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Estilo Tropical.
A fórmula do naturalismo brasileiro

por Araripe Jr.


Nota dos editores: “Estilo Tropical” foi publicado originalmente na revista Novidades em 22 de março de 1888. Para a reprodução abaixo, utilizamos a transcrição contida no volume Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária (Rio de Janeiro; São Paulo: LTC; EdUSP, 1978), organizado por Alfredo Bosi. O recurso a teorias deterministas das filosofias em voga prejudicou a recepção, pelas gerações posteriores, de obra do escritor e crítico cearense, com raras exceções, como a de Décio Pignatari, que considera sua série de textos sobre O Ateneu “um dos poucos ensaios literários de nível internacional que nos legou o século passado [XIX]”. Outro motivo para o desprezo por Araripe Jr. é a tabula rasa feita pelos modernistas, preocupados que estavam em criar um marco zero e ignorar a geração imediatamente anterior, ainda que o acento no elemento telúrico tenha sido uma das marcas distintivas da maior das vanguardas brasileiras, a Antropofagia. Não seria demais dizer que “Estilo Tropical” oferece, além de uma teoria “meteorontológica” da arte, uma definição avant la lettre do tropicalismo, e inscreve-se como uma das primeiras de muitas caracterizações do que Glauber Rocha chamaria de “surrealismo da realidade”, uma “realidade” ela mesma intensa e múltipla (e também, ou por isso, atravessada pelo erro, pelo acidente, pelo “primitivo” e “selvagem”), produtora de uma arte singular e que prescindia, portanto, de uma técnica especial de leitura do sobre-real (Oswald de Andrade, Raul Bopp, Zé Celso, Hélio Oiticica, João Antônio, etc.). Veja-se também a frase que abre um ensaio subseqüente do autor: “Há ainda uma fórmula que caberia ao naturalismo brasileiro: - o americano embriagado pelo real.


Incorreção do estilo brasileiro ligada à contextura do espírito da terra! A asserção parece, à primeira vista, um dislate da ordem dos que a crítica tem vulgarizado por aí. Contudo, eu penso que o fato é perfeitamente verdadeiro, e que a incorreção, nestas condições, converte-se numa eminente qualidade.

Em um estudo inédito que tenho, sobre a literatura brasileira, atribuo ao fenômeno da obnubilação do colono todas as particularidades que distinguem a vida brasileira de qualquer outra, no século XVI. Esse fator, poderosíssimo então, mas que se atenuou gradualmente, até dar lugar ao período consciente da Inconfidência, em que a literatura, no Brasil, chegou a ser superior à da metrópole; esse fator não se eliminou de todo, como sucede com tudo que gravita em torno do homem; e, hoje como ontem, a reação do meio físico, a influência catalítica da terra, as depressões e modificações do clima tropical, a solidariedade imposta pelas condições da vida crioula com a flora, com a fauna, com a meteorologia da nova região, são outras tantas influências que estão a invadir sorrateiramente estrangeiros e brasileiros, sem que estes disso se apercebam, certos, como estão, do triunfo das suas qualidades étnicas e da propulsão civilizadora de origem.

É verdade que, na atualidade, não se encontram portugueses internados no Brasil, nem normandos completamente esquecidos da civilização, quase brutificados, em conseqüência da ação direta exercida pela terra em organizações pouco seguras, desprendidas do amparo intelectual e moral da madre Europa. A assunção do espírito para regiões inexploradas não consegue mais gerar o maravilhoso, que caracterizava [as] viagens atlânticas do século aludido; não há mais, na baía de Guanabara, Villegaignons alucinados, nem Orellanas a percorrer doidamente os desertos americanos, do pampa ao Amazonas; nem Anhangüeras a perfurarem o sertão; nem turgimões tão ferozes como caetés a devorarem brancos para se mostrarem mais bárbaros do que a própria barbaria; não há, enfim, o homem diluído pela longitude da pátria, a retrair-se aos tipos inferiores de sua raça em um naufrágio psíquico dissolvente e horroroso.

Em compensação, porém, como fato correspondente, temos Ramalho Ortigão, de volta para a Europa, achando Lisboa estúpida, e os poetas da nova geração brasileira, os novos romancistas que surgem, rebolcando-se no azul e na luz tropical, em um estilo doido de cores, de tintas gritadoras, ungindo-se, na sua proverbial indolência, nuns tons orgiásticos de imaginação inominada.

Tudo isto tem explicação. Diz Rufz de Lavison, em seus estudos históricos sobre Martinica, que


o primeiro efeito do clima das Antilhas sobre o recém-chegado é uma espécie de excitação geral, que produz um sentimento de força e de atividade extraordinário; todas as distâncias parecem-lhe pequenas, não há fadiga que não seja frontada afoitamente; os do país, contudo, riem-se à socapa de tanta efervescência, certos, como estão, da sua duração efêmera; com efeito, passados dias, esse ardor se tem extinguido, o corpo tonra-se pesado, as funções enlanguescem; a cabeça cai e os exercícios intelectuais fazem-se difíceis. Dir-se-ia que, à medida que o sol se ergue sobre o horizonte, também se levanta um vapor e uma embriaguez pesada, que perturba o pensamento; surge a necessidade do repouso, vem o horror ao movimento; o estrangeiro deixa de sorrir e, como o nacional, não tem atividade senão por sobressaltos, agitadamente, acompanhada de transpiração, de uma sede inextinguível.

Antilhas ou Rio de Janeiro são uma e a mesma coisa; e o Dr. G. Treille, comentando este trecho curioso, no seu livro Aclimatação dos Europeus nos Países Quentes declara que a frase de Rufz vai além de uma alegoria de letrado, que esse autor não faz senão dar forma literária a um fato evidentemente palpável.

Não são só os aspectos feéricos da natureza intertropical que embebedam o homem. Os vapores de água atmosférica têm um corpo nas regiões pré-citadas, “e, como um satélite do Sol, o seguem em sua marcha, com uma fidelidade rigorosa”. Há horas do dia em que o brasileiro, ou o habitante de cidades como o Rio de Janeiro, é um homem envenenado pelo ambiente. A falta de tensão do oxigênio tortura-o desmesuradamente; a sua respiração ofega, e a imaginação delira numa deliciosa insensatez equatorial.

E nestas horas é justamente que o comércio se agita, que, na bolsa, as transações se fecham, que as repartições trabalham, que, nos escritórios de advogados, nos tribunais, convolve-se a chicana, que na Rua do Ouvidor se intriga, se namora, que nas redações dos jornais se escreve, se faz política, se literatiza. Agora, responda-se francamente: nessa constante surmenage, quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, há estilo que resista, há correção que se mantenha?

O tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios; nos países quentes, a atenção é intermitente. Aqui, aonde os frutos amadurecem em horas, aonde a mulher rebenta em prantos histéricos aos 10 anos, aonde a vegetação cresce e salta à vista, aonde a vida é uma orgia de viço, aonde tudo é extremoso, e extremados os fenômenos; aqui, aonde o homem sensualiza-se até com o contato do ar e o genesismo terrestre assume proporções enormes, vibrando eletricidade, que em certas ocasiões parece envolver toda a região circundante em um amplexo único, fulminante, – compreende-se que fora de todas as coisas a mais irrisória pôr peias à expressão nativa e regular o ritmo da palavra pelo diapasão estreito da retórica civilizada, mas muito menos expansiva.

O estilo, nesta terra, é como o sumo da pinha, que, quando viça, lasca, deforma-se, e, pelas fendas irregulares, poreja o mel dulcíssimo, que as aves vêm beijar; ou como o ácido do ananás do Amazonas, que desespera de sabor, deixando a língua a verter sangue, picada e dolorida. É esse estilo desprezado pelos rigoristas que justamente me apraz encontrar na mocidade que agora surge no Brasil; e se há um escritor capaz de incorporá-lo a uma literatura nascente, como é a nossa, imprimindo-lhe direção salutar, isocrônica e frutificante, esse escritor é o autor d’O Mulato, em cujas páginas já encontram-se audácias dignas dos melhores, e que, nos capítulos inéditos d’O Cortiço, vai derramando todo o luxuriante tropicalismo desta América do Sul.

Emigrando para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de passar por uma modificação profunda.

Zola, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento do real, aqui. O fato é intuitivo, e eu direi porque. A concepção do mestre, os seus métodos de expectação, os seus processos experimentalistas, tiveram em vista uma sociedade decadente, de natural tristonha, que decresce, míngua dentro das próprias riquezas, perante sua antiguidade, cansada, exausta, senão condenada a perecer. No Brasil, o espetáculo seria muito outro, – o de uma sociedade que nasce, que cresce, que aparelha, como a criança, para a luta. Ora, nada mais natural do que uma inversão dos instrumentos. Um cadáver não se observa do mesmo modo que um ser que ofega de vigor.

Aluísio Azevedo, constituindo-se o corifeu do naturalismo em sua terra, não cometeu o erro de copiá-lo servilmente; ele compenetrou-se, primeiro, do espírito da revolução operada pelo mestre; mas, organicamente diferente de Zola, impelido pela força de sua índole, talvez mais do que ele pensa, enveredou pela trilha única que o há de levar ao acampamento triunfante.

Quanto não se ilude a gentil escritora Maria Amália Vaz de Carvalho, pensando que o romancista brasileiro vai, caminho dos tristes, vítima do impaludismo do Rio de Janeiro e da anemia intertropical, cultivar do pessimismo que bafeja os elementos gastos do velho continente! Engana-se redondamente.

Nesta terra, a languidez dos anêmicos produz o lirismo de Casimiro de Abreu; mas também os sanguíneos, que se refazem na higiene e escapam ao torpor, quando nada, ou são loucos furiosos, ou vivem em uma perene embriaguez de luz, de azul, de crepúsculos rubros, de felicidade tropical, que é, na frase engenhosa do meu amigo Capistrano de Abreu, a dos lagartos verdes, dos camaleões, nos dias claros, de sol límpido, subseqüentes às grandes trovoadas.

O naturalismo, ou se subordina a esse estado de coisa, ou se torna uma planta exótica, – de mera curiosidade. A nova escola, portanto, tem de entrar pelo trópico de Capricórnio, participando de todas as alucinações que existe no fermento do sangue doméstico, de todo o sensualismo que queima os nervos do crioulo. O realismo, aclimando-se aqui, como se aclimou o europeu, tem de pagar o seu tributo às endemias dos países quentes, aonde, quando o venenos atmosférico não se resolve na febre amarela, na cólera, transforma-se em excitações medonhas, de um dantesco luminoso.

A fórmula que melhor nos cabe para exprimir a nova fase literária não pode ser senão esta: – O naturalismo brasileiro é a luta entre o cientificismo desalentado do europeu e o lirismo nativo do americano pujante de vida, de amor, de sensualidade.

É da limitação apenas das tendências dessa mestiçagem, reconhecida por todos que têm estudado o problema do nosso nacionalismo; é dessa, e não de outra limitação, que tiraremos toda a nossa força, toda a nossa segurança, e riquezas literárias.

Um realismo quente, em oposição a um realismo decadente, frio: a realidade do lirismo ou o lirismo da realidade, como mais apropriado entendam. Não há fórmula que mais convenha ao nosso crescimento atual, principalmente agora, que, pela força imigrantista, o Brasil começa a sentir o movimento de deslocação, como um grande pquiderme que esteve longamente em repouso. Tudo estremece, o anseio de andar circula com estrépito.

Aí vêm, em massa, os italianos. Essa gente, que tem no sangue todas as artes e nos nervos a violência de Maquiavel, – essa gente, palpitante e frenética, chega a tempo para nos ensinar a observar con amore as nossas próprias coisas, a nos imbuirmos delas, aparelhando as máquinas sensacionais com que serão projetadas sobre o mundo as idéias e os sentimentos de uma região inexplorada. Aí já estão os filhos da nova raça, e, dos cruzamentos felizes, os Bernardellis e outros, a cujo influxo de amor pela terra, pela vida brasileira, já devemos um princípio de coisas grandiosas.

Se é verdade o que diz Leon Metchnikoff, que os tempos modernos se caracterizam pela notável preponderância dos Estados oceânicos; se também é verdade, como pondera o mesmo autor, que a época atlântica findou com “a febre de ouro da Califórnia”, com os triunfos dos ingleses na Austrália, dos russos no rio Amur, com a abertura da China e a civilização do Japão; não é menos exato que, iniciando-se o que ele denomina época universal, para o Brasil começou, incontestavelmente, o processo da integração, – processo este que se denuncia agora, diariamente, pelo pensamento de autonomia que ferve em todas as cabeças.

Há quem julgue que o concurso imigrantista é um elemento deliqüescente para o brasileiro.

O maior engano deste mundo. Não sabem, os que isto dizem, o que é o entrain.

Dez milhões de brasileiros que acordem e proclamem a sua libertação psíquica, a exemplo da atividade inteligente dos que chegam, não são uma gota de água ou uma lágrima aposta no Oceano.


Próximo texto:

Juridiquês
Alexandre Nodari.


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
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Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.