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A resistência passiva no altiplano

por Flávio de Carvalho

No IV Congresso Panamericano de Arquitetos, realizado no Rio de Janeiro em 1930, Flávio de Carvalho apresentou, na condição de “delegado antropófago”, a idéia d’A cidade do homem nu, a cidade do “futuro”, do “homem antropofágico (...) despido de seus tabus (...) sem deus, sem propriedade, e sem matrimônio”. Na série de artigos que Flávio escreve para O Estado de São Paulo durante a sua viagem, agora como “delegado brasileiro”, ao Peru para a VI edição do evento,deparamo-nos com a imagem de uma antropofagia um tanto invertida. Assim, em Meditação da Cordilheira, é a natureza que ameaça comer o homem: “Nenhuma paisagem faria hesitar o homem em pé sem uma boca enrugada, voluptuosa e antropofágica”. Em A resistência passiva no altiplano, publicado em 30/12/1947 pelo jornal paulistano e aqui republicado, uma tal modificação da atitude antropofágica, geralmente associada à atividade e combatividade, fica mais visível: no altiplano andino, ela aparece transfigurada em resistência passiva: o comer cede lugar ao não-comer. O estômago do antropófago não aparece como “estômago de avestruz”, que tudo aceita, mas, ao contrário, como instância de seleção política. Oswald de Andrade, em uma entrevista sobre A psicologia antropofágica, já sublinhava isso: “O maior dos absurdos é por exemplo chamar de inconsciente a parte mais iluminada pela consciência do homem: o sexo e o estômago. Eu chamo a isso de ‘consciente antropofágico’.” A mesma formulação, mas no estilo mais característico de Oswald, aparece em outra entrevista: “o homem sabe o que deve comer” . Como sabe - e Flávio de Carvalho demonstra nesse artigo - o que não comer. (Os editores)

Comer ou não comer é a mesma coisa... Foi assim que encontrei o estômago do homem do Altiplano e das montanhas peruanas. Esta situação é a conseqüência de um estado de alma: o ódio ao branco é o resultado sincrético de um movimento que se vem processando com tenacidade mongólica desde a derrota do grande Inca em Atahualpa.

O índio de hoje é incorruptível e fechado ao branco, não se interessa por nada, passa longos períodos sem comer e está situado do outro lado da dor. Como o Inca de todos os tempos, come pouco e bebe muito.

São descendentes de raças que para a continuação de seu governo faziam planos ancestrais (insignificantes comparados aos atuais planos qüinqüenais). São descendentes de organizações que não tinham dinheiro, propriedade ou comércio, e cujos indivíduos não podiam modificar-se na condição social, não podiam tornar-se nem mais pobres nem mais ricos. Estão aptos, pois, a exercer séculos afora a resistência passiva contra o conquistador.

O estômago torna-se o ponto forte da resistência passiva. Homem, mulher, criança, velho, ninguém come. Não comendo, não terão de entregar ao branco o pouco que ganham com o labor de bestas de carga exercido do raiar do dia ao pôr do sol. “Não comprar nada ao branco” é a palavra de ordem ditada pelo ódio ancestral da raça vencida. Mascando a coca, anestesiam a sensação de fome em toda a superfície do órgão da fome. Desaparecida a sensação da fome nas fumaças do ódio, qualquer coisa volumosa, ingerida afastadamente, serve para enganar os órgãos digestivos, para fazer crer que ele vive como um outro ser humano. A coca, o vício querido, preenche duas funções orgânicas bem definidas, funções com conseqüências sociais de primeira magnitude, para as alturas do Continente. Anestesiando a sensação de fome, torna possível o prosseguimento da resistência passiva e, condicionando o organismo para as grandes altitudes, concede ao habitante das alturas um passo permanente para continuar vivendo tão alto. É curioso registrar que a ausência de alimento não parece afetar o aspecto da população. O índio é robusto de aparência, tenaz no olhar, audaz na linguagem. Nenhuma cena alemã de campo de concentração. Apenas, com freqüência, uma pequena inchação do lado direito do rosto de homem, mulher, criança e velho, proveniente do movimento contínuo da mascação da coca.

As fiandeiras exercem o seu trabalho de preparo do fio, em trânsito pelas ruas. Não perdem um minuto de seu tempo na cultura do ódio ao branco. Não compram tecidos aos brancos. É dramático ver essas figuras de bronze, olhar reto, inocentes como a vicunha, transitando pelas cidades suspensas nas nuvens, subindo pelas encostas com o movimento ritmado dos animais de carga e uma leve oscilação da cabeça, mãos levantadas torcendo o fio suspenso ao carretel. Filho nas costas, coloridas e solenes, parecem rezar eternamente a ladainha mágica que um dia “derrubará o branco”. O movimento de mãos levantadas é um dos movimentos eternos que devem ser registrados e que pertence à estrutura das alturas. É um movimento que transforma a fiandeira em estatuária da mãe-terra; é uma figura adequada ao pinto e ao poeta, figura capaz de fazer explodir a bomba de tempo imemorável do anarquista, capaz de despertar a astúcia romântica do revolucionário, capaz de impor uma idéia no decorrer do tempo. Figuras inesperadas da paisagem, figuras estranhas ao primeiro contacto do homem que chega.

Figuras segregadas da montanha, chamem a si os diabos do lado, conversem com o preto, com o amarelo, com o vermelho, cores voluptuosas da paisagem. Cantem com voz telúrica o canto da raça triste, sigam seu curto caminho pelo imenso espaço disponível, distribuam seus beijos de ódio... a paisagem gelada espera sempre e eternamente. Espalhem seus desejos concupiscentes nas montanhas áridas e secas, como nas canções de amor da Primavera onde há “lágrimas para substituir a chuva”.

Para o índio das montanhas andinas, a fronteira é um mito espanhol não aceito: as travessuras geográficas de Bolívar não interessam ao índio. Só ao espanhol interessa o belo perfil, estilizado, tuberculoso e romântico oferecido em espetáculo histórico por Bolívar. Um perfil que poderia ser um de “dama das camélias” se não fosse o fogoso cabo de guerra, tão inspirado e valoroso. É o Bolívar dos museus que contemplamos na história que passa, o homem do olhar romântico, das atitudes graciosas e bem pesadas; gracioso na batalha, no olhar e na conquista, mesmo além túmulo, das damas recalcitrantes.

Brotando do seu inconsciente, o índio só percebe uma força nacionalista (que certamente nada tem a ver com as fronteiras oriundas de Bolívar), o conjunto incaico: cultos da mãe-terra, do sol, da colheita e da guerra com sacrifícios de homens e animais. Pelo culto da mãe-terra, ele conserva sua elasticidade sexual-geopolítica, essa elasticidade que o retêm sempre junto às forças fundamentais da raça. O índio atual das montanhas andinas, consciente das suas forças ancestrais, desaparecidas, guarda seus segredos ritualísticos com o maior cuidado. São esses os seus grandes pontos de apoio, o seu refúgio nos momentos de maior tristeza. Ele sabe que esses segredos são a fonte vital que conservará viva a resistência passiva e impede por todos que o branco jamais tome conhecimento desses segredos.

As fronteiras boliviano-peruanas são coisas superficiais, que podem desaparecer com maior compreensão entre os dois governos ou com um levante organizado.

Já em 1921, durante o levante nas fronteiras entre os índios da Bolívia e do Peru, visando uma união entre os dois, observa-se esse repúdio ao branco e esse afastamento histórico de Bolívar. É um estouro na calmaria secular da resistência passiva; a tempestade brota no ponto nevrálgico, na fronteira artificial, no ponto onde a massa homogênea racial foi seccionada.

Os índios Aimarás, que formam a quase totalidade da meseta andina boliviana, conservam-se calmos e pacientes durante anos até a chegada da inspiração ancestral, quando repentinamente se enfurecem, esquartejam os brancos e bebem o sangue em copos de crânios dos esquartejados.

Apesar da grande estátua de Bolívar em La Paz, as fronteiras e a idéia de independência são coisas ainda vagas e pouco impressionáveis, como demonstrou substancialmente a sublevação de 1934, durante a guerra do Chaco contra o Paraguai, quando o índio se recusou a ser incorporado ao exército.

Os levantes são constantes e sempre seguidos de assassínios dos senhores feudais. Uma das coisas que tem contribuído acintosamente para manter vivo esse ódio ancestral é a “Pengueaje”, instituição do branco, uma servidão medieval, datando da Conquista e que consiste em fazer o índio trabalhar dois ou três dias por semana, de graça, para os patrões. Presentemente (Nov. 1947) estão sendo julgados em La Paz os índios Quispe Yujra, Antonio Tuco Zavaleta e outros pelo assassínio de Agustin Prieto e senhorita Ana Vilela, na fazenda Tacanoca (puerto Perez). Diz a conclusão do processo que “los indigenas preparaban un VASTO plan de subversión en el altiplano”. Tuco Zavaleta foi um dos “presidentes índios” instituídos por Villarroel. O ilustre enforcado, almejando uma força política maior, instituiu o “presidente índio”, cargo puramente fanfarronesco, que visava, explorando a vaidade do índio, angariar pela bajulação o apoio da maioria da população, que é índia. Dessa maneira foi o índio Chipana Ramos autorizado pelo governo boliviano a exercer o cargo de “presidente índio”. Os índios reclamavam a devolução das terras que foram distribuídas aos brancos na época da Conquista e o ilustre enforcado demagogicamente prometera essa devolução. Villarroel visava e obtinha o importante apoio político do índio, apoio que se prolonga até hoje em saudosistas. O recente “complot” descoberto e abortado (Nov. 1947), radicado em todas as esferas sociais, políticas e militares bolivianas era de natureza “villarroelista”. Uma das feições pitorescas desse drama político-social do Altiplano é que Villarroel, por questões de diferenças raciais, embora recebendo o apoio do índio, não permitia que o índio passasse diante do palácio de governo em La Paz. Tanto na Bolívia como no Peru, o índio é considerado um ser inferior: chamar alguém de índio é insultá-lo. Mesmo o mestiço não gosta que o chamem de índio. Todos os presidentes de República e mandatários parlamentares mestiços nada fizeram pelo índio. O que equivale dizer que pouco fizeram para elevar o nível dos países que dirigem, pois que estes se compõem quase que só de índios. Os defensores dos índios, os “indigenistas” como Haya de La Torra, etc. são quase sempre puro sangue espanhol.

A psicologia dos mestiços é das mais peculiares: o mestiço não quer ser índio e sempre quer ser branco, do mesmo modo que o burguês não quer ser operário, mas sim “grã-fino”. Há exceções na safada demagogia política.
A mescla da impetuosidade espanhola com a liturgia metódica da alma do índio criou um tipo de homem de altiplano que se acha ainda preso aos laços antigos da paisagem: um homem que ainda adora as funções do precipício, que coloca os encantos da pureza das alturas acima dos deveres que o obrigariam a entrar em planos excessivamente baixos para a luta. O político boliviano não se utiliza do vulgar fuzilamento. Elimina seus inimigos jogando-os das alturas, no espaço brumoso do precipício, como folhas de papel ao vento... O precipício não oferece nenhum espetáculo do após-morte, os seres desaparecem entre as coisas inúteis do espaço, suavemente e sem eloqüência visual.

A disposição maléfica dos índios para com os brancos se processa presentemente de maneira das mais dramáticas e das mais perigosas. A mais grave de todas as manifestações de resistência passiva é a recente descoberta do valor do gafanhoto como colaborador na luta contra o branco, feita pelo índio. O índio instituiu o culto sabeísta do gafanhoto, que consiste em adorar o gafanhoto cultivando-o com todo o carinho possível e transportando-o cuidadosamente em enormes quantidades para as localidades onde ele ainda não se encontra. Esta adoração do gafanhoto ameaça a estabilidade agrícola e econômica do Continente Sul. O ministro da Agricultura da Bolívia, sem contudo suspeitar de que se trata de um movimento de resistência passiva, pediu ao governo que, mediante as suas autoridades políticas, tomasse medidas contra os indígenas.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.