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O Tratado do Narciso
(Teoria do Símbolo)
por André Gide

Tradução: André Vallias | Revisão: Fabiano Costa Camilo

Nota do tradutor:O Tratado do Narciso (Teoria do Símbolo) é a primeira publicação assinada do escritor francês André Gide (1869-1951). Saiu alguns meses depois de sua estreia literária com Os cadernos de André Walter – obra póstuma, uma coletânea de poemas em prosa que lhe rendeu elogios de Stéphane Mallarmé e de Maurice Maeterlinck.

Ambos os títulos foram editados pela Librairie d’Art Indépendant, a qual, fundada e dirigida pelo escritor e compositor esotérico Edmond Bailly, era um importante ponto de encontro da geração simbolista.

O Tratado já havia saído em janeiro de 1891, na revista de Francis Viélé-Griffin, Entretiens Politiques et Littéraires, mas foi a plaqueta da Librairie d'Art Indépendant, com capa desenhada pelo amigo Pierre Louÿs [reproduzida ao lado], que atraiu as atenções do meio literário.

Em 1890, Louÿs apresentara Gide a Paul Valéry, com quem travou profunda e duradoura amizade. Em setembro daquele ano, os dois visitaram o Jardim das Plantas de Montpellier, onde se encontra o suposto túmulo de Narcissa, filha do poeta pré-romântico inglês Edward Young, a qual, segundo a lenda, teria morrido de tuberculose ao chegar à cidade, e, não podendo ser enterrada no cemitério local, por ser protestante, foi furtivamente sepultada no jardim pelo pai. O epitáfio “Narcissiae placandis manibus” (“Para aplacar os manes de Narcissa”) foi usado por Valéry como epígrafe de seu “Narciso fala”, poema publicado no mesmo ano do texto de Gide.

O diálogo com o poeta deve ter influído na composição do Tratado – é o que  atesta a dedicatória –, mas Gide já trabalhava na obra alguns meses antes de conhecer Valéry. Em todo caso, as abordagens são completamente distintas. Gide elabora uma reescritura bastante ousada do mito grego, introduzindo motivos bíblicos – Adão e o Jardim do Éden – e da mitologia nórdica – a árvore Yggdrasil, provavelmente extraída de Thomas Carlyle –, intercalados com reflexões poetológicas inspiradas por suas leituras de Arthur Schopenhauer, Ernest Renan, Max Müller e Mallarmé. Valéry, por sua vez, compõe um monólogo em 58 versos alexandrinos, divididos em 12 estrofes irregulares, no qual Narciso se dirige aos lírios – seus irmãos –, à Ninfa da Fonte e ao seu reflexo, o que pareceu por demais fragmentado a Gide.

Em carta a Valéry datada de 3 de novembro de 1891, Gide se mostraria reticente também com o resultado d o seu texto:

Meu Narciso está terminado. Não sei o que pensar. Está lambido e eu não saberia mudar absolutamente nada – mas creio que ficou tacanho.
Agradar-te-á?
Em todo caso, o esforço para escrevê-lo não se perdeu, pois ele desembaraçou toda a minha estética, a minha moral e a minha filosofia. E ninguém há de me impedir de acreditar que todo autor precisa ter uma filosofia, uma moral, uma estética particulares. Não se cria nada sem isso. A obra não passa de uma manifestação disso.

A reação de Pierre Louÿs, no entanto, foi entusiasmada: “É o meu Credo”. E o texto foi tido por muitos como um verdadeiro manifesto do movimento simbolista.

Curiosamente, a outra obra chave na reintrodução do tema narcísico durante o fin-de-siècle europeu também veio a lume na mesma época, sem qualquer influência mútua: O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, publicada em revista, em julho de 1890 – e em livro, em 1891.

Gide e o escritor irlandês só vieram a se conhecer em 1892. Dizem que, ao serem apresentados, Wilde teria exclamado “não gosto de seus lábios retos , são lábios de quem nunca conseguiu contar uma mentira”, irrompendo numa sonora gargalhada. No diário do francês, lê-se: “Wilde, eu creio, só me fez mal. Com ele desaprendi a pensar”.
Em 1893, Gide acompanha o pintor Paul Laurens numa viagem de 9 meses pela Tunísia, a Argélia e a Itália, que o tiraria do mundo etéreo dos símbolos, introduzindo-o nos prazeres do amor carnal, primeiramente, em Sousse, com o rapaz Ali, e a seguir, em Biskra, com a jovem Mériem.

*  *  *

A tradução procurou preservar as idiossincrasias de sintaxe e de pontuação do original, que pode ser consultado ou baixado no endereço: <http://www.rafplus.com/livrepdf/712.pdf>.
A quem se interessar por uma contextualização e uma análise aprofundada do Tratado do Narciso, recomendo a leitura de In memory of Narcissus: aspects of the late-modern subject in the Narcissus theme (1890–1930), de Niclas Johansson, disponível no endereço:
<http://uu.diva-portal.org/smash/get/diva2:614608/FULLTEXT01.pdf>.
Gostaria, por último, de agradecer a paciente e cuidadosa revisão de Fabiano Costa Camilo.

André Vallias,
Rio de Janeiro, julho de 2013.


 

O Tratado do Narciso
(Teoria do Símbolo)
por André Gide

a Paul Valéry

Nuper me in littore vidi.
Virgílio

 

Os livros talvez não sejam uma coisa muito necessária; no início, alguns mitos bastavam; neles, uma religião inteira cabia. O povo se maravilhava com a aparência das fábulas e, sem compreender, adorava; os sacerdotes, atentos, debruçados sobre a profundeza das imagens, penetravam lentamente o sentido íntimo do hieróglifo. Depois se quis explicar; os livros amplificaram os mitos; — mas alguns mitos bastam.

Assim o mito de Narciso: Narciso era perfeitamente belo, — e por isso era casto; desdenhava as ninfas — porque estava enamorado de si mesmo. Nenhum sopro perturbava a nascente, onde, tranquilo e debruçado, contemplava, todos os dias, a própria imagem... — Sabeis a história. Entretanto, a diremos de novo. Todas as coisas já estão ditas; mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre.


Não há mais margem nem nascente; nem metamorfose, nem flor à vista; — nada além do solitário Narciso, portanto, somente um Narciso sonhador isolando-se na névoa. Na monotonia inútil da hora, ele se inquieta e seu coração incerto se interroga. Ele quer conhecer, enfim, que forma tem a sua alma; ela deve ser, ele sente, excessivamente adorável, a julgar por seus longos frêmitos; mas seu rosto! sua imagem! Ah! não saber se nos amamos... não conhecer a própria beleza! Eu me confundo nesta paisagem sem linhas que não contraria seus planos. Ah! não poder se ver! Um espelho! um espelho! um espelho! um espelho!

E Narciso, que não duvida que sua forma esteja em algum lugar, se levanta e parte à procura dos contornos desejados, para envolver, enfim, a sua grande alma.

À margem do rio do tempo, Narciso parou. Fatal e ilusório rio, onde os anos passam e escoam. Bordas simples, como uma moldura bruta, onde se recolhe a água, como um espelho sem aço; onde nada se veria atrás; onde, atrás, se espalharia o tédio vazio. Um morno, um letárgico canal, um espelho quase horizontal; e nada distinguiria do ambiente incolor esta água fosca, se não se percebesse que ela escoa.

De longe, Narciso achou que o rio fosse um caminho, e, como se entediava, completamente só em todo aquele cinza, se aproximou para ver as coisas passarem. Com as mãos sobre a moldura, agora ele se debruça, na sua pose costumeira. E eis que, por estar olhando, de súbito, na água, uma fina aparência se colore. — Flores fluviais, troncos de árvores, fragmentos de céu azul refletidos, toda uma fuga de rápidas imagens, que só esperavam por ele para serem, e que se colorem sob o seu olhar. Depois, colinas se abrem e florestas se escalonam ao longo das encostas dos vales, — visões que, conforme o curso das águas, ondulam, e que as ondas espalham. Narciso olha maravilhado; — mas não compreende direito, visto que uma e outra se movem, se a sua alma guia a onda, ou se a onda a guia.

Onde Narciso olha é o presente. Do mais distante futuro, as coisas, ainda virtuais, vão de encontro ao ser; Narciso as vê, depois elas passam; escoam no passado. Narciso logo descobre que são sempre as mesmas. Ele interroga; depois medita. Sempre as mesmas formas passam; só o impulso das ondas as diferencia.

— Por que várias? ou melhor, por que as mesmas?

— Porque são imperfeitas, uma vez que sempre recomeçam... e todas, ele pensa, se esforçam e se lançam em direção a uma forma primeira, perdida, paradisíaca e cristalina.


Narciso sonha com o Paraíso.

 

I

O Paraíso não era grande; perfeita, cada forma desabrochava somente uma vez; um jardim as continha todas. — Se ele era, ou se ele não era, o que nos importa? mas assim ele era, caso fosse. Tudo se cristalizava ali numa floração necessária, e tudo era perfeitamente assim como deveria ser. — Tudo permanecia imóvel, porque nada desejava ser melhor. Só a calma gravitação operava lentamente a revolução do conjunto.


E como nenhum elã cessa, no Passado nem no Futuro, o Paraíso não se tornou, — ele simplesmente era, desde sempre.

Casto Éden! Jardim das Ideias! onde as formas, rítmicas e certas, revelavam sem esforço o seu número; onde cada coisa era o que parecia; onde provar era inútil.

Éden! onde as brisas melodiosas ondulavam em curvas previstas; onde o céu ostentava o azul sobre a relva simétrica; onde os pássaros eram da cor do tempo e as borboletas, por sobre as flores, faziam harmonias providenciais; onde a rosa era rosa porque verde era o besouro que nela vinha pousar. Tudo era perfeito como um número, e se escandia normalmente; um acorde emanava da relação das linhas; sobre o jardim pairava uma constante sinfonia.

No centro do Éden, Yggdrasil, a árvore logarítmica, mergulhava no solo as suas raízes de vida, e desfilava, por sobre a relva ao redor, a sombra espessa de sua folhagem, onde a Noite solitária se dispersava. Na sombra, contra o seu tronco, apoiava-se o livro do Mistério — onde se lia a verdade que se deve conhecer. E o vento, soprando nas folhas da árvore, soletrava, ao longo do dia, os hieróglifos necessários.

Adão, religioso, escutava. Único, insexuado ainda, ele permanecia sentado à sombra da grande árvore. O homem! Hipóstase de Eloim, cúmplice da Divindade! por ele, para ele, as formas aparecem. Imóvel e central em meio a toda essa fantasia, ele vê que ela se desenrola.

Contudo, espectador forçado, para sempre, de um mesmo espetáculo onde ele não tem outro papel a não ser o de sempre olhar, ele se larga. — Tudo acontece para ele, ele o sabe, — mas ele mesmo... — mas ele mesmo não se vê. O que lhe importa todo o resto? ah! se ver! — Ele é sem dúvida poderoso, uma vez que cria e o mundo inteiro se suspende depois do seu olhar, — mas o que ele sabe do seu poder se este permanece não afirmado? — À força de contemplá-las, ele não mais se distingue dessas coisas: não saber onde parar — não saber até onde ir! Pois é uma escravidão, afinal, se não se ousa arriscar um gesto sem que se quebre toda a harmonia. — E depois, tanto faz! esta harmonia me aborrece, e o seu acorde sempre perfeito. Um gesto! um pequeno gesto, para saber, — uma dissonância, diabos! — Arre! vá lá! um pouco de imprevisto.

Ah! agarrar! agarrar um ramo de Yggdrasil entre seus dedos enfatuados, e quebrá-lo...


É feito.

… Primeiro uma fissura imperceptível, um grito, mas que germina, se estende, se exaspera, silvo estridente, e logo geme em tempestade. A árvore Yggdrasil murcha, balança e estala; suas folhas, onde as brisas brincavam, arrepiantes e contorcidas, revulsam na borrasca que se ergue e as leva para longe, — rumo ao desconhecido de um céu noturno e para regiões arriscadas, para onde foge também a dispersão das páginas arrancadas do grande livro sagrado que se desfolha.

Rumo ao céu, sobe um vapor, lágrimas, nuvens que recaem em lágrimas e que sobem de novo em nuvens: o tempo nasceu.

E o homem estarrecido, andrógino que se divide, chorou de angústia e horror, sentindo, com um sexo novo, brotar em si o inquieto desejo por essa metade de si, quase igual, essa mulher surgida de relance, ali, que o abraça, com a qual desejaria se recompor, — essa mulher que, no cego esforço de recriar por meio de si o ser perfeito e deter ali essa estirpe, fará agitar-se em seu âmago o desconhecido de uma nova raça, e logo arrojará, no tempo, um outro ser, incompleto ainda e que não se bastará.

Triste raça, dispersar-te-ás sobre esta terra de crepúsculos e rezas! A lembrança do Paraíso perdido irá desolar os teus êxtases, do Paraíso que buscas em todo lugar — do qual te falarão os profetas — e os poetas, que, sim, recolherão piedosamente as folhas rasgadas do Livro imemorial, onde se lia a verdade que se deve conhecer.

 

II

Se Narciso se virasse, veria, eu penso, alguma relva verde, o céu talvez, a Árvore, a Flor — alguma coisa estável, enfim, e que durasse, mas cujo reflexo, caindo sobre a água, se partiria, e que a fugacidade das ondas faria variar.

Quando essa água cessará a sua fuga? e enfim resignada, espelho estagnante, dirá, em sua pureza semelhante à imagem, — semelhante enfim, até se confundir com elas — as linhas dessas formas fatais, — até transformar-se nelas, enfim.

Quando, afinal, o tempo, cessando a sua fuga, deixará que esse fluxo descanse? Formas, formas divinas e perenes! que só esperam o repouso para reaparecer, oh! quando, em que noite, em que silêncio, recristalizar-vos-eis?

O Paraíso está sempre a se refazer; ele não está, em absoluto, numa longínqua Thule qualquer. Permanece sob a aparência. Cada coisa detém, virtual, a íntima harmonia de seu ser, assim como cada sal, em si, o arquétipo do cristal; — e virá um tempo de noite tácita, para onde as águas mais densas descem: nos abismos imperturbados hão de florir as tremonhas secretas...

Tudo se esforça rumo à sua forma perdida; ela transparece, não obstante suja, deformada, e não se satisfazendo, pois sempre recomeça; acossada, incomodada pelas formas vizinhas que se esforçam também, cada uma, para aparecer, — pois somente ser não basta mais: é preciso se provar, — e o orgulho enfatua cada uma delas. A hora, que passa, tudo transtorna.

Como o tempo só escapa pela fuga das coisas, cada coisa se agarra e se encrespa para retardar um pouco esse curso e poder melhor aparecer. Há épocas, então, onde as coisas se fazem mais lentas, onde o tempo repousa, — acredita-se; — e como cessa o rumor com o movimento — tudo se cala. Espera-se; compreende-se que o instante é trágico e que é preciso não se mover .

“Fez-se, no céu, um silêncio”; prelúdio de apocalipses. — Sim, trágicas, épocas trágicas, onde começam novas eras, onde céu e terra se recolhem, onde o livro dos sete selos vai se abrir, onde tudo vai se fixar numa postura eterna... mas surge um clamor importuno; sobre os planaltos eleitos onde se acredita que o tempo vai se acabar, — sempre alguns soldados ávidos que partilham entre si as vestes, e que disputam nos dados a túnica, — assim que o êxtase imobiliza as mulheres santas, e que o véu que se rasga vai livrar os segredos do templo; quando toda a criação contempla enfim o Cristo que enrijece na cruz suprema, dizendo as últimas palavras: “Tudo está consumado...”

… Mas não! tudo está por se refazer, por se refazer eternamente — porque um jogador de dados não conteve o seu gesto vão, porque um soldado quis ganhar uma túnica, porque alguém não olhava.
Porque a falta é sempre a mesma e sempre reperde o Paraíso: o indivíduo que sonha consigo mesmo enquanto a Paixão se ordena e, comparsa soberbo, não se subordina.[1]

Inesgotáveis missas, a cada dia, para recolocar o Cristo em agonia, e o público em posição de oração... um público! — quando se precisaria prosternar a humanidade inteira: — e eis que uma missa bastaria.
Se soubéssemos estar atentos e olhar...

 

III

O Poeta é aquele que olha. E o que ele vê? — O Paraíso.

Pois o Paraíso está em toda parte; não creiamos nas aparências. As aparências são imperfeitas: balbuciam as verdades que contêm; o Poeta, por meias palavras, deve compreender, — depois redizer essas verdades. O Sábio não faz o mesmo? Ele investiga também o arquétipo das coisas e as leis de sua sucessão; recompõe um mundo por fim, idealmente simples, onde tudo se ordena normalmente.

Mas essas formas primeiras, o Sábio as investiga por uma indução lenta e temerosa, através de inúmeros exemplos: pois se atém às aparências e, desejando certezas, se proíbe adivinhar.

O Poeta, ele, que se sabe criador, adivinha através de cada coisa — e uma só lhe basta, símbolo, para revelar seu arquétipo; ele sabe que a aparência não passa de um pretexto, uma veste que a oculta e à qual se atém o olho profano, mas que nos mostra que Ela está ali.[2]

O Poeta piedoso contempla; ele se debruça sobre os símbolos e, silencioso, desce fundo ao coração das coisas, — e quando percebe, visionário, a Ideia, o Número íntimo e harmonioso de seu Ser, que sustenta a forma imperfeita, ele a retém, depois, despreocupado com essa forma transitória que a revestia no tempo, sabe dar-lhe, de novo, uma forma eterna, sua Forma, enfim, verdadeira e fatal, — paradisíaca e cristalina.

Porque a obra de arte é um cristal — paraíso parcial, onde a Ideia reflora em sua pureza superior; onde, assim como no Éden desaparecido, a ordem normal e necessária dispôs todas as formas em uma dependência recíproca e simétrica, onde o orgulho da palavra não suplanta o Pensamento, — onde as frases rítmicas e certas, símbolos ainda, mas símbolos puros, onde as palavras se fazem transparentes e reveladoras.

Tais obras somente se cristalizam no silêncio; mas, às vezes, ele é o silêncio no meio da multidão, onde o artista refugiado, como Moisés sobre o Sinai, se isola, foge das coisas, do tempo, se envolve de uma atmosfera de luz, acima da turba atarefada. Nele, lentamente, a Ideia repousa, depois, lúcida desabrocha para fora das horas. E, como ela não está no tempo, o tempo nada poderá sobre ela. Dizemos mais: perguntamos se o Paraíso, ele próprio fora do tempo, não estaria, talvez, somente ali, — ou seja, idealmente...


Narciso, entretanto, contempla, da margem, esta visão que um desejo amoroso transfigura; ele sonha. Narciso solitário e pueril se apaixona por sua frágil imagem; ele se debruça, com uma ânsia de carícias, para estancar sua sede de amor, por sobre o regato. Ele se debruça e, de repente, eis que essa fantasmagoria desaparece; sobre o regato, ele não vê nada mais do que dois lábios diante dos seus, que se retesam, dois olhos, os seus, que o veem. Compreende que é ele, — que está só — e que está se apaixonando por seu rosto. Ao redor, um azul vazio, que seus pálidos braços, retesados pelo desejo, dilaceram através da aparência partida, afundando num elemento desconhecido.

Então ele se levanta um pouco; o rosto se afasta. A superfície da água, de imediato, se matiza e a visão reaparece. Mas Narciso diz a si mesmo que o beijo é impossível, — não há por que desejar uma imagem; um gesto, para possuí-la, a destrói. Ele está só. — O que fazer? Contemplar.

Grave e religioso, retoma sua calma atitude: ele permanece — símbolo que cresce — e, debruçado sobre a aparência do Mundo, sente vagamente em si, reabsorvidas, as gerações humanas que passam.


Este tratado talvez não seja alguma coisa muito necessária. Primeiro, alguns mitos bastam. Depois se quis explicar; orgulho de sacerdote que quer revelar os mistérios, a fim de se fazer adorar, — ou muito vívida simpatia, e este amor apostólico que faz que se desvelem e que se profanem, ao mostrá-los, os mais sagrados tesouros do templo, porque sofremos por admirar sozinhos e desejaríamos que os outros adorassem .

………………………….

[1] As verdades permanecem atrás das formas — Símbolos. Todo fenômeno é o Símbolo de uma Verdade. Seu único dever é manifestá-la. Seu único pecado: preferir-se.
Vivemos para manifestar. As regras da moral e da estética são as mesmas: toda obra que não manifeste é inútil e, por isso mesmo, má. Todo homem que não manifeste é inútil e mau. (Elevando-se um pouco, ver-se-á que todos manifestam — mas somente depois se deve reconhecer.)
Todo representante da Ideia tende a preferir-se à Ideia que ele manifesta. Preferir-se — eis aí a falta. O artista, o sábio, não deve preferir-se à Verdade que ele quer dizer: eis toda a sua moral; nem a palavra, nem a frase, à Ideia que querem mostrar: eu quase diria que nisso reside toda a estética.
E não pretendo que essa teoria seja nova; as doutrinas da renúncia não pregam outra coisa.
A questão moral, para o artista, não é que a Ideia, que ele manifesta, seja mais ou menos moral e útil a um grande número; a questão é que ele a manifeste bem. — Pois tudo deve ser manifestado, mesmo as coisas mais funestas: “Ai daquele pelo qual o escândalo vem”, mas “É preciso que o escândalo venha”. — O artista e o homem verdadeiramente homem, que vive por alguma coisa, deve ter feito antes o sacrifício de si mesmo. Toda a sua vida nada mais é do que um encaminhamento para isso.
E agora, o que manifestar? — Isso se aprende no silêncio.
(Esta nota foi escrita em 1890, ao mesmo tempo que o tratado.)

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[2] Compreende-se que eu chamo de símbolo — tudo o que parece?
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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.