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O esvaziamento da realidade

por Luiz Carlos Maciel

Publicado originalmente em 27 de fevereiro de 1977, no caderno Folhetim, da Folha de S. Paulo

Durante muitos anos as pessoas falaram de uma realidade nacional. Agora o conceito parece estar fora de moda, pelo menos no plano da sua manifestação verbal, pois cada vez se diz menos, embora ainda se fale – e mesmo falar parece cada vez mais temerário. Falar não é, a rigor, um espelho do mundo, mas um mundo que se cria, entre vários mundos – e, assim, diferentes maneiras de falar criam diferentes mundos, os mais exóticos, quando linguagens exóticas se institucionalizam, como acontece entre nós no momento presente.

Como qualquer categoria do pensamento discursivo, a realidade nacional é o que se diz dela: trata-se de mera construção mental, um conceito sintático e abstrato que procura dar conta, através de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade de experiências efetivas.

Os fatos vividos, naturalmente, são uma coisa – e seu relato verbal, outra. Como os processos de seletização e articulação dessas experiências são totalmente arbitrários ou, o que é mais comum, orientados por uma visão, ou distorção particular, segundo pressupostos teóricos em princípio também arbitrários, a única base sobre a qual a categoria abstrata pode ganhar validez é o consenso. O pensamento só vive graças aos pensadores: nenhum conceito pode ter significado, ou mesmo existência se não for continuamente alimentado pela existência concreta daqueles que o pensam e se solidarizam com ele, o que é sua única fonte de vitalidade.

Se muitos pensam a mesma loucura, ela parece virar bom senso – e como, em princípio, tudo é loucura, passam por bom senso apenas as loucuras mais envolventes, ou mais sutis, ou as que forem impostas através do medo e da ameaça de castigos físicos. Assim são as coisas – e todos nós sabemos disso, ainda que a maioria de nós tente se apegar obsessiva e compulsivamente a ilusórias cristalizações de uma pretensa verdade objetiva. Esse engano tenaz conduz, invariavelmente, à perplexidade.

Na realidade, por exemplo, a realidade nacional não é a realidade: é uma supra-realidade ideal, uma imagem mental que construímos com palavras, na esperança vã de dar sentido e segurança à ação deliberada. Se essa imagem faz falta de alguma maneira, é apenas porque nos acostumamos a viver por imagens. A cultura é o reino das imagens: através da educação e dos hábitos sociais, ela nos introjeta a tendência para manipular mentalmente, sempre, totalizações abstratas e dóceis ao pensamento discursivo. Dois dos principais sentimentos que essas totalizações insinuam, nas atuais circunstâncias sociais, através do cinema, televisão, teatro, imprensa, literatura, etc., são as necessidades de prestígio social e segurança econômica. Essas duas falsas necessidades são solidamente sustentadas pelo consenso e nenhuma adesão teórica ou nenhuma filosofia, nenhum pretenso compromisso político ou religioso pode enfrentar o seu funcionamento efetivo na vida de todos os dias.

Entretanto, acostumados a viver por imagens, opomos imagens às imagens: ficamos hipnotizados por elas a ponto de não poder mais enxergar o que se apresenta, evidente, diante de nossos olhos – e a imaginação, paradoxalmente, nos inibe a ação. Nunca percebemos que nossos relatos da vida são totalizações acabadas mas vazias e que a verdadeira vida, vivida a cada dia, é sempre uma dinâmica incompleta. A imagem acabada depende do consenso e deve a ele sua aparência: não existe. Quando o consenso desaparece, a imagem se dissolve.

Nas artes nacionais, a última tentativa de uma caracterização da realidade nacional foi o Tropicalismo, há tanto tempo desaparecido. O movimento procurava fundamentar seus projetos numa verificação imediata, direta, sensorial, do que a experiência viva com nossas diversas manifestações culturais oferecia. Isso implicava uma política cultural positiva capaz de oferecer um calço para a criação e esboçava uma descrição realista de nosso mundo espiritual. O Tropicalismo, porém, era apenas uma posição provisória, uma tática de um punhado de artistas de vanguarda: uma idéia cultural centralizadora para acabar com toda centralização cultural, no dizer de Jorge Mautner, e como tal, necessariamente, a última delas.

Nada veio substituir o Tropicalismo, com exceção, às vezes, de um tradicionalismo preguiçoso, redundante, e freqüentemente necrófilo. O esvaziamento do Tropicalismo corresponde, no plano sensível das manifestações artísticas, ao esvaziamento da própria categoria de realidade nacional, nesta dissimulada década dos setenta. O jogo de armar desabou e podemos ver, através dele, o vazio indeterminado.

Esta foi uma lição de grande valor prático: os consensos são flutuantes, inseguros e extremamente mutáveis. Na verdade, podem ou não se manifestar, segundo as condições dadas. Num contexto como o nosso, a menos de vinte e cinco anos para o final do século, caracterizado pela fragmentação cada vez mais explosiva e pelo despedaçamento de todas as interpretações organizadas do real, os consensos são cada vez mais efêmeros e a adesão, a fé, cada vez mais tênue. No fundo, ninguém acredita em mais nada – e nem parece possível que se acredite. Tudo passou a ser um jogo de provisórias táticas psíquicas, com suas armadilhas e acidentes imprevisíveis. Salve-se quem puder, como diz Chacrinha.

Já que a imagem mental se dissolve, sem apoio do consenso, quaisquer que tenham sido os motivos para a interrupção de seu encadeamento, podemos ver que não há realidade nacional, a não ser ao preço de uma parcialização obrigatória da visão, e que o que há é apenas uma mutável paisagem, fluida e imprecisa como a vista num sonho, ainda que seja um sonho nítido. Essa paisagem se entrega, aparentemente submissa, a muitas maneiras de ver – e se compraz em oferecer indícios que parecem comprovar esta ou aquela interpretação. Mas isso é parte da natureza, ou do jogo, dessa alucinação: o mundo. Uma aparência. Seu verdadeiro segredo é o pulo imprevisto do gato, a surpresa continuamente renovada. Pois o prazer do real é desmentir os conceitos.

O mais curioso disso tudo é que, se a paisagem continua a mudar – como sempre – e se continuamos a viver por imagens – como sempre –, podemos esperar novos desenvolvimentos teóricos e práticos, no próprio seio do sono profundo em que, culturalmente, mergulhou a famosa categoria da realidade nacional. É natural, numa situação dessas, a formação de círculos estreitos e incomunicáveis de consenso que devem estar projetando, neste mesmo momento, as interpretações mais surpreendentes dessa pretensa realidade. Quer estejamos falando disso ou daquilo, nossa tendência para manipular totalizações sintéticas, acabadas, continua a operar. Longe de sofrer a imposição de limites, ela tem sido alimentada pelo desenvolvimento das comunicações oficiais e pela tentação em tomar grandes imagens unificadas inerentes à global village.

Se essas totalizações se fazem em aparente segredo, como é certamente o nosso caso, tanto mais surpreendentes serão seus resultados na medida em que forem subindo à superfície. Elas virão inevitavelmente desafiar as velhas e grosseiras interpretações, pois o ato de esconder é um estímulo à sutileza e à complexidade, refina as imagens e é capaz de trazer para as novas totalizações os aspectos mais insólitos e inesperados. O recesso privado é o terreno mais propício ao vale-tudo do pensamento.

Seria interessante especular sobre essas novas totalizações, desenvolvidas no momento, no mais denso segredo. No domínio público, naturalmente, o pensamento é obrigado a cingir-se a limites racionais lógicos, bem definidos, para que não ultrapasse o próprio horizonte da cultura vigente. Mas, em segredo, é diferente. Se, no domínio público, pode-se prever, pelo menos em linhas gerais, os novos rumos do espírito, nos círculos do conhecimento esotérico, tais previsões são simplesmente impossíveis. E, no fundo, o que estamos fazendo é substituir conhecimento público, oficializado, por um conhecimento de natureza mais misteriosa, num processo que está sendo protegido exatamente pelo silêncio imposto a vários assuntos cujo destino natural seria o debate público. A loucura, a imaginação e a magia brotam e mediam com facilidade em terrenos submetidos a repressões intensas, pois seus caminhos são estranhos ao domínio público e ao controle oficial.

A magia está a nossa disposição, pois o absurdo já limpou o terreno. Temos espaço aberto para novos mitos, novos sonhos e novas aventuras. 

 


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.