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Espelho
Flávia Cera


Espelho mágico
(1929),
René Magritte

“O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” é divulgado por Jacques Lacan em 1936 e posteriormente, em Zurique, em 1949, e publicado em 1966 no seu famoso Escritos. A formação do eu dá-se pela imagem refletida no espelho. Diante dele, uma criança observa-se com júbilo e é apresentada a um corpo inteiro, a uma unidade corporal que a livra da angústia de um corpo dilacerado. A duplicação do corpo, a imagem com a qual a criança gesticula, brinca, anima (dá alma) revela, explica Lacan, uma “estrutura ontológica do mundo humano”. Essa afirmação ontológica de Jacques Lacan não diz outra coisa senão que o ser é uma imagem. Ou seja, já não se trata de uma consistência material que sustenta o ser, ou de alguma transcendentalidade de consciência, o ser forma-se na imagem e é imagem. Somos todos, portanto, a princípio, imagem e é a partir dela que formaremos nossos laços, é a partir dela que assumiremos um modo de vida, enfim, é a partir dela que iniciamos uma ficção sobre quem somos.

É através da imagem que nos identificamos, diz Lacan: “Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação tal qual a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago”. A identificação de que Lacan nos fala pode ser lida como a apropriação de uma imagem refletida no espelho como se – aqui se ressalta o caráter ficcional – fosse a sua imagem. A instância imaginária desse eu é o que estabelece a linha de ficção que começa a nos dar sentido. No entanto, é essa capacidade de identificação com a imagem que também nos habilita a projetar imagens (que nunca são próprias, mas sim apropriadas, roubadas, emprestadas, etc.). Isto é, na medida em que nos refletimos no espelho, que nos apropriamos de uma imagem, que formamos um eu, passamos também a veicular imagens (mimetizando). Daí poderíamos explicar a relação que se prolonga pela vida toda, uma vez que o eu nunca é todo, entre o eu e o outro, para além da sua insuficiência biológica: se em uma forma relacional, tal qual dá suporte a psicanálise, o eu se constitui no outro, o eu e o outro se confundirão irremediavelmente cada vez que o eu e o outro assumirem uma posição. O que não quer dizer que não exista uma separação entre o eu e o outro ela existe porque embora as instâncias se confundam, embora haja identificação, elas não coincidem sem resto. Ou seja, o sujeito deixa uma marca, uma impressão do eu sobre a imagem do outro, ou como argumenta Lacan posteriormente, um significante.

Essa não coincidência estabelece-se também entre a linha de ficção do eu e a realidade: “o ponto importante é que essa forma (o [eu]-Ideal[1]) situa a instância do eu desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das suas sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu], sua discordância de sua própria realidade”. O que Lacan explica aqui é que o eu imaginário, total e completo, nunca corresponderá totalmente à realidade. Alguma coisa sempre faltará. E mais do que se fechar em uma imagem, o estádio do espelho mostra a abertura do humano ao sensível[2].

Estados de ficção: loucura e alienação do eu
Oswald de Andrade, figura marcante do modernismo brasileiro e divulgador da Antropofagia, em 1950, quando escrevia sua tese sobre “A Crise da Filosofia Messiânica” propõe uma releitura de Freud:


A psicanálise custou a compreender que era preciso atacar o Superego paternalista. Durante muito tempo as soluções apresentadas pela escola de Freud não viram senão nos remédios negativos do Eu (recalque, regressão, anulação e isolamento) como nas formas masoquistas (volta contra si mesmo, transformação no contrário) a maneira de liquidar os conflitos internos.

Começou-se enfim a compreender que o Superego também podia estar errado. Do mau acolhimento dado aos direitos submetidos que estavam às disposições disciplinares da Moral dos Escravos, passou-se a uma fase psicanalítica em que se procurou legalizar o homem natural que resistia por meio de neuroses e estados de ficção, às injunções seculares do socratismo ocidental.

Chamamos de estados de ficção aos distúrbios e alienações em que se entoca e desenvolve o Eu agredido pelo ambiente. Histeria, paranóia, delírios de ciúme e de religião, ausências, tudo passa a ser nas mãos do Eu poeta, do Eu romancista, do Eu moralista, desenvolvidos no trauma, temas da derivação da doença. Se recorrermos à História, veremos como esses estados princeps, produzidos em geral nas personalidades fortes, promovem outros que chamaremos de estados de espelho e daí a extensão de grupos contagiados e multidões passivas.

De forma bastante peculiar, Oswald critica o mesmo ponto que Lacan criticou em Freud, uma clínica fundamentada na resistência, e propõe que compreendamos, e aí em uma sintonia impressionante com Lacan, o eu como potencialidade. Ou seja, mais do que as limitações dos sujeitos, mais do que a finitude, uma infinitude propagada pela imagem que, em estado de ficção, ou em linha de ficção como queria Lacan, abre o eu para o outro. Esses estados de ficção apresentam-se na alienação, diz Oswald, que se encontrará marcadamente na despersonalização das figuras do Eu poeta, Eu moralista, do Eu romancista. Ou seja, o mimetismo desses estados de ficção é o que propicia o contágio das massas (daí a literatura ser perigosa porque contagiante); em uma desrealização do eu da neurose, da paranóia, por exemplo, de que se apropriam outros eus refletidos no espelho temos o mimetismo como psicastenia da qual nos falam Roger Caillois e Lacan.

É verdade que na formação do eu esteja condensada uma forma de loucura. Lacan a coloca como o que “estrutura como paranóico o conhecimento humano”. O eu, a unidade corporal, forma-se fora de si. É uma existência extra-corpórea. O eu é, parafraseando Coccia em sua proposição do Cogito do espelho, lá onde não pensa e onde não existe. Daí o mimetismo: o eu só é renunciando a si e confundindo-se com o espaço. O eu se perde no ambiente e encontra uma tela de projeção no outro. Foi Clarice Lispector quem, de modo lapidar, formulou uma questão crucial para o espelho: “mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois um único é uma infinitude de espelhos (...) Não, eu não descrevi o espelho – eu fui ele”. Ou seja, não se trata de estabelecer uma identidade (eu sou isso que vejo no espelho), mas sim de estabelecer identificações, de se apropriar da imagem do outro.

Esse encontro com o outro é necessário porque o homem, diferente do animal, tem um “inacabamento anatômico” ou, para invocarmos novamente o fantasma de Oswald, “um déficit essencial e permanente”. Esse inacabamento faz com que a imagem tenha uma função primordial no estabelecimento da relação entre o “organismo e sua realidade”: “o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim, o rompimento do círculo do Innenwelt para o Unwelt gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu”. Essa “armadura assumida de uma identidade alienante” é a imago. É através da imagem, assumida ou apropriada, formada na exterioridade do sujeito que o eu assume uma forma. Daí a trans-form-ação: um atravessamento em direção à exterioridade – do Innenwelt para o Unwelt, através de uma ação – de uma animação da imagem, que dá forma ao sujeito. Nesse momento acontece uma experiência (ex-periri[3]) fora do corpo que expõe o sujeito ao perigo. Este perigo é duplo: o de sucumbir à imagem (daí um encontro fadado ao fracasso com a realidade) e o de perder-se (paradoxalmente, para encontrar-se) no outro.

Duplo estranho
Que o encontro com essa imagem no espelho seja tomado por felicidade, júbilo, nos diz Lacan, não quer dizer que ela não contenha certo estranhamento, afinal é um duplo que se apresenta. É na conclusão do estádio do espelho, explica Lacan, que se “inaugura pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (...) a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas. É nesse momento que decisivamente faz todo saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro”. O eu, alienado no outro, não compreende que é ele o meio para conseguir o que se deseja. Essa medialidade do outro, a imagem do outro, ao invés de ser entendida como o que dá acesso, é entendida como rivalidade. Afinal, é um estranho, um duplo estranho, uma vez que está dado que esse outro semelhante forma o eu, que o invade e obstaculiza sua satisfação.

A tensão dialética entre a imagem do eu e sua alienação no desejo do outro é fruto do investimento libidinal que Freud denominou como narcisismo primário, explica Lacan, e daí deriva a agressividade que é constitutiva nas relações sociais. Logo em seguida, Lacan empreende uma forte crítica ao existencialismo sartreano em que coloca o voluntarismo revolucionário da “self-suficiência da consciência” no plano da agressividade para além do “bom samaritano”. Diferenciando-se radicalmente da proposta sartreana, Lacan firma as bases da prática analítica: não conceber o eu centrado no sistema percepção-consciência organizado pelo princípio da realidade, mas partir de uma “função do desconhecido” que caracteriza o eu em todas as suas estruturas. A alienação do eu, sua parte de loucura, é constitutiva porque parte de si é desconhecimento. Daí que ele afirme: “assim se compreende a inércia própria das formações do [eu], onde podemos ver a definição mais abrangente da neurose: ver como a captação do sujeito pela situação dá a fórmula mais geral da loucura”. Ou seja, o máximo de ação, da qual falamos anteriormente, é a animação da imagem refletida: não há consciência que dirija o sujeito, todo eu se forma no outro, temos um déficit essencial, somos capturados pela situação, pelo ambiente e não o contrário (aí também a loucura mimética). Em suma, não temos controle absoluto da situação: ela também nos controla, nos absorve e despersonaliza. Desse modo, uma das máximas sartreanas “o inferno são os outros” teria como complemento, em chave lacaniana, “o inferno também sou eu”.

De certa forma, Lacan opta pelos estados de ficção de que nos falava Oswald ao criticar a apreensão da realidade pelo idealismo, pedagogia, reformismo e filantropia. Existe uma tensão agressiva entre o eu e o outro, uma curva assintótica entre o imaginário e a realidade, um duplo irremediável e dialético. O eu, que não é uma síntese, se instala nesse lugar suspenso em que os encontros fracassam, em que corpo e imagem não coincidem, em que se abre uma falta que será a casa de nossas pulsões. A alteridade tão propagada por ideais do bem e do sacro, nos é apresentada por Lacan como uma agressividade, para além do bem e do mal e, subvertendo a máxima kantiana, o outro é tomado como meio. É através dele e com ele que me vejo e desejo.


[1] Escreve Lacan: “a assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. Essa forma, aliás, mais deveria ser designada por [eu]-ideal”. [Voltar ao texto]

[2] Emanuele Coccia sustenta que, na cultura moderna, foi Jacques Lacan quem soube reconhecer “o papel fundamental do sensível na constituição do indivíduo humano”. É ele também quem propõe que o estádio do espelho não seja apenas uma fase: “na verdade, a faculdade de reconhecer-se (ou de mal reconhecer-se) no sensível, de identificar-se com ele, de trocar-se por uma imagem, é algo ainda mais estranho e profundo, mais profano e cotidiano do que Lacan tentou isolar na assim chamada ‘fase do espelho’. O que significa, de fato, ser capaz de viver de nossa forma mesmo quando ela não insiste mais em nós, não nos dá mais vida e não é mais o lugar onde pensamos? O que significa ser capaz de viver nas formas mesmo quando elas abandonaram as coisas, os objetos, cuja natureza definiam, mas ainda não se tornaram os nossos conteúdos psíquicos (ainda que possam vir a fazê-lo)?” [Voltar ao texto]

[3] Experiência deriva etimologicamente de experiri. E periri etimologicamente deriva de periculum. [Voltar ao texto]


A

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Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
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C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
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E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
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Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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Notas para a reconstrução de um mundo perdido (IX):
A simulação, a Floresta e o Primeiro Temperamento – A Descida da Árvore


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A mentira e o Soluço do Mundo – A Dança Nasceu na Floresta



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.