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 Moldura Barroca

 por Evandro de Sousa

(Para Renata Gonçalves Gomes)

Le peintre est légérement en retrait du tableau. Il jette un coupe d’oeil sur le modèle; peut-être s’agit d’ajouter une dernière touché, mais il se peut aussi que le premier trait encore n’ait pas été pose. Le bras qui tient le pinceau est replié sur la gauche, dans la direction de la palette; il est, pour un instant, immobile entre la toile et les coulers. Cette mains habile est suspendue au regard; et le regard, en retour, repose sur le geste arête. Entre la fine pointe du pinceau et l’acier du regard, le spectacle va libérer son volume. (Michel Foucault)

 

A moldura: espaço limite negligenciado pela teoria da arte como puro ornamento. A moldura impõe assim o risco, o traçado, o limite, o lugar em que não há confluência das partes. Impede a fusão, não impele à direção de uma confusão. Não possibilita a existência do monstro, abre o dentro e o fora (condição modular da dobra). A moldura é o lugar em que situo o gesto do soberano, espaço que abre sua própria lógica que é um condicionante das partes. Não sendo a obra ainda, também não é independente desta. A moldura, no entanto, devolve o espaço em que os fantasmas podem acontecer, um vazio, uma barra. Figuração-limite entre o que se compõe enquanto imagem e enquanto real, enquanto sujeito e objeto. É a moldura, não obstante, que diz do limite da obra, limite este que pode ser capturar uma imagem (percepção de um fora) ou ainda da barra de floreios que limita mundos, impede-os de se confundirem, mas não de se equivalerem (impõe a condições de concomitância e latência de olhar).

Ao partir nesta direção, José Antonio Maravall observa que no barroco a força do indivíduo aparece enquanto uma herança (é consciência legada pela Renascença), mas na torção das forças em cena impõe uma “captura” e o um movimento de (ponto de) fuga: “[...] o indivíduo se impulsiona a sair do quadro, mas tropeçava em sua rígida moldura”. Tendo isto estabelecido, se pode lembrar as repreensões que Kant elabora a Leibniz e a Wolff, em suas investigações sobre a natureza e a origem dos nossos conhecimentos por considerarem “[...] puramente lógica a distinção entre o sensível e o intelectual, porquanto essa diferença é manifestamente transcendental e não se refere tão só à sua forma clara ou obscura, mas à origem desses conhecimentos”. Opondo o sensível e o intelectual, afirma que “o entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar”. Assim o objeto, constituído enquanto a realidade do fenômeno (realitas phaenomenon), depende do tempo e do espaço para sua existência e assim possibilitar sua apreensão ou experiência. Anteriormente a Maravall, Wöfflin ao pensar o barroco a partir de uma idéia de análise filológica da obra se propõe a historicizar sua “evolução”, a saída de uma arte concebida como “perfeita” como o é a arte clássica, uma arte desenvolvida no plano dos deuses, das grandezas mensuráveis, para pensar uma arte que transborda em si, que remete ao plano terreno ao mesmo tempo em que ao campo das “grandes grandezas”, das formas que trasbordam o contorno, as bordas, a moldura, tencionando tender ao infinito. O grande estilo, grande no fastio e nas dimensões, propõe-se como uma maneira informal, assumindo um compromisso com a matéria, opondo-se aos elementos definidos da Renascença, que se multiplicam nesta nova concepção de arte, na qual os elementos transbordam, transbordando para além da moldura, rejeitando-a.

O espaço e o tempo, características limites que são impostas ao objeto, impõem uma faceta destas molduras, são categorias elementares que se colocam em atrito com a estrutura(ção) da imagem. Este espaço aberto no seio da moldura abre-se como uma lição de anatomia (a tela é a figuração da pele da musa), uma cosmografia que detém um fundo mágico original: engendra outra lógica, outro sistema, um mundo paralelo e equivalente (função mítica). Um “mundo” tornado e tomado pela imagem. E se (este) é um mundo devolvido pela imagem, o campo branco da tela abre o espaço análogo do espelho. Aquilo que figura ali é vestígio de um eu disseminado enquanto alteridade. O movimento efetuado se assemelha ao fascínio do Narciso por sua imagem, uma imagem que lhe demanda uma resposta (numa língua inteligível: as palavras do desejo). O que aparece suspenso é apenas um rosto, não há um corpo propriamente representado, mas sua completude se consuma através da metonímia. Ao abordar a fisiognomia, Umberto Eco escreverá em A linguagem do rosto que:

Em outras palavras, o rosto é o espelho da alma. Essa convicção não é científica, faz parte do que Hegel chamará ‘fisiognomônica natural’: como resistir à tentação, no decorrer da vida diária, de pensar que um indivíduo com olhos baços e injetados de sangue, com a cara prognata, o nariz achatado, com grandes caninos aguçados, com barba hirsuta e suarenta seja a pessoa menos indicada para confiar as nossas economias ou a guarda do nosso carro com as crianças a bordo?

Ora, ler Hegel nessa chave traz a cena outro leitor de Hegel: Jacques Lacan. Com Lacan, o rosto assume o valor de semblant, isto é, uma imagem. A linguagem se abre na esfera significante. A moldura assume assim este valor de barra para este lugar vazio do sujeito. A moldura modela o espaço, limita o campo da arte, faz com que o corpo aconteça de um lado. Por outro lado, o procedimento máximo da moldura é dar um fim, um começo, marcar um tempo para este acontecimento, ainda que seja um tempo fora-do-tempo. Cria as direções e possibilidades do acontecimento; Telos, Teos e Kronos se emaranham em sua estrutura, criam sentidos no vazio de si.

Pode-se lembrar ainda que quando Murilo Mendes manipula a história enquanto genealogia dos retratos, portanto uma história das imagens, no poema Avô Princês, de História do Brasil, foca a moldura enquanto aquilo que impedia os fantasmas, no caso heróis, da família de saírem dos retratos. O movimento dessas imagens acontece enquanto festa e loucura, a folie du carnivale. Note-se os seguintes versos:

As pinturas enroladas
No fundo de uma gaveta
Se sentiram abandonadas
Sem o calor da moldura.
Então se desenrolaram,
Retomam seus movimentos,
Entram cozinha adentro,
Seguram nas baterias
E vão pelo bairro afora
Fazendo uma barulhada.

Assim se com Foucault pode-se dizer que a moldura cria uma espécie de célula ou cela, obtendo assim lugar na determinação panóptica da sociedade, detendo o valor de prisão (um aparelho que segundo o historiador detém o papel de transformar os indivíduos, que assume a imagem de “um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria”); já com Lacan a moldura abre o abismo: tanto aponta para o espelho quanto para a janela. Deixo, por enquanto o primeiro aspecto de lado, interesso-me primeiramente pela figura da janela. Se, como o psicanalista afirma, “A história tem sempre caráter de encenação”, apontando paralelamente ao que poderia ser associado à afirmação do teatro barroco (com ou sem Maravall), de que o mundo é um palco, mais ainda“[…] o palco em que fazemos a montagem desse mundo”, dotando assim a história deste caráter cênico. Janela e espelho equivalem-se, mas aportam funções distintas. Se me interesso antes pela janela do que pelo espelho é pelas imagens que se devolvem ali, pela função que se figura ali. A moldura, como no poema de Murilo Mendes, impede a queda das suas imagens, uma saída. Queda que Lacan, ao ler o sujeito melancólico, associa com um encontro com o “real”. Dirá:

Não é à toa que o sujeito melancólico tem tamanha propensão, e sempre realizada com rapidez fulgurante, desconcertante, a se atirar pela janela. Com efeito, na medida que nos lembra o limite entre a cena e o mundo, a janela nos indica o que significa este ato – o sujeito que retorna à exclusão fundamental que se sente. O salto é dado no exato momento em que se consuma, no absoluto de um sujeito de que somente nós, os analistas, podemos ter uma idéia, a conjunção do desejo com a lei.

Este limite posto na janela enquanto uma forma de moldura que também configura uma passagem, acting out diria Lacan, passagem que a moldura enquanto instituição de um valor simbólico (como a janela) quer e deve barrar. Esta força institucional superior e opressora do barroco levaria a torção das formas dentro do espaço que lhe é conferido no quadro ou dentro da arquitetura. É impossível fugir às regras impostas, portanto, os sujeitos para se adaptarem a este espaço se expandem ou se contraem, torcem, criam outros limites para a com-fluência de sua imagem.

A moldura, não fazendo diretamente parte do quadro, mas também não estando fora dele, impõe-se soberanamente, regra este universo cindido, organiza-o segundo sua lógica, impede o confronto do desejo com a lei. Assim, neste gesto de técnica de pintura o eco é o gesto naturalista barroco-renascentista, o esfumato, a lógica das taxionomias, do trompe-l’oeil, de uma origem sempre buscada, reiterada, afirmada, mas sempre ausente. O sistema engendrado a partir da moldura impele para o lugar onde a ficção do artista é que impõe o espaço político de sua arte, mas que é um espaço limitado objetivamente pelo seu aporte material que na enfática das imagens se potencializa: “tudo pode acontecer, mas somente neste espaço demarcado” diz a moldura (ou o limite da página) definindo o espaço estético de uma cartografia da e na arte.

A
Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.