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Fundamento psico-político da censura

por Jean-Paul Valabrega

(Publicado originalmente em Communications, 9, 1967. pp. 114-121. Tradução de Luiza Ribas)


Censura e interdição.

O que é a censura senão uma interdição ou uma das formas que a interdição pode assumir? Certamente, toda operação de censura comporta necessariamente uma proibição. Entretanto, examinando mais de perto as duas noções, não parece que elas se recobrem nem que se possa assimilá-las completamente ou reduzi-las uma à outra. Mesmo a comparação conduz rapidamente a paradoxos.

A interdição se funda na lei e se liga, geralmente, a um sistema penal cujo modelo mais simples – senão o mais primitivo – é figurado pelo talião. Olho por olho, dente por dente; aquele que matou pelo sabre padecerá pelo sabre; a mão criminosa será cortada, etc...

Não existe nada semelhante para a censura. Aquilo que ela visa reprimir e o próprio fato da censura se fundam sobre considerações bem mais difusas, móveis, circunstanciais. Normalmente, a censura não se liga nem mesmo a um sistema simples ou hierarquizado de sanções. Pode muito bem não haver nenhuma.

Ou ainda, no próprio fato de censura se encontram, ao mesmo tempo, a interdição e a pena. A punição, neste caso, consiste na própria proibição, se confunde com ela e nela se esgota.

Assim, a censura dá a impressão de ser às vezes menos e às vezes mais do que uma interdição. E eis aqui um primeiro paradoxo: se nós distinguimos a censura da interdição, se nós procuramos o fato da censura pura (se é que se pode dizer isto), nós voltamos à noção de uma pura interdição, que não remete a nenhuma outra penalidade senão à própria proibição. É impossível conceber isto em termos de legalidade. A lei comporta, repitamos, dois aspectos indissociáveis que são a proibição e a sanção.

Se procuramos nos aproximar de alguma coisa que pareça ser uma pura interdição, nós encontraremos aquilo que representa talvez o seu único protótipo: a interdição universal do incesto. Neste caso, toda ideia de hierarquia ou de dosagem de penas deve ser excluída. Mas, longe de tratar-se aqui de uma ausência de sanção, esta, ao contrário, não pode ser senão absoluta, capital. É a morte; ou a castração. Ou os dois; já que a morte e a castração são, no fundo, como nos mostra constantemente a experiência psicanalítica, equivalentes.

Vê-se, a partir daí, onde se encontra um segundo paradoxo. É impossível que a censura esteja fundada na lei. É nisto, provavelmente, que se encontra sua distinção mais radical e mesmo sua oposição em relação à interdição. Contrariamente à interdição, não se pode abordar a censura referindo-se seja à lei, seja à legalidade, que é uma das expressões, manifesta e socializada, da lei. A censura, na verdade, não tem lugar algum na legalidade, entretanto ela legisla. Assim, ela se relaciona necessariamente a uma arbitrariedade. A censura é ilegal, ou, ao menos, “alegal”; impossível enquadrá-la na lei. É por isso que cada novo ato de censura, já que injustificável, exige sempre a promulgação de um decreto ad hoc; e é por isso também que a censura, portadora de um escândalo intrínseco aos olhos da própria lei, desencadeia, sempre que aplicada, um escândalo maior do que aquele que ela pretendia evitar.

Em resumo, a censura aparece como o melhor exemplo que se pode encontrar de legalidade no arbitrário, ou de legalização do arbitrário – como preferirem – e este é o terceiro paradoxo no qual nos deteremos.

Este último ponto, seja dito de passagem, seria bem esclarecido pela análise de um processo político que está em curso presentemente na França. Trata-se do sequestro e do assassinato de um líder político estrangeiro[1], em que as cumplicidades policiais e governamentais foram tamanhas que se concordou em decidir, pela circunstância e por um tipo de extensão da cumplicidade, que certas coisas não seriam ditas, que certos nomes não seriam pronunciados, que certas pessoas, por conta de suas funções nas chefias mesmas dos Estados, não seriam questionadas. Se assistiu, então, ao escândalo em que magistrados, investidos no papel de descobrir a verdade e de aplicar a lei, obedeceram, ao mesmo tempo, a instruções que tornaram impossível, absurda e derrisória esta descoberta e esta aplicação. Assistiu-se isto de maneira bastante passiva, é preciso dizer.

Este exemplo tomado da atualidade não foi lembrado aqui senão para dizer que se trata de um fato de censura. Este fato, por ainda estar presente nos espíritos, se presta a mostrar com evidência as principais características da censura sobre as quais se insistiu até aqui. Pode-se ver, em particular, a censura entrar em uma contradição irredutível com a interdição da lei; se vê melhor ainda que a censura se introduz no domínio judiciário. Embora seja verdade que ela sempre entra. Se vê também claramente como a censura, se pode ser menos, pode, ao contrário, ser mais do que a interdição da lei, já que a censura pode inclusive justificar o crime, o que a lei, ao menos em princípio, não pode.

Nos perguntaremos agora o porquê de todos estes paradoxos que tentamos descobrir.

Creio que seja difícil definir os objetos e as fontes específicas, tanto para a censura quanto para a interdição, e que o paradoxo essencial reside nesta dificuldade. Podemos esperar que a análise ajude a resolvê-la?

Retomando a comparação da qual partimos, perceberemos que a censura se situa, ou está ao lado, mais da ameaça do que da proibição ou da sanção incorrida. Então, mais do que da “pura interdição”, ela está próxima da “pura ameaça”, o que, do ponto de vista tópico ou estrutural, é muito diferente, porque a ameaça designa um “lugar psíquico” no Eu, no Outro ou no Super-Eu, enquanto a interdição designa um “lugar de legalidade”, quer dizer, como tal, radicalmente extrínseco.

É por isso que o modo operatório da censura, tanto quanto, aliás, seus efeitos, se encontra no registro do implícito, do tácito, em uma palavra, do silêncio, enquanto a operação da interdição pertence ao domínio do discurso declarado. “Eu promulgo uma interdição”, enquanto “Eu faço pairar, eu suspendo uma ameaça”.

Nós dizemos que a censura se efetua pela ameaça e pelo silêncio. Efetivamente, o fato de censura não deixa lugar para nenhuma discussão, contestação ou súplica. Enquanto que, nos casos de delitos reprimidos pela lei, as instâncias são institucionalmente instigadas a discutir, a dosar as responsabilidades e as penas, a censura ignora toda instância, seja superior, seja mediadora, e lhe exclui de saída. Podemos discutir o direito penal. Em relação à censura, não podemos fazer nada senão admiti-la ou aboli-la. Admiti-la é, inevitavelmente, exercê-la. É por isso que, por onde a tomamos, por onde a aplicamos e examinamos, ela tende inelutavelmente para um extremo que chamamos – a título justo – de autocensura ou de censura prévia. Esta autocensura é evidentemente puro efeito da ameaça.

Resumamos os dois traços essenciais que pudemos destacar até o momento:

a) A censura só pode se remeter a ela mesma ou à pessoa do censor, nunca à lei; esta só aparece em um segundo momento para recobri-la, no sentido preciso destas palavras históricas tomadas emprestadas de um monarca: “Eu faço o que me apraz e os filósofos e juristas que se encarreguem de justificá-lo”.

b) O objetivo último da censura é uma prática generalizada. Que cada um se torne seu próprio censor! Este é o resultado de todo sistema, qualquer que seja, que exerce a censura ou apenas a admite, o que, no fundo, é a mesma coisa.


A censura concebida como fenômeno psico-político.

Destes dados decorre que a categoria do político aparece como uma referência indispensável àquele que quer abraçar mais forte a noção de censura. Indispensável mas não única. Porque ela repousa, na verdade, sobre dois pés.

Primeiramente, não há censura que não se apoie, em um dos pés, no exercício do poder político, que convém aqui distinguir do judiciário; no sistema de censura, o político invade constantemente o judiciário e tende a substitui-lo.

Em segundo lugar, o outro pé repousa em terreno psicológico. O conceito de autocensura já nos conduz para esta consideração e aparece como o último resultado do sistema, assim como a essência primeira do fato de censura.

Eis então outros fatos de censura bem conhecidos na teoria psicanalítica, mas que devem ser situados e integrar uma concepção global do fenômeno.

Quando, por meio de um trabalho psíquico consciente ou inconsciente, nós procuramos uma frase ou uma palavra para pronunciarmos, quando nós descartamos determinada imagem ou representação, quando nós reprimimos determinada corrente de pensamentos que nos levariam, por exemplo, à ideia da morte de uma pessoa que amamos; em todos os casos deste tipo, há, igualmente, alguma coisa a ser censurada, e foi a psicanálise que primeiro formulou hipóteses, e depois ofereceu uma teoria de uma censura intrapsíquica.

Portanto, a censura, se é seu conjunto que nós visamos, quer dizer, sua “categoria” e seus critérios, parece ser definida de acordo com um duplo ponto de vista, uma dupla referencia: como um fenômeno psicológico-político, ou psicopolítico, para que se possa abreviar.

Este ponto de vista “categorial e criteriológico”, esta dupla categorização é muito importante e precisa ser estabelecida. Em primeiro lugar, esta maneira de colocar a questão não permaneceria indiferente ao problema da análise da ideologia, problema que, até aqui, recebeu pouca atenção dos psicanalistas.[2] Para citar apenas um aspecto que nos interessa aqui, diremos que, por trás de toda proibição – seja estética ou religiosa –, descobrem-se os rudimentos de uma instância que funciona exatamente como uma censura política elementar, quer dizer, que se reduz ao comando: “Está interditado por ordem ou por interesse superior”, “Está interditado porque é uma interdição”.

Em segundo lugar, é provavelmente a sua descrição como fenômeno psico-político que, levando em conta a afinidade particular entre a política e a censura, permite também que se explique melhor o porquê de a censura ser tão difícil de suprimir. De fato, eu não sei de nenhum regime político que o tenha conseguido. E aqueles que tentaram, nunca tardaram em restabelecê-la sob uma forma ou outra. Pelo bem ou pelo interesse superior do povo ou da nação, evidentemente, porque nunca se escutará dizer que uma medida política foi tomada para o mal dos povos. Então, não podemos deixar de notar com pessimismo que um cuidado total e contínuo do bem do povo só se deixa equiparar pela curva, mais ou menos constante ela também, de suas infelicidades, problemas e catástrofes.

Parece bem mais lógico admitir que a ideologia do bem dos povos e do interesse superior é uma ilusão. Na verdade, as medidas educativas são feitas em primeiro lugar para o bem dos educadores. E a censura, para o bem dos censores.

Em todo caso, está atestado que a censura é mais difícil de ser suprimida do que a pena de morte, por exemplo, ou mesmo do que o serviço militar. É muito plausível que esta dificuldade extrema – quiçá esta impossibilidade – se deva à existência do “modelo” inconsciente da censura intrapsíquica, da censura no “aparelho da alma”, como diz Freud.


[Imagem da obra “Repressão outra vez - eis o saldo”, de Antonio Manuel]


Censura e discurso.

Outras consequências podem ser extraídas dessas considerações. Lembremo-nos, então, de quando nós tentamos definir a censura com relação à interdição: quais fatos específicos de censura poderíamos ter tomado como exemplos? Não teríamos, certamente, tomado por exemplos casos como a interdição do roubo, do assassinato, do incenso, da greve ou do estacionamento de carros, todas interdições que se distinguem radicalmente da censura pelo papel fundamental exercidos pela sanção e, especialmente, pela lei.

Por outro lado, poderíamos tomar como exemplo o livro, o artigo de jornal, o filme, a exposição, a conferência. O que isso quer dizer?

Isso significa que, enquanto a interdição da lei, no seu sentido mais geral, se aplica principalmente sobre as ações, a censura age especificamente sobre as representações, ou os símbolos. Sobre as mensagens; sobre o texto, a fala ou, se preferirmos, sobre os “discursos”, no sentido linguístico da palavra.

É, portanto, a própria comunicação que é visada pela censura. A prova é que o fato de censura atinge ao mesmo tempo o emissor e o receptor: aquele que faz o filme e aquele que o assiste; aquele que escreve e aquele que lê. Então, na interdição penal não é possível punir ao mesmo tempo o culpado e a vítima (mesmo que, por vezes, fosse o caso); e na censura, ao contrário, e este é um dado altamente específico, não há nunca culpado e vítima. Todo mundo é culpado, com exceção, bem entendido, do censor. Todo mundo é considerado um cúmplice em potencial. Todo mundo é omissor Conseqüentemente, se se examina do ponto onde se situa o censor, pode-se ver que a censura se dirige a uma culpabilidade latente e universal. Para isso, ela evoca um sistema tipo paranoide.


[Imagem da obra “Repressão outra vez - eis o saldo”, de Antonio Manuel]


Censura, censor e verdade.

Nos perguntaremos, naturalmente, contra o que poderá ser necessário se proteger através da censura, esta instância (Freud) que coloca implicitamente todo mundo e não importa quem, o On[3], como um suspeito potencial. Qual pode ser o perigo tão onipresente, espécie de bomba que sempre, e em todos os lugares, corre o risco de explodir? A resposta em uma palavra: trata-se da verdade; e a verdade, notadamente, em um ou outro de seus possíveis efeitos desagradáveis.

Se a censura se exerce sobre – ou, mais ainda, contra – o discurso e a verdade, é porque a verdade é, exatamente da mesma forma, carregada potencialmente pelo discurso; ela se mostra aqui e lá, pelo pouco que nós deixamos a fala se desenvolver. Um dos melhores exemplos da manifestação explosiva da verdade, veiculada pelo puro jogo do discurso, pode ser tomado na aparição do lapso, ou ainda, da irrupção disso que nós chamamos de gafe.

É inclusive sobre o princípio desta manifestação da verdade pelo jogo do discurso que está fundamentada a cura psicanalítica. Na sua origem, esta teoria foi chamada de método catártico (Breuer e Freud). Ora, a censura é precisamente o contrário da catarse; desde a origem, ela foi reconhecida pelos experimentadores como a força que se opunha mais eficazmente contra seus esforços e toda a técnica [psicanalítica], desde então, não teve outro objetivo senão o de levantar a censura e seu principal efeito: o recalque.

A relação da censura com a verdade é sublinhada ainda pela consideração de que nós nunca censuramos as falsas notícias. Nós as desmentimos; o que não significa, evidentemente, que nós não desmentimos também as verdades. Da mesma maneira, nós não censuramos praticamente nunca as calúnias. Desta forma, a proposição de que a censura concerne especificamente à verdade, é correta.

Retomando um instante a ideia de um sistema paranoide, será possível notar que a abordagem psicanalítica, que é a nossa, faz perceber, no seio mesmo do fato social e sociológico da censura, seu nó sem dúvida irredutível: trata-se da projeção, no interior do universo da comunicação social, da censura intra ou endopsíquica.

Esta visão, por outro lado, convidará para uma aproximação do fenômeno da censura sob um ângulo pouco estudado até aqui: o do personagem do censor e de sua “psicopatologia”.

O censor age e legaliza seu próprio sistema persecutório. Ele é o perseguido que se torna perseguidor. Ele nega sua culpabilidade projetando-a no corpo social, fazendo de todos “um culpado”. Enfim, ele satisfaz, no ato de censura, seus desejos megalomaníacos e voyeurísticos. Ele se arroga o direito exclusivo de ter razão contra todos e de tudo ver para se legitimar. Ele se faz o único detentor do “bem” e, secretamente, o único gozador dos prazeres interditados. Assim o modelo “edipiano” do censor é: o adulto que sabe e que pode, face a uma criança que não sabe nem pode. O privilégio que detém, então, o censor, é o de manter o outro na ignorância e na impotência.

Tudo aqui levará a precisar e a aprofundar as relações complexas que a censura estabelece e sustenta com a verdade, por um lado, e com o prazer, por outro.


[Imagem de Um dos “Babilaques” - série “Alterar” - de Waly Salomão]


Perspectiva psicanalítica.

A teoria psicopolítica da censura, que nós tentamos esboçar aqui, não é propriamente falando uma novidade. Podemos mesmo nos assegurar de que Freud, cada vez que falou e descreveu sobre o assunto, na forma e na dinâmica, se referiu à censura política. A palavra que ele escolheu é a mesma. Certamente é na censura das cartas e dos jornais que Freud encontrou, de uma forma manifesta e permanente na história das sociedades, o mecanismo disso que ele introduziu como instância psíquica. Igualmente, todas as vezes Freud sustenta que o trabalho da censura se dá, literalmente, sobre o texto. E literalmente é aqui a palavra justa, dado que este trabalho se exerce especificamente sobre representações verbais. Por vezes apenas sobre algumas sílabas, mesmo sobre algumas letras. Muitos são os exemplos a apoiar essa tese e poderemos dizer que ainda hoje não há sessão analítica ou análise de sonho que não traga profusões de ilustrações e confirmações clínicas. Não há, tampouco, analista que não receba, dez vezes por dia, a prova convincente, sempre renovada e surpreendente.

É sobretudo na Traumdeutung [A interpretação dos sonhos], nas Conferências Introdutórias à Psicanálise, onde inclusive os mesmos exemplos são retomados, e também na Mot d’esprit[4] [Os chistes e sua relação com o Inconsciente], que Freud expõe a teoria da censura. Em todos os casos, se vê emergir a noção da censura política através, também, de algumas comparações estreitamente estabelecidas.


No capítulo 9 das Conferências introdutórias, a censura do sonho é definida em uma referência à “tarja preta” da censura [caviardage [5]]  aos jornais.

No capítulo 4 da Traumdeutung, em relação à análise de seu “sonho do tio”, Freud constata uma “analogia completa” entre a deformação no sonho e “aquilo que se passa na vida política”.

Na mesma passagem e em uma nota a uma das reedições da obra, Freud menciona uma observação demonstrativa de Mme. V. Hug-Hellmuth, onde se nota que, em um sonho, um murmúrio ininteligível substitui as passagens subversivas que estão para ser – diz Freud – cortadas [à caviarder]. Assim, justamente nos mínimos detalhes, as equivalências extremamente precisas se impõem entre a censura psíquica e a censura política.

Não é verdade que esta aproximação seja fortuita e devida, como por vezes se afirma, às circunstâncias da guerra de 1914 por exemplo. Em primeiro lugar, porque a Traumdeutung é de 1900. Depois, é possível encontrar a noção da censura nos Estudos sobre a histeria (1895), e, sobretudo, ela aparece em 1897 em uma carta à W. Fliess, importante aliás por outros motivos, notadamente porque Freud constata expressamente o papel capital das representações verbais no mecanismo patogênico das neuroses, tanto da histeria quanto da neurose obsessiva.

Na conclusão desta carta, Freud escreve:


Você já viu alguma vez um jornal estrangeiro que tenha passado pela censura russa na fronteira? Palavras, expressões e frases inteiras são riscadas, de modo que o restante se torne ininteligível. Uma censura russa dessa natureza se dá nas psicoses e produz os delírios aparentemente sem sentido.[6]

Quanto à teoria completa da dinâmica do fenômeno, ela propõe problemas interessantes e difíceis. No capítulo 7 da Traumdeutung, Freud estima que a representação a ser suprimida é submetida a um duplo efeito. Ela é repelida de um lado pela censura e atraída, de outro, pelo sistema Inconsciente.

Podemos, então, pensar – e Freud parece  às vezes seguir neste sentido – que existem duas censuras, ou uma dupla censura, ou ainda que a censura se desloca (do pré-consciente para a fronteira do inconsciente), assegurando, assim, seu duplo efeito.

Ou não é verdade que esta teoria encontraria uma correspondência impressionante com os dois tipos de censura política: a censura de origem externa e a autocensura?

Ainda por este caminho, somos levados à proposição de base: de uma maneira ou de outra, toda censura remete ou conduz à autocensura. E toda censura política remete também à censura intrapsíquica, de que é uma projeção; deste modo, a censura intrapsíquica constitui um núcleo irredutível, ou ao menos, difícil de se reduzir; no qual a redução, em todo caso, só pode ser um empreendimento permanente.

Consideremos agora mais precisamente os procedimentos da censura.

Uma diferença entre a censura política moderna e a “censura russa” evocada por Freud é que hoje – com exceção talvez do tempo de guerra – não se usa mais tarjas pretas, se suprime. O texto que recebe o imprimatur, ou o “visto da censura”, como se diz para os filmes, não aparece mais truncado ao leitor ou espectador. É um texto “inteiro”. Mas é falso. É falsificado. O falso se dá, então, pelo verdadeiro e isso mostra que a censura “franca” das tarjas pretas, pode ser substituída por uma censura mais completa e “hipócrita”, no limite difícil ou mesmo impossível de se reconhecer: a supressão do texto “subversivo” e sua substituição por um texto trivial. Assim, à la “um” dos jornais, um casamento real substituirá um escândalo que respingará no governo.

Mas a censura intrapsíquica também utiliza os dois procedimentos e os governos nada inventaram. No discurso do sujeito normal, neurótico ou psicótico, no sonho ou na patogenia do sintoma, encontram-se as duas técnicas. Freud, na Traumdeutung, já havia descoberto a importância de certos sonhos hipócritas e mostrado que trazer à tona este dado hipócrita era necessário para acertar na análise de tais sonhos.

Consequentemente se vê que existem essencialmente dois procedimentos da censura: a supressão e a deformação. Um terceiro procedimento, a substituição, intervém também em muitos casos; isto pode ser considerado como um processo de “preenchimento” do vazio criado pela censura de supressão; vazio que, em outros casos, pode ser combinado com o procedimento alusivo.

Elisão e alusão: estes dois procedimentos se encontram admiravelmente ilustrados nesta célebre frase: “Se alguém ousar dizer que o rei é um..., ele terá que se ver comigo!”

Depois de ter definido as técnicas da censura, voltemos mais um instante, para terminar, sobre seu objeto.

Nós dissemos que ele era, a princípio, a verdade. A verdade no seu aspecto desagradável, o que pode prejudicar, certamente, mas que também trava relações sutis com o prazer. Dá-se perfeitamente conta da expressão usual – e universal – de “prazer proibido”.

A frase que citamos acima é, entre outras coisas, uma invocação indireta a um julgamento irreverente sobre o rei. Ela o pronuncia ao mesmo tempo em que o camufla. Esta frase é também uma “palavra espirituosa” [chiste (mot d’esprit)].

Existe uma relação específica entre a censura e oespírito[esprit]. A censura é oposta ao espírito, no sentido em que dizíamos que ela é contrária à catarse, enquanto a mot d’esprit [chiste, palavra espirituosa] é justamente o que permite “dobrar” a censura.

Esta relação dupla evidentemente não escapou a Freud; é por isso que ele consagra várias das suas explanações à censura, na sua obra sobre o Witz (dito espirituoso).

Há, então, como Freud analisou, uma raiz comum, ou ainda, uma raiz dupla comum ao espírito e à censura. Por um lado o obsceno, ou o lascivo, por outro o hostil. Lascívia e hostilidade remetem às duas pulsões (Triebe) que podem ser, como Freud diria, intrincadas ou desintrincadas.

Pode-se evidenciar vínculos entre  o obsceno e o hostil, entre o sexual e o agressivo. Vínculo pela relação: já que o obsceno é o prazer tomado às custas do outro; e que, inversamente, a hostilidade tende igualmente ao prazer em todas as formas e todas as dosagens, o que pode encobrir o sadomasoquismo. Ou vínculo pelo objeto: quando menos pela consideração do objeto excrementício que tem um papel importante na intrincação e na desintrincação pulsionais.

Eis porque Freud escreve, no Le Mot d’esprit [Os chistes e sua relação com o Inconsciente]:


O sexual, que constitui o fundamento da obscenidade, não se restringe àquilo que distingue os sexos, mas se estende, além disso, aquilo que é comum aos dois sexos e igualmente objeto de vergonha, a saber o excremento, em todos os domínios. Ora, é esta precisamente a extensão do “sexual” ao tempo da infância; na representação infantil existe, de alguma forma, um esgoto no qual o sexual e o excrementício pouco se distinguem. Em todos os lugares, no campo da psicologia das neuroses, o sexual implica ainda o excrementício e continua compreendido no sentido arcaico, infantil.

Nós vemos a censura funcionar tanto contra o sexual quanto contra o agressivo. E se ela “deixa passar” relativamente de modo mais freqüente a expressão de hostilidade, é sem dúvida porque ela corresponde a uma “pulsão parcial” ainda mais regressiva e que, por isso, ela se camufla na tendência sexual ao mesmo tempo que em uma descarga mais regressiva de tal tendência.

Ao término deste esquema teórico, reagrupemos as noções-chave pelas quais passamos: elisão e alusão quanto aos procedimentos. Verdade, obscenidade, hostilidade, quanto aos objetos.

Repitamos: estas noções se aplicam tanto à censura externa quanto à autocensura, tanto à censura política quanto à intrapsíquica, na qual a primeira é vista como uma projeção que se efetua no e pelo intermediário do personagem do censor. Apenas uma teoria psicopolítica nos parece permitir que se entenda o conjunto do fenômeno que é, por natureza, psicossocial.

Ainda que, definitivamente, a censura, como nós vimos, não poderia se fundamentar em nenhuma lei ou legalidade, salvo se ela mesma substituísse arbitrariamente toda a lei, esta censura é provavelmente a expressão de uma alternativa primeira e elementar do discurso: Dizer ou não dizer.



[1] Nota dos editores: Muito provavelmente, Valabrega se refere aqui ao seqüestro de Mehdi Bem Barka, político marroquino e principal opositor de esquerda ao rei Hassan II, e que “despareceu”, conforme o eufemismo oficial e midiático, em Paris no dia 29 de outubro de 1965. O crime, bem como a participação dos governos francês e marroquino, nunca foi esclarecido. [Voltar ao texto]

[2] Ver também, certamente de um ponto de vista diferente, o artigo de W. Baranger em la Psychanalyse, n. 5, P.U.F, 1959. [Voltar ao texto]

[3] Nota da tratudora: On, no francês, é pronome impessoal e também o pseudo-pronome equivalente a “a gente”, conjugado com a terceira pessoal do singular. [Voltar ao texto]

[4] (N.T.) Mot d’esprit, ao mesmo tempo que configura a expressão à qual nós chamamos de chiste, é composta pelos vocábulos que podem ser entendidos de maneira literal como “palavra de espírito”, “palavra espirituosa”. [Voltar ao texto]

[5] (N.T.) Caviardage designa uma prática de censura que consiste em riscar (colocar uma tarja preta sobre) determinadas passagens, palavras e expressões de um texto. O termo deriva de caviar, e assemelha metaforicamente as marcas negras da proibição censória às ovas de esturjão, que são da mesma cor. [Voltar ao texto]

[6] Carta de 22 de dezembro de 1897 (n. 79). Cf. La Naissance de la Psychanalyse, P.U.F., 1956, pp. 211-213 [Fizemos uso da tradução presente em: MASSON, Jeffrey Moussaieff (ed.). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. 1887-1904. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986. p. 290]. [Voltar ao texto]

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.