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Em estado de memória
de Tununa Mercado

Tradução de Idelber Avelar

Rio de Janeiro, Record, 2011


Texto anterior:
O planeta doente


Edicão integral:
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O SOPRO publica, abaixo, um fragmento do livro Em estado de memória, de Tununa Mercado, em tradução de Idelber Avelar (Rio de Janeiro: Record, 2011). O lançamento da edição brasileira está previsto para fevereiro. Outro fragmento, o capítulo “Corpo de pobre”, pode ser lido aqui.
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Em estado de memória
por Tununa Mercado


A espécie furtiva

De uma noite de verão, janeiro ou fevereiro de 1951, ficou um vestígio que se emancipa, por assim dizer, da história que o sustenta, e nesse desprendimento, só, isolado, deixa-se reconhecer como um signo transeunte, preso a outros acontecimentos de minha vida, mas já sem nenhum enraizamento possível, como uma alma. A mão de um menino cruza o espaço que separa sua cama da minha, se estende com audácia na escuridão, se lança ao vazio, e minha mão de menina está ali para tomá-la; as duas mãos que tiveram que vencer toda adversidade, toda oposição para receber e transmitir ao mesmo tempo seu desejo de se unirem. Esse único, fugaz e imperecível contato na noite desse verão, fruto do acaso de uma disposição de camas e de meninos em camas num quarto, ao arbítrio de uns adultos, essa união das mãos que se encontraram e se tiveram uma à outra produzindo sucessivas iluminações interiores, uma ardorosa dor porque na intensidade mesma que a união provocava estava se antecipando a separação, essa fervente e momentânea fusão fundou para mim, de maneira irreversível, a espécie furtiva.

A imagem soltou durante todo o dia seguinte, e ainda no ano e lustro seguintes, com uma perda de força e um avanço até a extinção imparável ao longo de mais quatro decênios, um resplendor estranho que machucava, curiosamente, com mais dor, à medida que se apagava. Os olhos negros do menino, recordo, não me olharam quando a luz fechou a noite daquele verão; permaneceram recluídos detrás de suas pestanas como cortinas, e tudo ficou na iminência da véspera. Depois, tudo o que aconteceu a partir dessa primeira ponte na noite, na epifania do encontro ou no pesadelo da perda, teve a ressonância dessa figura: alheio ou alheia à forma que ganha em mim, o outro ou a outra, como o menino, estão mudos ou ausentes quando a figura se recria. A espécie obstinou-se em se reproduzir sobretudo no meu regresso à Argentina; ela se manifestava em evocações e era recolhida por minha consciência como uma haste à qual não se pode desconhecer nem, menos ainda, negar um nome.

Às vezes, a ponte estendida na noite nem bem entrada em sombras é meu olhar que atravessa a rua pelo interstício de umas cortinas semi-abertas; do outro lado está um menino de calças à meia perna, meias de escola cinza, sapatos negros abotinados; ele olha a casa, percorre-a com seus olhos escuros e apremiantes como de comadre, depois olha ao longe o bonde que não chega, volta a olhar a casa e, de repente, respondendo ao meu chamado das sombras, fixa-se exatamente nesse ponto do meu lugar de aparecimento, detém-se em minha mera pupila, e permanece cravado a esse círculo de meu olho. Mal mexe uma mão, adianta um pé, como para dar sinais de receber meu olhar, que não se vê, mas que parece ter estabelecido com o seu uma união inquebrantável. Alguma vez abri as cortinas e me deixei ver, e o encontro foi então tão evidente, posto que ele me cumprimentou e sorriu de seu lugar de espera, que alguém nos descobriu de outra janela. O temor ao castigo, a ponte quebrada por um terceiro, meu súbito desaparecimento para o interior do quarto apagaram o sinal e, sem emissão, o menino de calças à meia perna, que se chamava Elvio, afastou-se de minha vida, afastou-se mas volta porque, sem sabê-lo, ele estava tocando essa substância constitutiva, esse espécie roubada e sigilosa.

O furtivo dessa espécie tem uma característica: a reunião, a ponte noturna roubada ao mundo que pode ser estendida de manhã ou de tarde, mas que não deixará por isso de ser noturna, é uma aquisição para sempre; esse bem não se esgota e, em cada renovação, reitera seus efeitos. Cruzei-o mil vezes e evoquei-o outras tantas quando minha vida se enfraquecia, mas se estendeu, tensa, em meio arco, com um vazio intermédio infranqueável como nunca havia acontecido, numa noite do mês de julho de 1987, a poucos meses de meu regresso a Buenos Aires: eu e ele, o outro necessário para que a figura se recriasse, permanecemos na borda, sem transpor o espaço intermédio e, por acréscimo, o peso da separação e a perda ficaram em minha margem descompensada.

(...)

 

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.