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 Rio

 por George França 

“Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas”

(Caetano Veloso e Milton Nascimento, A terceira margem do rio)

Os gregos acreditavam que os rios eram filhos de Oceano, ele próprio também visto, em algumas versões da mitologia clássica, como um grande rio sem nascente nem foz, formando um grande círculo ao redor da Terra do qual nasceriam todos os outros rios e todos os mares (o que não fica muito distante de cosmogonias em que uma cobra morde seu próprio rabo; ou ainda, “o fim está no começo, e no entanto continua-se”, como escreve Beckett em Fim de partida). Esses rios eram representados como divindades personificadas; René Ménard, em La mythologie dans l’art ancient et moderne, dá conta de que seriam eles irmãos das ninfas, e geralmente representados portando uma urna de onde fluem suas águas; os grandes rios que correm para o mar são homens velhos e barbudos, ao passo que os córregos e pequenos cursos são jovens imberbes ou mesmo mulheres, numa clássica imagem em que a força é associada a um caráter dito masculino. Aliás, as Náiades, um tipo de ninfa, eram justamente as responsáveis pelo murmúrio das águas, sendo apontadas, por outro lado, como o princípio de seu movimento. Uma das histórias mais conhecidas de relação entre um deus-rio e uma Náiade é justamente a de Alfeu, que desejou unir-se a Aretusa enquanto esta se banhava em suas águas. Tentando fugir dele, a ninfa apela a Diana, que a leva para Siracusa, na Sicília, onde, metamorfoseada em uma fonte, é invadida pelas águas do Alfeu, que atravessa o mar sem salgar suas águas e a toma. Talvez aí a encontremos, por exemplo, tocando-se com Eco, na poética de Murilo Mendes, quando este ouve O eco em Siracusa: e é aí que a voz se faz líquida, pois é com ela que somos conclamados a tocar o mundo. A história é aí o que se reconstitui nessa voz que se levanta das cavernas de Siracusa: “Áspera voz, duplo eco / Habitado pelo deus / Que subsiste ainda / No homem inumano / Eco”.

Agamben, quando articula sua leitura de Aby Warburg e a ciência sem nome, considera, em determinado momento, que haveria possibilidade de se ler uma esquizofrenia constitutiva da civilização ocidental a partir da chave dada pelo “revival astrológico renascentista” de Warburg. De um lado, estaria a imagem da ninfa, que seria a premência do movimento, visível na Primavera e no Nascimento de Vênus: uma Pathosformel em que figuraria uma agitação externa intensificada, dionisíaca, da ordem do êxtase. Sua contraface seria, pois, o deus-rio melancólico. Esse rio poderia ser não apenas o Alfeu, irrompendo por entre as águas do mar sem nelas se contaminar, mas outro, fugindo do mar pela terra adentro, como o Tietê, que fez fortuna na poesia de Mário de Andrade: foi, no início, o rio da euforia bandeirante, parte do palco da ópera de Paulicea desvairada, inaugurando a narrativa modernista da nação pelo “era uma vez” do conto da dominação do território justamente a partir desse “roteiro de penetração” (palavra cujo duplo sentido, em se tratando da violência bandeirante, não pode deixar de soar nos nossos ouvidos – e não esqueçamos da figura feminina que foi retirada do projeto do Monumento às Bandeiras, de Brecheret, em que os bandeirantes empurram-empurram uma canoa). Na Paulicea, o rio e a rua se tocam no poema Tietê, no sentido em que ambos funcionam como caminho de (des)encontro, e nesse sentido se pode ler o poeta como sujeito desencontrado diante da cidade em mutação, diante da dinâmica, do movimento que pode remeter à própria corrente, ao próprio fluxo e contrafluxo. Na cidade singrada pelo Tietê (cujas águas, nas quais se despeja a melancolia de Mário de Andrade diante do populismo, se tornam pesadas e “oliosas”, perdendo a dimensão eufórica da perquirição e tornando-se arrastar da morte, sobre a qual se dá a Meditação sobre o Tietê), Aretusa dorme no Parque Trianon, olhando para o pátio dos mortos, o Museu de Arte de São Paulo. Entre os paralelismos ainda traçáveis de Alfeu a Tietê, vale lembrar que cada um desses rios serve de espelho para figuras que se conheceram e atravessaram o Atlântico e o século XX, marcando cruzamentos entre a intelectualidade brasileira e a virada do pensamento antropológico francês empreendida, em parte, a partir da revisão das noções de jogo e de guerra pelo pensamento de um Roger Caillois (que se biografa, em 1978, em um volume chamado Le fleuve Alphée). A seu tempo, outro Alfeu, Paulo Alfeu Junqueira Monteiro Duarte, escreveria o volume 10 de suas Memórias, publicado pelo selo Anhembi, de propriedade do próprio autor, em 1958, intitulado O espírito das catedrais, chamando a si mesmo, para narrar os sucessos de seu exílio de 1938, Tietê Borba. Ungaretti, pra somar ainda outra figura a esse espectro transatlântico, contempla a Fontana dei quattro fiumi (na qual se encontram o Nilo, o Ganges, o Danúbio e o Prata), e se vê repousando (entre Isonzo, Serchio, Nilo e Sena) como uma relíquia, não andando “como um acrobata sobre a água”, nostálgico no momento em que a vida já se lhe afigura “uma coroa de trevas”, como escreve em I fiumi. Claudio Magris, ainda em 1986, atravessa a Europa, dilacerada depois de um século de duas guerras mundiais, da experiência da Cortina de Ferro, da Guerra Fria e da emergência dos nacionalismos do Leste em seu Danúbio, rio sobrevivente à passagem do tempo.

Alfeu, Tietê, Tâmisa, Danúbio, Sena, Douro, Tejo, Amazonas, Prata, Nilo, Tibre, Tigre, Eufrates, Amarelo, Ganges. Se o rio, por um lado, é fertilidade conferida por aquela que dá movimento às suas águas, por outro é melancolia, e por outro, ainda, biografema, movimento de memória em que se arrastam os sedimentos levados pela água, encontramos, em três margens distintas dos cursos de água, as figuras de três preclaros poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. O primeiro publicará, em 1952, no volume Viola de bolso I, um poema intitulado Cidade sem rio, em que se lê:

O Rio Amazonas é o maior do mundo,
Mas o Rio do Tanque é o menor.
(Desliza na fazenda de meu irmão.)
O Rio Doce banha terras amargas,
de maleita, ferro e melancolia.
O córrego da Penha, esse, coitado,
mal fazia um poço raso
onde a gente, fugindo, se banhava.
Talvez porque me faltasse água corrente,
hoje a tenho represada nos olhos
e neste vago verso fluvial.

Esse rio, dado pela ausência, toca-se novamente com a memória: ainda que menor, o Rio do Tanque desliza na fazenda do irmão, provavelmente herdada do pai, como reminiscência de infância, que, portanto, pode equiparar-se ao próprio misto de terror e desconhecimento despertado pelo Amazonas. Quando Victor Knoll lê o papel do rio Amazonas na poética de Mário de Andrade, em Paciente arlequinada, enxerga nele justamente a imagem do que há de primitivo e selvagem, de uma vitalidade que escapa ao olhar e excede o humano. O segundo contraste entre rios espelha o primeiro: de um lado, se posta um grande rio em que se encontram novamente os bandeirantes, assim como os naturalistas do século XIX e a passagem do trem; de outro, o sentimento melancólico de um ideal de natureza edênica e perdida, encontrada também no córrego dos banhos de infância. E é dessa melancolia que o rio se impregna quando se vê engolido – ou personificado – pelo sujeito cujo curso, cujo eflúvio, cujo fluxo possível está estancado no olho ou se esparrama vago – com ondas ou sem firmeza – pela página. O verso é, aqui, espaço do que flui: é tempo, que, com Heráclito, não poderia ser tocado duas vezes idêntico de si para consigo. Assim, o rio devém lágrima, que devém trânsito, que devém a inexorabilidade não apenas da passagem de tudo, mas de que haja algo que não cesse de nunca passar. Ou ainda, por outro lado, que o poema retarde a liberação dessa correnteza que se represa como lágrima, ou ainda, dessa energia postada no lugar do que não se vê, nos olhos, atrás dos olhos. O verso fluvial, este último, é, assim, não-último, porque espaço de detenção de um fluxo sempre possível e sempre liberável tão logo se libere uma nova leitura desse mesmo-outro texto. O rio é, assim e aqui, tempo, mas também texto; e nisso não fica longe do biografema e das marcas da memória (não necessariamente melancólicas ou nostálgicas).

Noutras duas margens desse rio de poetas modernistas, e também nos anos 50, avistam-se mutuamente em um Boi morto que passa pelas águas do Capibaribe João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. Se Cabral eleva seu rio à condição ele próprio de sujeito (ou empresta-lhe voz, numa via de mão dupla em que não se sabe quem se personificou ou quem se fluvializou), em O rio, “nascer já é caminhar”, e paripassu passarão não só os retirantes e a paisagem do sertão, que é talvez do que mais cuidam quando lêem os escritos de Cabral relacionados a esse tríduo (O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina), como essas águas que falam e fluem. “Diversa da viagem dos trens / é a viagem que fazem os rios: / convivem com as coisas / entre as quais vão fluindo; / demoram nos remansos / para descansar e dormir; / convivem com a gente / sem se apressar em fugir.” Todavia, os rios com que o Capibaribe se encontra também arrastam lama (e silêncio), e esses contaminantes brotam das usinas, essas devoradoras de um mundo que sequer no tempo dos engenhos se assemelha tão cruel, numa paisagem que desde muito tempo se marca pela morte: “é a morte que apodrece / ali natural, pelo visto.” (Encontro com a Usina, em O rio) É nessas águas de lama que os homens se perdem, “como um espelho não se quebra” (Paisagem do Capibaribe, em O cão sem plumas); é essa lama na paisagem do rio uma espécie de princípio de indiferenciação: efetivamente, onde começa o rio, onde a lama se separa do rio, onde a terra se separa da lama, onde o homem e a pele se separam da terra? Onde começa o homem? São perguntas que o eu lírico se põe; a linguagem, ela própria constitutiva não só desse homem, como também desses fluxos em que ele (se) narra, serviria como resposta, justamente como instituidora dessa separação no olhar entre coisas que, em suma, são uma só, e fluem, sem sentido, “como se filme de cinema” (De Apipucos a Madalena, em O rio): “tudo levava um nome / com que poder ser conhecido”. Mas ainda, ao redor desse rio, estão ali os que podem ser chamados de “gente apenas / sem que nenhum nome os distinga; / que os distinga na morte / que aqui é anônima e seguida.” (As duas cidades, em O rio). Assombra esses rios de memórias e melancolia, em João Cabral, o espectro da morte, com que se tenta essa relação, que não se constrói senão como texto, no limiar do impossível.

O rio que se vê passar com seu cortejo de coisas vivas e mortas “viu o mesmo boi morto / que Manuel viu numa cheia.” (De Apipucos a Madalena, em O rio). Bandeira, ao ver o Boi morto passando pelas águas do rio, tem o corpo submergido “entre destroços do presente / dividido, subdividido” e institui uma cisão entre a alma, que contempla o rio, e o corpo, arrastado por entre as águas, qual o boi morto, “sem forma ou sentido / ou significado”. O que se arrasta aí nas águas já não é nem a vida, nem a memória em si, mas o presente: esse compósito em que tudo não cessa de passar, e que não tem sentido senão o atribuído por quem o olha, por uma dita “alma” que acompanha o devir ou o eterno retorno desse mesmo semblante, que não é senão cadáver, corpo em mutação, em putrefação. Seu destino é ser lama.

Entre a poesia das quedas d’água e a prosa dos fluxos incessantes, entre a força que não se detém e nos arrasta ainda adiante, sobrevivendo a enchentes, temporais, secas e poluição e o imperativo de uma foz que salgadamente nos indeferenciará, ainda que à força, no sal do mar (e que por vezes pode nos salobrar antes mesmo que lá cheguemos), é necessário, como diz Agamben no texto referido ao início deste texto, que saibamos “ver no gesto dançante da ninfa o olhar contemplativo do deus” e “entender que tanto a palavra que canta recorda quanto a palavra que recorda canta”. E entre o cantar e o recordar, justamente no entre, o rio mostra sua terceira margem com Guimarães Rosa. Nesse espaço de interstício, a ordem muda do haver para o acontecer. E nas indagações sobre o porquê de o pai na canoa manter-se no meio do rio, sem subir, nem descer, sem ir a esta margem ou àquela, o rio se torna o espaço de dobra, o ser-e-não-ser, uma vez que, como diz o narrador, “Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”

A
Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter
Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.