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Locus solus

de Raymond Roussel

Tradução de Fernando Scheibe | Prefácio de Raúl Antelo | Posfácio de Pierre Bazantay | Capa e projeto gráfico de Marina Moros

Desterro:
Cultura e Barbárie, 2013

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Roussel, la vie
Raul Antelo


Texto apresentado no lançamento da tradução brasileira de Locus Solus, dia 28 de novembro na Fundação Cultural BADESC (Florianópolis).


O mestre mandou edificar em seu parque, alargando parcialmente uma alameda retilínea a fim de obter uma localização favorável, uma espécie de imensa sala retangular, simplesmente formada por uma estrutura metálica sustentando um telhado e paredes de vidro. Guarneceu-a de aparelhos elétricos refrigeradores destinados a criarem ali um frio constante, que, suficiente para preservar os corpos de toda putrefação, não chegava a endurecer seus tecidos. Vestidos com roupas quentes, Canterel e seus ajudantes podiam, sem problemas, passar ali longos momentos.
Transportado para esse vasto frigorífico, cada defunto admitido pelo mestre sofria uma injeção craniana de ressurrectina. A introdução da substância acontecia por um furo fino que, aberto acima da orelha direita, recebia logo uma estreita rolha de vitalium.
Uma vez em contato ressurrectina e vitalium, o sujeito agia, enquanto ao seu lado, uma testemunha de sua vida, convenientemente agasalhada, empregava-se em reconhecer, pelos gestos ou pelas palavras, a cena reproduzida, – que podia se compor de um feixe de vários episódios distintos.[1]

Essa outra cena que a ressurrectina (destruição constante) e o vitalium (iteração contínua), combinados, davam a ver, numa mensagem secreta e póstuma, é o segredo que sempre permanece póstumo, assim como a morte nele desempenha uma função indutora e vital. Mas é inegável, por sua vez, que o acontecimento da ressurrectina precipita, na escrita de Roussel, uma noção de época, que pode ser relevada em três vertentes, como suspensão fenomenológica do juízo, à maneira da epoché de Husserl; como tempo definido pelo deslocamento de uma estrela, tal como esse conceito se usa na astronomia (Roussel refere-se ao episódio) e, por último, como ponto fixo ou acontecimento destacado que organiza a cronologia. Nesse sentido, o acontecimento que define uma época avança sempre conforme a lógica do après-coup, só sabemos o que foi relevante numa vida de maneira póstuma, portanto, não há contemporaneidade entre o acontecimento e seu testemunho e isto define o contemporâneo como um tempo sem testemunhas, o tempo do desaparecimento do tempo ou do acontecimento simplesmente espectral. Em 1922, Pierre Frondaie, com o consentimento de Roussel, adapta Locus Solus para o teatro e a peça contém uma teoria da ruína, no diálogo entre Cantarel e Noussel, que atinge o ideal, auto-fantasmagorização.

Seja, portanto, o acontecimento Roussel. Em julho de 1954, o patafísico argentino Juan Estaban Fassio, que logo inventaria uma máquina para ler Roussel, assim como inventou também uma máquina para ler O Jogo da amarelinha de Cortázar, escrevia no quarto número da revista Letra y línea:

La historia de la patafísica no ha sido siquiera esbozada. Sin embargo, "Les Enfants du Limon" de Raymond Queneau proporciona datos inapreciables sobre su prehistoria. Debe entenderse que todo patafísico anterior a la Era Patafísica (que comienza el 8 de septiembre de 1873, fecha del nacimiento de Jarry) será considerado como un patafísico involuntario, mientras que aquellos que son posteriores a Jarry, son patafísicos en general conscientes. Hay, por supuesto, brillantes excepciones: Raymond Roussel, cuyas invenciones y procedimientos verbales son patafísicos por excelencia, ignoraba seguramente a su genial contemporáneo. Dentro de la era de la patafísica, han hecho uso más o menos consciente de sus métodos: Jacques Vaché ("Lettres de guerre"), Arthur Cravan (revista "Maintenant"), Marcel Duchamp ("La Mariée..." -caja de documentos), Julien Torma ("Euphorismes"), René Daumal ("La pataphysique et la révélation du rire", "La vie des Basiles", "Pataphysique des Fantômes, etc. -artículos reunidos en "Chaque fois que l'aube paraît"), R. Queneau ("Petite Cosmogonie Portative", "Philosophes et voyous", etc.), Eugène Ionesco ("La Cantatrice Chauve" y todo su teatro), S. Dalí (interpretaciones paranoico-críticas), etcétera.[2]

Quero frisar que Roussel ignorou Jarry tanto quanto Cortázar ignovara Fassio. Não foram testumunhas um do outro. E se hoje os lemos é porque nossa leitura está encharcada de ressurrectina. Mas essa compreensão do acontecimento ressurectina contém, além do mais, um paradoxo: nomear o acontecimento é nomear outro acontecimento do qual o mais recente se destaca. A ideia baseia-se numa compreensão do tempo como estase, como suspensão do julgamento, em que o momento póstumo consegue revirar, de ponta cabeça, a iterabilidade do tempo. Não há, a rigor, posição de época sem reconhecimento de diferença entre tempos; mas essa combinação depende e decorre do próprio conhecimento que tivermos dos aparelhos que tornam uma época possível. Fassio, que expusera com os artistas madi, no final do peronismo, propunha uma saída ainda mais delirante para a História: uma pista-monumento em espiral, percorrida por bicicletas, para honrar Roussel, a ser construída ao lado da pirâmide de Maio, que comemora a independência colonial. Valeria a pena pensar nisso quando hoje assistimos a um renascimento, uma ressurrectina do trotsquismo no Prata, ao abrigo do tão odiado populismo. Na reversibilidade de totem e tabu, introduzida pelos antropófagos paulistas em 20 e, a seguir, na teoria da festa, desenvolvida pelos acefálicos, na Paris dos anos 30, constata-se já, como em Roussel ou em Fassio, uma idêntica e peculiar comemoração, a da emancipação do tempo, que não dispensa, entretanto, certa cerimônia na medida em que, sendo todo aparelho, por definição, um aparato, não existe emancipação sem espetáculo.

Freud instaurou o après-coup a partir do aparelho do inconsciente, ainda individual; Walter Benjamin, porém, separou-se da dialética como linguagem da camera obscura e detectou saídas em um aparelho anônimo e coletivo: a cidade. Poder-se-ia pensar que Locus Solus opera nessa direção que seria resgatada pelos surrealistas. Em seu famoso ensaio sobre essa estética, Walter Benjamin diz que

O truque que rege esse mundo de coisas – é mais honesto falar em truque que em método – consiste em trocar o olhar histórico sobre o passado por um olhar político. “Abri-vos, túmulos; mortos das pinacotecas, mortos adormecidos atrás de portas secretas, nos palácios, nos castelos e nos mosteiros, eis o porta-chaves feérico, que tendo às mãos um molho com as chaves de todas as épocas, e sabendo manejar as fechaduras mais astuciosas, convida-vos a entrar no mundo de hoje, misturando-vos aos carregadores, aos mecânicos enobrecidos pelo dinheiro, em seus automóveis, belos como armaduras feudais, a instalar-vos nos grandes expressos internacionais, a confundir-vos com todas essas pessoas, ciosas dos seus privilégios. Mas a civilização fará delas uma pronta justiça”. Tal o discurso que Apollinaire atribui a seu amigo Henri Hertz. Apollinaire foi o inventor dessa técnica. Ele a aplicou em sua novela L’hérésiarque com um calculismo maquiavélico, para mandar pelos ares a religião católica, a que ele interiormente continuava ligado.[3]

No centro desse mundo de coisas está o mais onírico dos objetos, a própria cidade de Paris. Joseph Cornell faria o equivalente com Nova York. A modernidade desse lugar (amnésico) da memória oferece-nos, em poucas palavras, uma arte da citação, dos cartazes, dos grafittis e do letrismo enfim. È esse seu método. E, assim como o psicanalista orienta-se por uma escuta flutuante, o leitor de Locus Solus usa o aparelho benjaminiano da passagem, que realiza uma leitura flutuante, entre tempos dissímeis que tensionam o acontecimento de nossa época até fazê-lo disseminar em saltos. Esses saltos chamam-se leitura. Roussel, em suma, inventou o texto.

[1] ROUSSEL, Raymond. Locus Solus. Tradução de Fernando Scheibe. Desterro [Florianópolis]: 2013. p. 170-1. [Voltar ao texto]

[2] Para ler a revista Letra y línea de Aldo Pellegrini, bem como um conjunto de ensaios que reavaliam o surrealismo, ver o excelente volume de BECERRA, Eduardo (ed.). El surrealismo y sus derivas. Visiones, declives y retornos. Madri: Abada, 2013. [Voltar ao texto]

[3] BENJAMIN, Walter. “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”. Em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. [Voltar ao texto]

Próximo texto:

A eterna traição dos brancos
(Antonin Artaud)


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.