se acrescenta à essência (ou ser, o que, no autor é equivalente) e uma determinação tão individual que chegaria a ser indescritível. Se o termo parece obscuro ou até um pouco redundante, deixa de sê-lo por uma definição que o próprio Scotus dá sobre a entidade. Diz o autor: “a entidade não é matéria ou forma ou composto já que cada uma dessas noções é uma ‘natureza’, mas é a última realidade do ente (ultima realitas entis)”.[3] Enquanto a quididade seria uma diferenciação que consistiria em uma determinação da essência do universal ou da espécie, a haecceidade seria a diferenciação pensada formalmente, porém fora de uma função da essência ou ser. É muito impactante pensar que o filósofo que é considerado uma referência na teorização sobre a univocidade do ser (em contraponto ao estudo do ser por analogia e também aos diversos modos de ser em Tomás de Aquino), por sua vez deixe uma válvula de escape para se pensar um fundamento para a própria diferenciação dos entes, apontando para a última fronteira da predicabilidade rumo à transitividade em seu sistema. É importante salientar que Scotus postula na entidade uma differentia individualis, o que não deixa de ser uma positivação da diferença e que de algum modo dissocia-se da essências, aproximando-se da matéria sensível e das aparências, porém sem haver alguma conclusão absoluta neste sentido.

A partir da reflexão de Scotus, Francisco Suárez reelabora o problema da individuação de um modo diverso, mas que será o predominante na discussão moderna sobre individuação. Assim, em vez de se opor frontalmente à realidade da entidade individuante, Suárez toma uma posição mais especulativa, a qual não vai negar simplesmente a posição de Scotus e adotar aquela de Tomás ou Guilherme de Ockham, ou vice-versa. Suárez esclarece que o indivíduo acrescenta algo real à natureza, mas aquilo que é acrescido não é de modo algum algo distinto a essa natureza, destacando-se apenas conceitualmente e ex natura rei. Em outras palavras, a distinção individual existe apenas em nosso entendimento e não exatamente fora da coisa designada, enquanto para Scotus, a distinção individual era formal, porém diversa da coisa. Com relação à utilização do termo entitas mais especificamente, Suárez o aplica para tratar do princípio de individuação assim como Scotus o fez outrora. Contudo, o luso-espanhol o conceitua justamente na tentativa de dizer que a entidade de algo não se diferencia de seu ser, e, portanto, qualquer forma de abstração da individualidade dos entes não se separa destes.

Sendo assim, Suárez responde Scotus quando afirma que “unidade e ser são uma e mesma natureza, pois a unidade não expressa nenhuma noção positiva senão a noção de ser” (unum et ens esse unam ac eamdem naturam, quia nimirum nullam rationem positivam dicit praeter ratione mentis).[4] Mesmo assim, um e ser seriam conceitos diferentes, pois a unidade acrescenta uma negação privativa ao ser, isto é, a unidade se diferencia apenas conceitualmente do ser pelo fato de ser a negação da divisão no próprio ente. A unidade então não é aquilo que se acrescenta ao ente, mas simplesmente a sua indivisibilidade, o que serve de base para sua incomunicabilidade com outros entes e que não se diferencia do ser. Tudo aquilo que pode ser dividido ou servir de essência a mais de um ente, os universais, não seriam reais, mas frutos do entendimento, de modo que, enquanto eles possuiriam unidade conceitual, os seres, os entes propriamente ditos, possuiriam unidade individual. A partir disso, Suárez entende que tudo o que é ente é um e tudo o que é um ente, e “esse um”, “essa unidade”, sendo ela algo próprio àquilo que é, poderia até ser isolada abstratamente quando se fala em unidade transcendental; mas mesmo essa unidade transcendental seria apenas conceito, de modo que ela em nada se diferenciaria realmente da unidade individual, sendo apenas um modo de dizer que um e ente são completamente conversíveis. E “ser uma entidade, isto é, um ser, e ser divisível em muitas entidades implica uma contradição” (Implicat contradictionem esse entitatem et esse divisibilem in plures entitates).[5] Concluindo, a diferença de Suárez para Scotus é que aquele, por mais que considere a entidade como princípio de individuação, de modo algum a destaca do ser, colocando-a apenas como conceitualmente distinta, um argumento que será repetido pelo jovem Leibniz no texto De principio individui. Neste gesto, Suárez abandona o realismo metafísico de Tomás de Aquino e principalmente de Scotus sem cair necessariamente no nominalismo de Guilherme de Ockham, o qual negava as essências e também as entidades, para propor uma solução transcendental, de modo que garante a unicidade metafísica do ser, relegando as divisões e as categorizações como frutos do pensamento. O impacto do jesuíta neoescolástico é tal que o próprio Heidegger ressalta que “Suárez é o pensador que tem a mais forte influência na filosofia moderna” (Suárez ist der Denker, der am stärksten die neuzeitliche Philosophie beeinfluβt hat)[6], tendo marcado diretamente Descartes, Kant ou mesmo Hegel, o que de certo modo afirma Suárez como uma fonte importante para o próprio fim da metafísica.

Um contraponto à teoria de Suárez foi estabelecido por Tommaso Campanella (1568-1639), o qual volta a utilizar a palavra em um sentido escolástico, apesar de dar-lhe um significado mais amplo, que não deixa de ter grande destaque em toda sua filosofia. Enquanto Suárez via na entidade um princípio formal de individuação, Campanella retoma entitas como algo próximo a realidade(s). Sendo assim, em sua Philosophia Rationalis Campanella estabelece uma discussão semântica sobre o caso e afirma que, entre os termos abstratos, alguns sucedem o correspondente concreto, como o caso de entidade em relação ao ente; outros termos abstratos, por outro lado, precedem o correspondente concreto, como a essência é anterior ao ente. Portanto, diz Campanella, “alguns termos abstratos precedem os concretos e firmam uma ideia, ou coisa a partir do todo, como humanidade ou verdade. Outros derivam do concreto e firmam uma idealidade ou quase idealidade a partir da parte, como veracidade, entidade ou realidade” (Terminorum abstractorum alius praecedit concretum, & signat ideam, & rem ex toto, sicut humanitas & veritas: Alius subsequitur & signat idealitatem & quase ex parte, ut veracitas, entitas, realitas).[7]

Campanella estabelece, portanto, uma divisão de termos abstratos que terá consequências não apenas semânticas ou gramaticais, pois, em sua Metaphysica, essa subdivisão reaparece, inclusive para colocar a entidade no centro de seu pensamento. Neste sentido, afirma que “a verdade é a entidade de uma coisa como ela é, enquanto a falsidade é a entidade como não é” (Propterea dicimus veritatem esse rei entitatem sicuti est: falsitatem vero sicuti non est).[8] Ou seja, da passagem se pode retirar que, embora a coisa não seja diretamente conhecida, sua entidade pode corresponder a seu ser ou, por outro lado, tanto por erro como por ignorância, a entidade pode em nada ter a ver com o ser. Por mais que o argumento de Campanella seja muito mais longo e complexo, pode-se afirmar sinteticamente que a entidade é uma abstração a partir do próprio ente e, diferentemente da essência, pode ou não corresponder ao ser. Sendo assim, entidade é uma abstração bastarda, secundária, muito mais próxima da aparência do que da essência. Trata-se analogicamente de uma “realidade” sensível que pode ou não corresponder ao inteligível.

A conceituação de Campanella, muito embora retome certo grau de realismo metafísico semelhante ao de Scotus, no entanto, não foi tão difundida como a teoria de Suárez dentro do debate filosófico moderno e, por sua vez, a própria teoria de Suárez não teve nos demais saberes o impacto da noção hobbesiana de entidade. Para o assunto, no último capítulo da versão inglesa do Leviatã[9], o qual trata das trevas, após uma discussão sobre os demônios, Hobbes se dedica à “vã filosofia”. É ali que o autor indica que essas abstrações obtidas a partir do verbo ser não se separam em uma realidade própria, sendo apenas signos. Indaga-se o autor: “Mas o que então viria desses Termos, Entidade, Essência, Essencial e Essencialidade, que muitos dele derivam e muitos mais dependem dele, aplicados como são? Eles não são, portanto, Nomes de Coisas, mas Signos, pelos quais nós tornamos compreensível o que concebemos”.[10] Neste sentido, Hobbes retoma um nominalismo para logo após dar uma tonalidade mais política ao assunto, justamente quando explica a importância da discussão dessas abstrações para a soberania ou o governo:


Mas para qual propósito, devem alguns dizer, de tal sutileza em um trabalho desta natureza, onde eu pretendo nada menos que o necessário à doutrina do Governo e da Obediência? É com o propósito de que os homens não mais sofram de ser abusador por aqueles que com tal doutrina de Essências Separadas, construída sob a vã filosofia de Aristóteles, iriam amedrontá-los em obedecer as leis de seu país, com nomes vazios assim como homens assustam pássaros do milharal com um gibão vazio, um chapéu e um cajado.[11]

Nessa sua observação da entidade como fanatismo, beirando uma forma de dominação pela loucura, assim como acontece com aqueles que diriam existir demônios para poderem exorcizá-los, Hobbes não apenas retira qualquer realidade das essências, mas também das entidades, priorizando apenas a realidade empírica. Essa prática será predominante em toda a modernidade, culminando no próprio positivismo de Auguste Comte, cuja filosofia eminentemente empírica não via realidade nas abstrações e logo não consideraria entidades e nem mesmo realidade sensível fora da razão, de modo que entidade passa a ser apenas uma “abstração vazia, uma degeneração abstrata do princípio teológico” (dégéneration abstraite du príncipe théologique).[12] Entretanto, curiosamente, enquanto anteriormente a entidade era apenas um conceito relacionado porém não confundido com os entes ou ainda um princípio metafísico, com Hobbes entidade passa ela mesma a ser considerada como um ente, ainda que um ente vazio de conteúdo ou mais um nome para ilusão. Em outras palavras, entidade toma com Hobbes um sentido mais forte de substantivo, que será predominante até hoje, tanto quando se fala em entidade no sentido jurídico-burocrático (ex: uma entidade financeira; associação; pessoa jurídica) assim como no sentido esotérico (entidade preto-velho, entidade fantasmal). Então por mais que Hobbes refute qualquer realidade da parte das entidades, indiretamente ele termina por afirmá-las quando as combate, inclusive tratando-as como coisas, mesmo que coisas falsas, vãs ou enganosas. No fundo, o próprio Estado, que foi batizado como um monstro, não deixa de ser ele mesmo uma entidade; uma entidade que necessita reconhecer, localizar, catalogar, dominar e hierarquizar as outras entidades para que não sejam concorrentes a ele, sejam elas entidades civis ou entidades no sentido religioso.

Embora seja impossível uma conclusão definitiva sobre os usos do termo entitas, é interessante observar como, a esses principais autores, a entidade está sempre entre a discussão lógica e a teorização metafísica, pendendo ora para um lado, ora para outro, sem, contudo, jamais se definir a nenhum dos dois definitivamente, talvez por ser um produto dessa própria separação. Outrossim, é possível dizer que, seja para afirmar ou para discordar, as entidades são postas como entes ou quase entes próximos aos sentidos e que, portanto, se dão mais por difusão, como se dá com conceitos, instituições ou opiniões, do que por fundamento, como acontece com uma realidade inteligível, a exemplo das ideias ou das essências. Por isso, é enquanto permanência, retórica ou propagação que a entidade sintetizou diversas manifestações de difícil enquadramento ontológico, porém geralmente acompanhada de severas críticas que denunciavam sua falta de existência. Sendo assim, a utilização de entidade como princípio comum aos entes, algo típico da escolástica e que está em São Tomás de Aquino, principalmente como aquilo que falta aos entes de razão, portanto matéria sensível, vai dar lugar ao sentido técnico escotista de princípio de individuação, mas que, justamente por isso, tornará inseparável a noção de entidade da de posição ou relação entre objetos sensíveis, sejam eles materiais ou espirituais. A isso, após a atitude anti-metafísica de Suárez com relação a entidade e o seu contraponto com Campanella, que as entenderá como abstrações a partir dos entes, segue-se a refutação desta última noção por parte de Hobbes. Contudo, ao fazê-lo, o escritor do Leviatã é o primeiro a tratar entidade enquanto um ente intramundano, mesmo que apenas em aparência e realidades apenas por difusão ou retórica. Resumidamente, seja nas conceituações sobre sua vacuidade, seja nas que afirmavam sua realidade ou possibilidade lógica, a discussão se dá em torno do problema de poder ou não existir abstrações que, por sua vez, podem facultativamente corresponder ou não ao ser. Enfim, a entidade é um receptáculo que historicamente tentou postular ou negar positividades de fundo ou origem incertas, sendo imprescindível um requestionamento do termo para se pensar objetos pré ou para-ontológicos, como é o caso dos mitos, afetos, opiniões ou imagens.

 

[1] AQUINO, Tomás de. De Veritate, q. 1, art. 8, conclusão. [Voltar ao texto]

[2] SCOTUS, Duns. Ordinatio II, Dist. 3, p. 1, q. 1, 30. [Voltar ao texto]

[3] SCOTUS, Duns. Ordinatio II, dist. 3, p. 1, q. 5-6, 289. [Voltar ao texto]

[4] SUÁREZ, Francisco. Disputationes Metaphysicae. IV, s. 1, 6. [Voltar ao texto]

[5] SUÁREZ, Francisco. Disputationes Metaphysicae. V, s. 1, 5. [Voltar ao texto]

[6] HEIDEGGER, Martin. Die Grundprobleme der Phänomenologie. Gesamtausgabe. Frankfurt am Main: Vitorrio Klostermann, Vol. 24, 1997, p. 112. [Voltar ao texto]

[7] CAMPANELLA, Tommaso. Philosophiarationalis. Dial. Lib. 1, Cap. 3, art.VI. [Voltar ao texto]

[8] CAMPANELLA, Tommaso. Metaphysica. Lib. 1, Cap. 2, art. I. [Voltar ao texto]

[9] A versão latina não será aqui discutida, mas vale salientar que ela é um pouco mais atenuada no que concerne à desmoralização da filosofia aristotélica e mais técnica do que panfletária na discussão, a exemplo de quando diz que todas essas abstrações, como essência, entidade são frutos da confusão entre os sentidos existencial e copulativo do ser. [Voltar ao texto]

[10] HOBBES, Thomas. Leviathan. Reprinted from the edition of 1651. Oxford: Oxford University Press, 1909, p. 526, tradução nossa. [Voltar ao texto]

[11] Idem. [Voltar ao texto]

[12] COMTE, Auguste. Cours de philosophie positive, vol. 4. Paris: Bachelier, 1839, p. 307. [Voltar ao texto]

 


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