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O ser-aí mítico

Tradução da resenha crítica de Martin Heidegger
sobre A filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer

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Apresentação

O primeiro passo filosófico na compreensão do problema do ser consiste em não mŷthón tina diegeîsthai, não “contar histórias”, isto é, não determinar o ente como ente, em sua proveniência, por recurso a um outro ente, como se o ser tivesse o caráter de um possível ente.[1]

As possibilidades de vida ou os modos de existência não podem inventar-se senão sobre um plano de imanência que desenvolve a potência de personagens conceituais. O rosto e o corpo dos filósofos abrigam esses personagens que lhes dão freqüentemente um ar estranho, sobretudo no olhar, como se algum outro visse através de seus olhos.[2]

O texto que ora se traduz consiste em uma resenha crítica elaborada por Martin Heidegger sobre a Segunda Parte, “O pensamento mítico”, do livro A filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer.[3] A resenha veio a público originalmente na Deutsche Literaturzeitung de Berlim, em 1928.[4] Sem jamais ter sido publicado de novo, o texto foi incluído por Friedrich-Wilhem von Herrmann no volume 3 da Gesamtausgabe, editado em 1990 e que tem por conteúdo principal o livro Kant e o problema da metafísica (1929), o “Kantbuch” de Heidegger.[5] A resenha figura como Apêndice II desse volume (que inclui também, como Apêndice IV, a transcrição da célebre “Disputa de Davos” entre Heidegger e Cassirer, ocorrida em 1929).

A presente tradução está baseada inteiramente na segunda edição da resenha, pertencente ao quadro das obras reunidas de Heidegger.[6] No “Posfácio do editor”, Herrmann informa que, para a reedição da resenha, o impresso original foi cotejado com o manuscrito disponível no espólio do autor (“uma cuidadosa cópia a limpo”); registra também que “um exemplar em separata está incrustado [gehört zu den Einlagen] no exemplar de trabalho [Handexemplar] do Kantbuch” (p. 314-315).

Notavelmente, esse segundo fato indica o lugar da discussão com Cassirer no itinerário de Heidegger: ela pertence ao projeto filosófico da “ontologia fundamental”, lançado em Ser e tempo (1927) e desenvolvido em escritos e preleções imediatamente anteriores e posteriores, como é o caso do Kantbuch (onde a antropologia filosófica kantiana é retomada positivamente nos termos da analítica existencial). Além de constituir um dos documentos mais importantes do debate entre Heidegger e Cassirer, a resenha interessa especialmente devido ao emprego da noção de “ser-aí mítico” (das mythische Dasein), na qual se mesclam os conceitos centrais de “consciência mítica” (A filosofia das formas simbólicas) e de “ser-aí” (Ser e tempo).

Interpretando por via indireta “categorias fundamentais” do pensamento mítico – exemplarmente, a “representação-mana” – bem como conceitos da antropologia e da etnologia – por exemplo, as de magia e sacrifício –, Heidegger reconhece no “mundo mítico” uma “possibilidade do ser-aí humano” (p. 265) e uma forma da “compreensão de ser” (p. 267). É esboçada uma tentativa de situar o mana, entendido como “sobrepujança mágica” do ente em geral, na constituição ontológica do ser-aí, o que se faz por alusão à facticidade da existência: nesse sentido, afirma-se que o ser-aí mítico é tomado pelo ente ao qual está confiado faticamente (p. 267), ente que ele mesmo não é. Trata-se, em suma, do ser-aí humano, a “condição ôntico-ontológica da possibilidade de todas as ontologias”[7], enquanto determinado ontologicamente por outrem – determinação que, sob a perspectiva da ontologia fundamental, aparece como essencialmente “imprópria”, uma vez que o ser-aí só existiria propriamente “em vista de si mesmo”.[8] Somente desvinculado do “poder exclusivo das forças mágicas”, comenta Heidegger, “descobre-se o livre poder do ser-aí” (p. 263).

Quanto à avaliação crítica da obra cassireriana, Heidegger questiona, por um lado, o apelo ao kantismo na interpretação do mito como “forma funcional autônoma do espírito” (p. 264), mas, por outro, faz o seu elogio contra as “tentativas naturalistas, totemísticas, animísticas e sociológicas de explicação” (p. 263), que recusariam ao espírito humano a possibilidade de autodeterminação ontológica. Como se Cassirer tivesse dado um passo importante na direção de uma “interpretação essencial do mito”, tendo-lhe faltado, contudo, uma conceituação adequada do “ser” do espírito humano, isto é, uma “ontologia radical do ser-aí à luz do problema do ser em geral” (p. 265-266). Supostamente, uma tal conceituação estaria ausente da teoria antropológica e, sobretudo, do próprio pensamento mítico: “Todavia, no ser-aí mítico, o mana não é concebido como modo de ser, e sim representado no modo mesmo do mana, ou seja, como um ente” (p. 268-269).

Apesar de ser assim interpretado como modo impróprio ou mesmo deficiente da compreensão de ser, o ser-aí mítico surge com insistência no discurso de Heidegger, em particular ao longo do período de exposição e consumação da ontologia fundamental. De 1925 a 1930, o ser-aí mítico/primitivo é referido, direta ou indiretamente, em todas as preleções ministradas por Heidegger em Marburg e em Freiburg[9], além de em Ser e tempo (cf. §§ 11, 17 e 80) e na resenha sobre Cassirer. De forma resumida, passa-se, ao longo desse período, da caracterização do “ser-aí primitivo” como um conjunto limitado de fenômenos e um tipo humano entre outros, discernível apenas onticamente (1925-27)[10], à concessão de uma posição de destaque ao mesmo, preferencialmente designado como mítico: ele realizaria “uma possibilidade fundamental do ser-no-mundo” (1928-30).[11] Por sua vez, situada no meio desse caminho, a resenha de 1928 faz a passagem entre os extremos, ao dar ao problema do mito uma formulação genuinamente ontológica (da qual, aliás, ele carece em Ser e tempo): “de que modo o mito em geral pertence ao ser-aí enquanto tal? Em que medida ele é um fenômeno essencial no âmbito de uma interpretação universal do ser em geral e de suas modificações?” (p. 269). Essa mesma questão é retomada e desenvolvida especialmente na preleção Introdução à filosofia (1928-29), que incorpora boa parte da resenha sobre Cassirer, aprofundando o conteúdo desta para situar o mito na gênese existencial da própria filosofia.

Todavia, mesmo aí onde ocorre esse destacamento ontológico do ser-aí mítico, a filosofia acaba por sobrepor-se decisivamente. Se, com o mito, o ser-aí humano se coloca a si mesmo sob o poder de outrem não-humano, com a filosofia, enquanto “transcendência expressa”, sucede necessariamente uma reversão do mundo mítico, no sentido da “liberação [Befreiung] do ser-aí”[12] para a sua própria (e exclusiva) humanidade: “Enquanto o ser-aí mítico determina a existência do homem somente ainda na fraca lembrança e restauração da postura [perante si próprio], porém não expressamente, a vida do homem só vale na medida em que, a cada vez, ele procura em si o ser-aí”;[13] pois, assim, “o poder-ser-si-mesmo se torna essencial e, com isso, o ente mesmo, o homem, que é no modo do ser-aí, se desloca para o centro”.[14]

Por contraste, poder-se-ia dizer que, incrustado à margem de Ser e tempo, o ser-aí mítico atua como “personagem conceitual” da ontologia de Heidegger, “como se algum outro visse através de seus olhos”... Embora criado para designar um traço constitutivo do discurso filosófico, esse conceito,[15] se considerado por relação à interpretação ontológico-existencial do mundo mítico, revela ele mesmo, nos termos da resenha sobre Cassirer, um caráter rigorosamente “mágico”:


Justamente na unidade da eficácia mágica, as forças anímicas singulares, as “almas”, podem ocorrer cindidas e coabitar umas com as outras. De forma correspondente, também o “desenvolvimento” do ser-aí singular é dividido [verteilt] em vários sujeitos, entre os quais determinadas transições têm lugar (p. 262).



Evidentemente, Heidegger refere-se aqui ao ser-aí mítico, a quem “a 'própria' alma faz face como um poder 'estranho'” (idem). Logo, falar deste último como seu personagem conceitual equivaleria, em última instância, a reconhecer a própria ontologia fundamental como fundada em uma espécie de mito: por assim dizer, o anti-mŷthos do “isolamento metafísico do homem” (die metaphysische Isolierung des Menschen).[16] Instaurando o abismo entre humanidade e não-humanidade, é ele que estabelece igualmente a “'arquidivisão'” (,,Urteilung“; p. 257) entre a historicidade e a primitividade humanas:


Se quisermos desenvolver hoje o problema da filosofia em seu todo, nós devemos pensar historicamente, pois não escapamos mais à historicidade [Geschichtlichkeit]. Não podemos mais retornar ao ser-aí mítico, e pode-se mesmo dizer: o pecado original aconteceu [ist geschehen], e, se o problema é autêntico, ele só pode então ser desenvolvido a partir da alvura [Helligkeit] do ser-aí histórico [geschichtlichen Daseins].[17]


Com efeito, por existir centrifugamente em vista de outrem, a bem dizer, “contra a História”[18], o ser-aí mítico personifica, inclusive nominalmente, o que, na filosofia de Heidegger, se supõe como um modo de existência, no limite, impossível – aquele no qual, longe de permanecer encoberto, o “livre poder do ser-aí” (p. 263) seria “venerado em sua impotência”.[19]


Marco Antonio Valentim


 

Texto

[255] II.
Ernst Cassirer:
Filosofia das formas simbólicas
Segunda parte: O pensamento mítico. Berlim, 1925

Martin Heidegger


O presente segundo volume da obra principal de Cassirer é dedicado à memória de Paul Natorp. O título “O pensamento mítico” poderia induzir erroneamente a querer-se encontrar o tema predominante da investigação em uma separação do ato de pensamento [Denkhandlung] mítico em relação ao puramente lógico. Em vez disso, a inconstância [Unselbstständigkeit] do “pensamento” mítico como “ato do entendimento” deve desde logo ser posta diante dos olhos mediante a prova de que se funda, junto com uma correspondente “forma de intuição”, em uma “forma de vida” específica. “Pensar” designa aqui algo como “meditar e buscar” [,,Sinnen und Trachten“], o que, porém, tem a sua própria “forma de pensamento” (modo de interpretar e determinar). A intenção da investigação dirige-se, portanto, a uma revelação do “mito” como possibilidade independente [eigenständigen] do ser-aí humano [menschlichen Daseins] que chega à sua própria verdade. Posicionada assim a questão, Cassirer assume expressamente a intuição [Einsicht] de Schelling, “isto é, tudo nela (a ‘mitologia’) deve ser entendido como ela o enuncia, não como se alguma outra coisa fosse pensada e dita”.[20] O mito, “o destino de um povo” (Schelling), é um “processo objetivo” a que o ser-aí mesmo permanece submetido e de que pode se libertar, embora nunca de modo a expulsá-lo de si. Se Cassirer mantém a intuição fundamental de Schelling, não vendo no mito “nenhuma quebra do espírito” nem uma mera aparência, mas uma “força formativa” própria, ele compreende, porém, a tarefa de uma filosofia do mito em sentido contrário à metafísica especulativa schellinguiana. É que uma “explicação” empírico-psicológica do mito claramente jamais seria capaz [256] de alcançar um entendimento filosófico. Por isso, Cassirer ensaia uma “fenomenologia da consciência mítica”, mantendo a “objetividade” do mito e recusando a interpretação psicológica. Essa fenomenologia dá-se como uma ampliação da problemática transcendental no sentido neokantiano: trata-se de conceber a unidade da “cultura”, não somente a da “natureza”, como uma legalidade do espírito. A “objetividade” do mito reside em sua “subjetividade” corretamente entendida; o mito é um “princípio criador”, espiritual e próprio, “da formação de mundo [Weltgestaltung]” (p. 19).

De acordo com essa abordagem caracterizada na introdução (p. 1-36), Cassirer oferece uma interpretação do mito como “forma de pensamento” (1a. seção, p. 39-91), como “forma de intuição” (2a. seção, p. 95-188), como “forma de vida” (3a. seção, p. 191-285) e conclui o todo com uma caracterização da “dialética da consciência mítica” (4a. seção, p. 289-320).

A análise da forma mítica de pensamento começa com uma caracterização do modo como os objetos se acham contrapostos à consciência mítica [mythischen Bewuβtsein]. A consciência objetiva da física matemática segundo a concepção da interpretação coheniana de Kant serve de fio-condutor para essa caracterização: o formar ativo de um “caos de sensações” dado passivamente em um “cosmos”. Um traço fundamental da consciência objetiva mítica reside em que falta uma fronteira definida entre o sonhado e o experimentado em vigília, entre o simplesmente imaginado e o percebido, entre a imagem e a coisa [Sache] reproduzida, entre a palavra (significado) e a coisa [Ding], entre a posse apenas desejada e a posse real, entre o vivo e o morto. Tudo permanece em um plano de ser indiferente, plano do presente imediato, pelo qual o ser-aí mítico é tomado [benommen]. Essa consciência objetiva tem a sua pretensão peculiar e suficiente à “explicação” e ao “entendimento”. A copresença [Mitanwesenheit] de algo com algo outro “dá” a explicação: as andorinhas fazem o verão. Esse trazer-junto-consigo [Mitsichbringen] tem o [257] caráter de uma pujança [Mächtigkeit] mágica (cf. abaixo). O que aí funciona como o que traz junto não é pura e simplesmente algo qualquer; isso se determina a partir do nexo fundamental condutor da experiência mítica. Embora esses “nexos de realidade” mágicos possam excetuar-se arbitrariamente, por exemplo, a uma consideração teorética da natureza, eles possuem, contudo, a sua própria verdade. O pensamento mítico não conhece a decomposição do real em séries causais. O entrelaçamento da realidade mágica manifesta-se claramente na concepção das relações entre todo e parte. A parte “é” o todo mesmo, isto é, possui a sua pujança mágica, não-diminuída. No todo das forças mágicas [magischen Kräften], cada “coisa” [,,Ding”] traz consigo o seu pertencimento a outras. No pensamento mítico vale “a lei da concrescência ou coincidência dos membros da relação” (p. 83).

Na segunda seção, Cassirer mostra a influência dessa forma de pensamento sobre a compreensão de espaço, tempo e número. Essa “doutrina mítica de formas” é precedida por um capítulo intitulado: “A oposição fundamental” (p. 95-106). A caracterização da consciência objetiva mítica já mostrava como o ser-aí mítico é apreendido, tomado e sobrecarregado [ergriffen, benommen und überwältigt]pelo presente. Presença [Anwesenheit]indica justamente sobrepujança [Übermächtigkeit]; nisso reside o caráter do extraordinário e incomparável frente ao cotidiano. Não se trata, porém, de um nihil negativum. Ele tem o seu caráter de ser, isto é, o do “comum”, justamente no horizonte de um sobrepujante incomum [eines übermächtigen Ungemeinen]. Essa “arquidivisão” [,,Urteilung“] entre o sagrado e o profano é a articulação fundamental do real em relação ao que o ser-aí mítico se “comporta”, seja qual for o ente segundo o seu conteúdo substantivo [Sachhaltigkeit]. Esse caráter de ser do “mundo” mítico e do ser-aí mítico mesmo é o sentido da representação-mana, ressaltada sempre mais claramente na pesquisa dos mitos das últimas décadas como uma ou mesmo como a categoria fundamental do “pensamento” mítico. O mana não designa um círculo determinado de objetos; [258] também não se deixa atribuir a certas forças “espirituais”. O mana é o caráter de ser mais universal, o “como” no qual o real se precipita sobre todo ser-aí humano. As expressões “mana”, “wakanda”, “orenda”, “manitu” são interjeições no precipitar-se imediato do ente opressor (p. 98 ss., 195 s., 228).[21]

No ser-tomado originário [ursprünglichen Benommenheit] pelo real no modo do mana [das manahaft Wirkliche], o ser-aí mítico realiza a articulação das dimensões em que o ser-aí enquanto tal sempre já se move: a interpretação e “determinação” de espaço, tempo e número. A modalização especificamente mítica dessas “representações” é caracterizada pelo autor em permanente contraste com a interpretação conceitual que esses fenômenos experimentaram no conhecimento físico-matemático moderno.

O “sentimento fundamental do sagrado” e a “arquidivisão” dada com ele prefiguram tanto a concepção geral do espaço quanto também a espécie das posições singulares de limite no interior dela. A articulação originária do espaço, na qual ele é principal e primeiramente revelado, distingue-se entre dois “domínios”: um “sagrado”, destacado, portanto resguardado, protegido, e um “comum”, acessível a cada vez por cada um. Mas o espaço nunca é dado antes “em si”, para que apenas então seja “significado” miticamente; pelo contrário, o ser-aí mítico descobre “o” espaço primeiro no modo designado. Assim, a orientação espacial mítica é conduzida em toda parte pela oposição entre o dia e a noite, a qual, por sua vez, se manifesta primariamente de forma mítica, impelindo todo ser-aí para dentro do seu feitiço na sobrepujança específica do mana. Na medida em que a espacialidade descoberta dessa forma codetermina em geral a possível residência do ser-aí, o espaço e a sua [259] articulação sempre fática podem tornar-se um esquema das múltiplas relações de ser-aí [Daseinsbezüge] (cf., por exemplo, a complicada classificação do círculo totêmico de intuição). Assim, o ser-aí mítico providencia para si uma orientação conjunta uniforme e facilmente dominável.

Ainda mais originariamente que o espaço, o tempo é constitutivo para o ser-aí mítico. Para a caracterização desses nexos, Cassirer toma por fundamento o conceito vulgar de tempo e compreende sob o caráter “temporal” do mito o “ser-no-tempo” [,,in-der-Zeit-sein“], por exemplo, dos deuses. A “sacralidade” do real mítico é determinada por sua proveniência. O passado [Vergangenheit] enquanto tal demonstra-se como o genuíno e último porquê de todo ente [Warum alles Seienden]. Na alternância das estações do ano, no ritmo das fases da vida e das idades, manifesta-se a sobrepujança do tempo. Os períodos singulares de tempo são “tempos sagrados”; o comportar-se em relação a eles, muito longe de um simples contar, é regulado por cultos e ritos determinados (por exemplo, ritos de iniciação). A ordem do tempo é, como ordem do destino, um poder cósmico [kosmische Macht] e assim revela, em sua legalidade, um caráter obrigatório que penetra todo o fazer do homem. A regulação pelo calendário e o laço ético estão ainda fundidos no poder do tempo. O comportamento fundamental mítico-religioso face ao tempo pode então acentuar uma direção temporal singular. As variações do sentimento sempre diverso do tempo e as concepções de tempo prefiguradas nisso perfazem “uma das diferenças mais profundas no caráter das religiões tomadas em separado”. Cassirer mostra (p. 150 ss.), em linhas gerais, as imagens do tempo típicas entre os hebreus, os persas e os indianos, na religião chinesa e na egípcia, e na filosofia grega.

Também os números e as relações numéricas são compreendidas no ser-aí mítico a partir do caráter fundamental de tudo o que é, ou seja, a partir da sobrepujança. Cada número tem a sua “fisionomia individual”, a sua própria força mágica. De acordo com o princípio da concrescência, o numericamente igual dá-se – embora possa ser diferenciado [260] quanto ao conteúdo substantivo – como uma única e mesma essência: “toda magia é, em grande parte, magia dos números” (p. 178). A determinidade numérica não consiste na ordenação em uma série, mas no pertencimento a um determinado domínio de poder do incomum. O número é a medianeira [die Mittlerin] que costura o todo da realidade mítica na unidade de uma ordem do mundo plena de poder. Por variadas que sejam as configurações possíveis das doutrinas míticas dos números, por mais diferenciada que seja a distinção mítica de números singulares (o três e o sete, por exemplo), deixam-se ostentar, contudo, certas prefigurações originárias para a sacralização de determinados números a partir do tipo fundamental da espacialidade e da temporalidade míticas de cada vez: a sacralização do número quatro, por exemplo, a partir das regiões celestes. Mais longe vai a sacralização do número sete, voltando-se sobre a sobrepujança do tempo manifesta nas fases da lua por meio da divisão em quatro do mês de vinte e oito dias, divisão que igualmente se oferece à intuição. Na distinção mítica do número três, ao contrário, resplandece ainda a relação pessoal originária entre pai, mãe e criança, assim como também, na linguagem, o dual e o trinal são referidos à relação entre Eu, Tu e Ele – relações originariamente pujantes [mächtige] cujo caráter numérico permanece ainda detido na eficácia mítica.

Tendo-se partido da análise do mundo objetivo mítico e do modo de sua descoberta e determinação, o mesmo questionamento é devotado à “realidade subjetiva” e ao seu descobrimento no mito. Cassirer começa essas colocações com uma incisiva crítica de princípio ao “animismo” que ainda domina, das mais variadas maneiras, os questionamentos da pesquisa etnológica. O mundo do ser-aí mítico não se deixa interpretar simplesmente a partir das representações dominantes de alma; pois o “sujeito” enquanto tal permanece desde logo encoberto. Na medida em que, porém, o ser-aí mítico é geralmente familiar a si mesmo, ele não é, por sua vez, [261] interpretado a partir de um mundo puramente concebido no modo das coisas. O ser-aí mítico compreende sujeito, objeto e a relação entre ambos no horizonte daquilo que se manifesta em geral como caráter do real, a partir do mana. Vale mostrar, pois, como o ser-aí mítico, que permanece, em seu “sentimento indeterminado da vida”, atado a todo ente, realiza uma “confrontação” própria entre mundo e Eu, enraizada em seu modo de ser específico, isto é, em seu “fazer”. O círculo de realidade primariamente descoberto e circunscrito no fazer torna manifesto, em seu reflexo peculiar sobre o fazer mesmo, este último juntamente com assuas diferentes “faculdades”. No horizonte da sobrepujança mágica, o próprio fazer é um atuar [Wirken] mágico. “A primeira força com a qual o homem se contrapõe às coisas como algo próprio e constante [als ein Eigenes und Selbstständiges] é a força do desejo” (p. 194). “A plenitude das imagens divinas que ele cria para si o conduz não somente através do círculo do ser e acontecer objetivos, mas, antes de tudo, através do círculo do seu próprio querer e realizar, e ilumina para si esse círculo desde dentro” (p. 251). O processo mais vasto do descobrimento da “subjetividade” e de seus comportamentos completa-se na passagem dos mitos de natureza aos mitos de cultura, até que finalmente, na manipulação do instrumento mais ou menos livre de magia [magiefreien], o contexto de ser das coisas se faz manifesto, a partir de si mesmo, como mais independente [eigenständiger]. Nisso, o homem liberta-se da prisão mágica das coisas e, na retirada do mundo, deixa-o vir ao encontro “objetivamente”.

Portanto, nem o sujeito se encontra na emergência e no retorno de puras coisas que lhe fariam face, nem tampouco é primariamente constitutiva, para o descobrimento da subjetividade, uma relação-eu-tu [Ich-Du-Verhältnis] ou qualquer forma de sociedade. O totemismo, injustamente proposto como fenômeno fundamental do ser-aí mítico, não se deixa explicar sociologicamente. Ao invés disso, toda divisão [Gliederung] social [262] e os indivíduos dados juntamente com ela, tanto quanto o totemismo mesmo, carecem de uma “fundamentação” a partir do modo de ser originário do ser-aí mítico e da representação-mana nele dominante. O autêntico problema do totemismo reside não apenas em que homem e animal ou mesmo planta entretêm certos laços, mas em que grupos particulares possuem, cada qual, o seu animal-totem [Totemtier] particular. Lavrador, pastor e caçador encontram-se confiados, cada qual de um modo próprio [in einer je eigenen Angewiesenheit], a plantas e animais – o que se manifesta imediatamente como parentesco [Verwandtschaft] mágico, mas ao mesmo tempo possibilita, em contrapartida, que o círculo vital humano em questão se explicite enquanto tal. O totemismo não é causado por determinadas espécies de planta e animal; antes, ele irrompe de relações de ser-aí elementares do homem com o seu mundo.

Apenas com fundamento na representação-mana deixa-se então também conceber como a consciência de si individual se forma e como o “conceito” de alma se articula. O que mais tarde é distinguido conceitualmente como corpo e alma, vida e morte, isso, na verdade, sempre já é real para o ser-aí mítico, porém no modo da pujança mágica. Segundo esta última, também o morto é, manifestando-se como uma força anímica, ainda que o homem em questão não se encontre encarnado. Justamente na unidade da eficácia mágica, as forças anímicas singulares, as “almas”, podem ocorrer cindidas e coabitar umas com as outras. De forma correspondente, também o “desenvolvimento” do ser-aí singular é dividido em vários sujeitos, entre os quais determinadas transições têm lugar. Ao ser-aí mítico, em seu ser-oprimido [Bedrängtheit] por poderes mágicos, faz face também a “própria” alma como um poder “estranho”. Também aí onde a representação de espíritos protetores desperta, o próprio si-mesmo [das eigene Selbst] é igualmente um poder que toma sobre si o Eu singular. Somente em níveis mais elevados o demônio [Dämon]mágico se torna daimonion e genius, de modo que, ao fim, o ser-aí seja determinado não por um poder estranho [263], mas a partir daquilo de que ele é capaz, livremente desde si e para si mesmo, como sujeito ético.

Se o caráter pujante e incomum do divino domina primária e inteiramente o ser-aí mítico, então o comportamento fundamental em relação à realidade nunca pode ser um mero intuir, mas sim um atuar que se forma como culto e rito. Toda narrativa mítica é sempre apenas um relato posterior dos atos sagrados. Nestes, pelo contrário, o ser-aí mítico se apresenta imediatamente. Quanto mais antigo é o culto, mais o sacrifício assume a posição central. O sacrifício é, sem dúvida, uma renúncia, mas ao mesmo tempo um ato que se consuma a si mesmo, no qual se prepara uma certa desvinculação [Entbindung] do poder exclusivo das forças mágicas. Com isso, porém, descobre-se o livre poder do ser-aí [die freie Macht des Daseins] e, ao mesmo tempo, a lacuna entre homem e deus se amplia para demandar, em um nível mais elevado, uma superação renovada.

Assim, o mito torna-se visível como uma força formativa unitária e autônoma. A conformação mítica mostra uma dialética interna em que formas antigas são desenvolvidas e transmutadas, mas não simplesmente repelidas. O “processo” mítico consuma-se no ser-aí mesmo sem reflexão. Tendo percorrido as suas possibilidades, esse processo amadurece contra a sua própria superação. Cassirer procura mostrar essa dialética nas diferentes posições que o mito assume para o seu próprio mundo de imagens (p. 290 ss.).

Esta breve resenha teve que prescindir até mesmo de apenas indicar o rico material etnológico e histórico-religioso que Cassirer toma como fundamento de sua interpretação do mito e que inclui nas análises singulares com o dom de exposição, a perspicácia e a habilidade que lhe são próprios. Nisso, a Biblioteca de Warburg em Hamburgo ofereceu ao autor uma ajuda incomum, tanto com seus acervos ricos e raros quanto especialmente com sua estrutura inteira (Prefácio, p. XIII s.). Dentre as análises dos fenômenos míticos [264] sejam especialmente mencionadas a da função do instrumento na descoberta do mundo objetivo (p. 261 ss.) e a do sacrifício (p. 273 ss.).


*          *          *


A tomada de posição frente à filosofia do mito que foi caracterizada deve respeitar três pontos. Em primeiro lugar, cabe perguntar: o que essa interpretação obtém para a fundamentação e a condução das ciências positivas do ser-aí mítico (etnologia e história da religião)? Em seguida, é preciso pôr à prova os fundamentos e os princípios metódicos em que repousa a análise filosófica da essência do mito. E, finalmente, levanta-se a questão de princípio acerca da função constitutiva do mito no ser-aí humano e na totalidade do ente em geral.

Na direção da primeira pergunta, a obra de Cassirer demonstra-se como uma realização plena de valor. Ela conduz a problemática da pesquisa científica dos mitos a um nível principal mais elevado mediante a comprovação, executada de várias maneiras, de que o mito jamais se deixa “explicar” por meio do recurso a determinados círculos objetivos dentro do mundo mítico. A crítica assim dirigida às tentativas naturalistas, totemísticas, animísticas e sociológicas de explicação é sempre inequívoca e contundente. Por sua vez, ela se funda na determinação conceitual prévia do mito como uma forma funcional autônoma [eigengesetzlichen Funktionsform] do espírito. Se essa concepção do mito se confirma na pesquisa empírica, então foi conquistado um fio-condutor seguro tanto para a recepção e interpretação de reservas recém-descobertas de fatos como também para a assimilação e exploração dos resultados obtidos até o momento.

Contudo, se julgarmos a presente interpretação do mito não somente com respeito a essa função de fio-condutor das ciências positivas mas também quanto ao seu teor filosófico próprio, então se levantam as seguintes questões: é adequadamente justificada a determinação prévia do mito como forma funcional da consciência formativa? Onde residem os fundamentos de uma tal justificação [265] claramente incontornável? Estão esses fundamentos mesmos suficientemente assegurados e elaborados? A justificação de Cassirer para a determinação prévia do mito como força formativa do espírito (“forma simbólica”), determinação que lhe serve de guia, é essencialmente uma apelação à “revolução copernicana” de Kant, segundo a qual toda “realidade” deve valer como quadro de configuração da consciência.

Antes de mais nada, pode-se duvidar com boas razões de que a interpretação de Cassirer e em geral a interpretação epistemológica neokantiana daquilo que Kant quer dizer com “revolução copernicana” atinjam o cerne da problemática transcendental em suas possibilidades essenciais, como uma problemática ontológica. Mas, pondo-se isso de lado: a crítica da razão pura se deixa “ampliar” a uma “crítica da cultura”? É tão seguro assim, ou não é questionável ao máximo, que já tenham sido explicitamente descobertos e justificados os fundamentos para a interpretação transcendental da “natureza” que seria a mais própria de Kant? E quanto à elaboração ontológica, de todo ineludível, da constituição e do modo de ser daquilo que, de maneira por demais indeterminada, é denominado ora “consciência”, ora “vida”, ora “espírito”, ora “razão”? Todavia, ainda antes de toda pergunta pelo possível apoio em Kant no sentido da “ampliação” de seu problema, vale sobretudo clarificar os requisitos principais desse mesmo problema que a abordagem do mito como uma forma funcional do “espírito” traz consigo. Somente a partir disso se poderá decidir se e como uma adoção dos questionamentos e esquemas kantianos é internamente possível e legítima.

A interpretação essencial do mito como uma possibilidade do ser-aí humano permanece acidental e sem direção enquanto não puder ser fundada em uma ontologia radical do ser-aí à luz do problema do ser em geral. Não é possível expor aqui os principais problemas que surgem disso. Por ora, pode ser suficiente tornar visíveis, através de uma crítica imanente da interpretação cassireriana do mito, alguns problemas capitais em sua incontornabilidade, a fim de [266] servir assim a uma agudização e clarificação filosóficas da tarefa proposta por Cassirer. Ele mesmo enfatiza (Prefácio, p. XIII) que a sua investigação quer “ser apenas um primeiro início”.

A orientação pela problemática neokantiana da consciência é tão pouco favorável que impede justamente que se finque o pé no centro do problema. Isso se mostra já pela disposição da obra. Ao invés de proceder à interpretação do ser-aí mítico mediante uma caracterização central da constituição de ser desse ente, Cassirer começa com uma análise da consciência objetiva mítica, de sua forma de intuição e de pensamento. Sem dúvida, Cassirer vê de maneira totalmente clara que a forma de intuição e de pensamento deve ser remontada à “forma de vida” mítica como a “camada espiritual originária” (p. 89 ss.). Mas a clarificação explícita e sistemática da origem da forma de intuição e de pensamento a partir da “forma de vida” não é, contudo, levada a cabo. O fato de que esses nexos de origem não sejam trazidos à luz, de que até mesmo o problema do entrelaçamento interno possível de forma de vida, forma de intuição e forma de pensamento não seja posto, é mostrado pela indeterminação do lugar sistemático da representação-mana, à qual Cassirer inevitavelmente retorna a propósito de todos os fenômenos míticos essenciais. A representação-mana não é tratada entre as formas de pensamento, nem demonstrada, por outro lado, como uma forma de intuição. Ela é exposta tematicamente, na passagem da forma do pensamento para a forma da intuição, sob o título “A oposição fundamental”, que exprime uma perplexidade, ao invés de apresentar uma determinação estrutural dessa “representação” a partir da estrutura total do ser-aí mítico em geral. Ao mesmo tempo, porém, a representação-mana é designada reiteradamente como “forma fundamental de pensamento”. Na verdade, a análise da representação-mana por Cassirer permanece importante frente às interpretações correntes na medida em que ele não apreende o mana como um ente entre outros entes, mas antes vê nele o “como” de todo real mítico, isto é, o ser desse ente. Mas então emerge nada menos que o problema central, na medida em que este pode ser colocado como questão: [267] essa “representação” fundamental está simplesmente disponível [vorhanden] no ser-aí mítico ou pertence à sua constituição ontológica, e, neste caso, como o quê? Na representação-mana não se manifesta nada outro que a compreensão de ser [Seinsverständnis] pertencente a cada ser-aí em geral, a qual se modifica, de forma específica, sempre de acordo com o modo fundamental de ser do ser-aí – aqui, portanto, do mítico –, iluminando de antemão o pensar e o intuir. Porém, essa percepção [Einsicht] leva forçosamente à pergunta: qual é o modo fundamental de ser da “vida” mítica, uma vez que precisamente a representação-mana funciona nela como a compreensão de ser condutora e iluminante? A possível resposta a essa pergunta pressupõe claramente uma prévia elaboração da constituição ontológica fundamental do ser-aí em geral. Se esta reside no “cuidado” [,,Sorge“] compreendido em sentido ontológico[22], mostra-se então que o ser-aí mítico é determinado primariamente pelo “estado-de-lançado” [,,Geworfenheit“]. Que e como uma articulação fundada se move desde o “estado-de-lançado” até a estrutura ontológica do ser-aí mítico, isto deixa-se aqui apenas indicar.

No “estado-de-lançado” reside um estar-entregue [Ausgeliefertsein] do ser-aí ao mundo, de modo que um tal ser-no-mundo é oprimido por aquilo a que se entrega. A sobrepujança só pode manifestar-se enquanto tal e em geral para um estar-entregue a.... Em tal estado-de-confiado [Angewiesenheit] ao sobrepujante, o ser-aí é tomado por ele, sendo capaz de experimentar-se somente como pertencente e unido por parentesco [verwandt] a esse real mesmo. No estar-lançado, portanto, todo ente descoberto, seja de que modo for, adquire o caráter de ser do sobrepujante (mana). Se a interpretação ontológica avança à “temporalidade” específica que fundamenta o estado-de-lançado, então se deixa compreender ontologicamente por que e como o real no modo do mana se manifesta sempre em uma específica “instantaneidade” [Augenblicklichkeit]. No estado-de-lançado reside um ser-abalado próprio [ein eigenes Umgetriebenwerden] que [268], a partir de si, está aberto para o extraordinário que surpreende sempre a cada vez. É, pois, tomando-se como fio-condutor a representação-mana que devem ser “deduzidas” as “categorias” específicas do pensamento mítico.

Um outro grupo de fenômenos indissociável dos anteriores oferece-se a partir da pergunta pelo comportamento fundamental e pelo comportar-se para consigo mesmo [Zusichselbstverhalten] do ser-aí mítico. Segundo Cassirer, a “força primeira” (sobrepujança), na qual se revela ao ser-aí mítico o seu próprio ser, é a força do desejo (p. 194). Mas por que o desejo é a força primeira? Cabe também tornar visível o enraizamento desse desejar no estado-de-lançado e demonstrar como o (mero) desejo pode, com base em uma peculiar não-negligência de suas múltiplas possibilidades, ter a força desse efetuar. Apenas enquanto o desejar mesmo é compreendido de antemão no modo do mana [mana-haft], pode ele manifestar-se como tal “efeito”. Se, porém, o desejar deve constituir a “confrontação” entre mundo e Eu, resta observar que tais comportamentos do ser-aí mítico são sempre apenas modos segundo os quais se descobre, sem jamais ser produzida, a transcendência do ser-aí para o seu mundo. A “confrontação” tem fundamento na transcendência do ser-aí. E somente por isso é que o ser-aí mítico pode se identificar com os “objetos”, porque se comporta em relação ao seu mundo como ser-no-mundo. Mas de que maneira essa transcendência corretamente entendida pode pertencer ao ser-aí, isso precisa ser mostrado. Partir de um caos de “sensações” que “ganham forma” não só não basta para o problema filosófico da transcendência, mas antes já encobre o fenômeno originário da transcendência como condição de possibilidade para toda e qualquer “passividade”. Por isso, uma confusão de princípio atinge o discurso de Cassirer sobre as “impressões”: trata-se ora da afecção puramente sensorial, ora, porém, do ser-tomado pelo real mesmo compreendido no modo do mana. Todavia, no próprio ser-aí mítico, o mana [269] não é concebido [begriffen] como modo de ser, e sim representado no modo mesmo do mana, ou seja, como um ente. Por essa razão, também as interpretações ônticas do mana não são de todo inadequadas.

A propósito da caracterização da força formativa do mito, Cassirer fala com frequência da fantasia mítica. Mas essa faculdade fundamental permanece inteiramente inexplicada. É ela uma forma do pensamento ou uma forma da intuição? Ou ambas as coisas? Ou ainda, nenhuma delas? Já aqui uma orientação dirigida ao fenômeno da imaginação transcendental e de sua função ontológica no interior da Crítica da razão pura e da Crítica da faculdade do juízo, orientação, contudo, distante do neokantismo, teria podido no mínimo tornar claro que uma interpretação da compreensão mítica de ser é muito mais complicada e abissal do que se depreende segundo a exposição de Cassirer.

Finalmente, seja indicada ainda a máxima metódica que Cassirer toma como fio-condutor de sua tentativa de interpretar os fenômenos do ser-aí: “A regra fundamental que domina todos os desenvolvimentos do espírito é a seguinte: o espírito obtém a sua interioridade verdadeira e completa somente em sua exteriorização” (p. 242, cf. p. 193, 229, 246, 267). Carece-se também aqui de justificação para a vigência dessa regra,bem como de resposta à seguinte questão de princípio: qual é a constituição de ser do ser-aí humano em geral para que somente no desvio através do mundo ele chegue ao seu próprio si-mesmo? O que quer dizer ipseidade e constância [Selbstheit und Selbstständigkeit]?

Porém, mesmo com tudo isso, o problema filosófico fundamental do mito não é ainda alcançado: de que modo o mito em geral pertence ao ser-aí enquanto tal? Em que medida ele é um fenômeno essencial no âmbito de uma interpretação universal do ser em geral e de suas modificações? Se uma “filosofia das formas simbólicas” é suficiente para a solução ou, pelo menos, para a elaboração dessa questão, isso pode aqui ficar em aberto. Uma posição a respeito só se deixa ganhar não apenas se todas as “formas simbólicas” são apresentadas, mas sobretudo se também os conceitos fundamentais dessa sistemática [270] são insistentemente elaborados e conduzidos aos seus fundamentos últimos.[23]

As questões críticas levantadas não podem diminuir o mérito de Cassirer, que reside em ter posto, pela primeira vez desde Schelling, o mito como problema sistemático no círculo de visão da filosofia. Mesmo sem que se adira a uma “filosofia das formas simbólicas”, a investigação permanece um valioso ponto de partida para uma filosofia renovada do mito. Isto, é claro, somente se compreendermos, de maneira mais resoluta do que até agora se fez, que uma exposição dos fenômenos do espírito tão rica quanto oposta à consciência dominante nunca é já a filosofia mesma. A necessidade desta irrompe somente quando os seus poucos problemas fundamentais e elementares, inconquistados desde a Antiguidade, são retomados mais uma vez.


Tradução de Marco Antonio Valentim



 

Notas

 

[1] HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 17. Aufl. Tübingen: Max Niemeyer, 1993. § 2, p. 6 (Traduções brasileiras: Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006; Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp e Vozes, 2012). [Voltar ao texto]

[2] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. p. 96-97. [Voltar ao texto]

[3] CASSIRER, Ernst. Philosophie der symbolischen Formen. 2. Teil: Das mythische Denken. Berlim: Bruno Cassirer Verlag, 1925 (Tradução brasileira: A filosofia das formas simbólicas: II – O pensamento mítico. Tradução de Cláudia Cavalcante. São Paulo: Martins Fontes, 2004). [Voltar ao texto]

[4] Deutsche Literaturzeitung (Berlim), N. F. 5, 1928, Heft 21, p. 1000-1012. [Voltar ao texto]

[5] “Besprechung von Ernst Cassirers ,,Philosophie der symbolischen Formen. 2. Teil: Das mythische Denken”.” Em: Gesamtausgabe, I. Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1910-1976, Band 3: Kant und das Problem der Metaphysik. Herausgegeben von Friedrich-Wilhelm von Herrmann. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1991, p. 255-270 (Tradução integral do volume para o inglês: Kant and the Problem of Metaphysics. Fifth Edition, Enlarged. Translated by Richard Taft. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1990. Nessa edição, a tradução da resenha de Heidegger fica a cargo de Peter Warnek). [Voltar ao texto]

[6] A paginação indicada no corpo do texto é a do volume 3 da Gesamtausgabe. [Voltar ao texto]

[7] HEIDEGGER, Sein und Zeit, § 4, p. 13. [Voltar ao texto]

[8] Ibidem, §§ 9 e 18. [Voltar ao texto]

[9] A lista não pretende ser exaustiva: preleção do semestre de verão de 1925, Prolegômenos à história do conceito de tempo, § 23-c-γ; preleção do semestre de inverno de 1925-26, Lógica. A pergunta pela verdade, § 6; preleção do semestre de verão de 1926, Os conceitos fundamentais da filosofia antiga, § 12-c; preleção do semestre de inverno de 1926-27, História da filosofia de Tomás de Aquino a Kant, § 6-a; preleção do semestre de verão de 1927, Os problemas fundamentais da fenomenologia, §§ 15-c-α/β e 19-a-α; preleção do semestre de inverno de 1927-28, Interpretação fenomenológica da “Crítica da razão pura” de Kant, § 2-a-α; preleção do semestre de verão de 1928, Princípios metafísicos da lógica a partir de Leibniz, § 10; preleção do semestre de inverno de 1928-29, Introdução à filosofia, §§ 41-46; preleções do semestre de verão de 1929: O idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel) e a situação filosófica do problema do presente, § 4-b e Acréscimo 25 ao § 12, e Introdução ao estudo acadêmico, “Interpretação da alegoria da caverna”; e, finalmente, preleção do semestre de inverno de 1929-30, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão, § 49. [Voltar ao texto]

[10] HEIDEGGER, Sein und Zeit, § 11, p. 50-52. [Voltar ao texto]

[11] HEIDEGGER, Martin. Gesamtausgabe, II. Abteilung: Vorlesungen 1919-1944, Band 27: Einleitung in die Philosophie. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, § 41-a, p. 358 (Tradução brasileira: Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2009). [Voltar ao texto]

[12] Ibidem, § 46, p. 401. [Voltar ao texto]

[13] Ibidem, § 42-c, p. 375. [Voltar ao texto]

[14] Ibidem, § 42-c, p. 372. [Voltar ao texto]

[15] Cf. DELEUZE; GUATTARI, O que é a filosofia?, p. 81-109. [Voltar ao texto]

[16] HEIDEGGER, Martin. Gesamtausgabe, II. Abteilung: Vorlesungen 1923-1944, Band 26: Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz [Princípios metafísicos da lógica a partir de Leibniz]. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1990. § 10, p. 172. [Voltar ao texto]

[17] HEIDEGGER, Martin. Gesamtausgabe, II. Abteilung: Vorlesungen 1919-1944, Band 28: Der deutsche Idealismus (Fichte, Schelling, Hegel) und die philosophische Problemlage der Gegenwart [O idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel) e a situação filosófica do problema do presente]. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1997. Acréscimo 25 ao § 12, p. 309. [Voltar ao texto]

[18] A expressão é empregada por Eduardo Viveiros de Castro para assinalar um traço de homologia entre as concepções de Claude Lévi-Strauss e Pierre Clastres acerca da sociedade primitiva: “É nela [na obra de Clastres] que um conceito fundamental de Lévi-Strauss, o de ‘sociedade fria’ – forma da vida coletiva que, diferentemente daquela praticada pelas sociedades ditas ‘históricas’, tem a propriedade (ativa e positiva) de não refletir nem interiorizar sua historicidade empírica como condição transcendental –, encontra uma expressão determinada no plano da antropologia política. A sociedade primitiva de Clastres é a sociedade fria de Lévi-Strauss; a primeira é contra o Estado pelas mesmas razões que fazem a segunda ser contra a História” (VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O intempestivo, ainda”. Em: CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 302). [Voltar ao texto]

[19] CLASTRES, Pierre. “Troca e poder: filosofia da chefia indígena”. Em: A sociedade contra o Estado. Tradução de Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 66. “Elas [as sociedades contra o Estado] pressentiram muito cedo que a transcendência do poder encerra para o grupo um risco mortal, que o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da própria cultura; foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidade de sua filosofia política” (idem, p. 64). Em oposição a isso, a liberdade do ser-aí, da qual supostamente o mundo mítico, enquanto regido pelo poder de outrem, estaria privado, implica necessariamente, segundo Heidegger, a “liderança” (Führerschaft) como correlato ontológico-político: “A liderança é o compromisso com uma existência que, de certo modo, compreende mais originariamente as possibilidades do ser-aí humano no todo e em extremo e que, nesse compreender, deve ser modelo [Vorbild]” (HEIDEGGER, Einleitung in die Philosophie, § 3, p. 7). [Voltar ao texto]

[20] Einleitung in die Philosophie der Mythologie [Introdução à filosofia da mitologia]. S. W. 2. Abt. I, 195 [Nota do autor]. [Voltar ao texto]

[21] Cf. também E. Cassirer, Sprache und Mythos [Linguagem e mito]. Studien der Bibliothek Warburg. 1925, p. 52 ss., onde é oferecida uma interpretação ainda mais perspicaz da representação-mana em conexão com o problema da linguagem [Nota do autor]. [Voltar ao texto]

[22] Cf. Sein und Zeit [Ser e tempo]. Jahrb. f. Philos. u. Phänomenolog. Forschung, Bd. VIII (1927), p. 180-230 [Nota do autor]. [Voltar ao texto]

[23] Cf. as exposições de Cassirer, confessadamente genéricas mas por demais oscilantes, em sua conferência: Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O problema do símbolo e a sua posição no sistema da filosofia]. Zeitschr. f. Ästhetik und allgem. Kunstwiss. XXI (1927), p. 295 ss [Nota do autor]. [Voltar ao texto]

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.