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Divórcio

de Ricardo Lísias

Rio de Janeiro:
Alfaguara, 2013


“Onde está sua ruptura?”

por Victor da Rosa

Do que trata Divórcio, o novo romance de Ricardo Lísias? Para tentar responder a pergunta, primeiro é preciso passar por duas ou três respostas óbvias. O próprio narrador, em um de seus vários momentos autorreflexivos, diz se tratar de um romance sobre o amor. É uma boa resposta, mas provavelmente incompleta. Não seria nenhum disparate sugerir, por outro lado, que o romance consiste em uma espécie de manifesto contra certos pressupostos do jornalismo, lembrando As ilusões perdidas, de Balzac, mas esta tampouco é uma resposta suficiente. Naturalmente, trata-se também de um livro sobre o divórcio, ou seja, da “separação de cônjuges por meio da dissolução do matrimônio”, mas é o sentido figurado da palavra divórcio que parece ainda mais eficaz para a leitura do romance: separação, desacordo e corte.

São duas as imagens que atravessam o romance do começo ao fim, buscando organizar uma narrativa absolutamente fragmentada e caótica: primeiro o corpo sem pele, “cadáver sem pele morto na cama” segundo a descrição no primeiro capítulo, que aos poucos vai ganhando uma pele nova; e depois as caminhadas noturnas, seguidas de corridas cada vez mais disciplinadas, que acabam levando o personagem a participar da Maratona São Silvestre, um dos pontos culminantes do romance. Por sua vez, os capítulos são divididos e intitulados justamente com os quilômetros da prova, somando quinze no total, e o fim da corrida funciona também como o fim do romance, outra evidência, agora estrutural, de que o livro trata de movimento e portanto de separação.

A intriga de Divórcio, como o leitor já deve mais ou menos saber, diz respeito ao fim traumático de um matrimônio, situação que talvez encontre eco em outro romance do século XIX, dessa vez Dom Casmurro, como chamou a atenção o escritor Pádua Fernandes em sua resenha sobre o livro. De certa maneira, é possível pensar em uma apropriação da própria intriga de folhetim, que tem uma origem possível nos romances populares e sem dúvida era um dos horizontes da literatura machadiana. Após encontrar o diário de sua mulher dizendo coisas bem desagradáveis a seu respeito, o personagem de Divórcio, que tem o mesmo nome do escritor, termina o casamento através de uma mensagem no celular e entra em longo “colapso emocional”, desencadeando uma série de situações agressivas, reveladoras e, por assim dizer, engraçadas também. Aliás, esta espécie de indiferenciação entre a tragédia e a comédia, pra ficar apenas no exemplo mais evidente, responsável em grande parte pela abertura de um espaço narrativo desencontrado, é algo que já se tornou frequente na literatura do escritor.

Diferente do narrador de Dom Casmurro, no entanto, Ricardo Lísias neste romance não esconde nada. Antes, muito pelo contrário. O crítico Adriano Schwartz, em resenha publicada na Folha de São Paulo, define a narrativa do Divórcio através do “ímpeto não cínico de tentar dizer tudo, de escancarar o problema e se autoescancarar no processo”. Por isso, na medida em que quase nada é poupado, nem mesmo o próprio romance, criticado nas últimas páginas pelo narrador em um extenso exercício de metalinguagem,e muito menos a ex-mulher, seu advogado e suas amigas, que frequentemente sofrem insultos de Lísias por e-mail, enfim, por isso Divórcio talvez possa ser pensado como o mais radical e talvez mais absurdo de todos os seus livros. Assim, não deixa de ser curioso que o livro tenha inspiração autobiográfica, e não puramente imaginária, por assim dizer.

De fato, Divórcio procura levar às últimas consequências o absurdo que é não a literatura, mas a vida. Talvez seja isso que Lísias esteja se perguntando sobretudo em seus últimos dois romances, Divórcio e O céu dos suicidas, por meio de uma virada significativa em relação ao romance anterior, O livro dos mandarins. Nesse sentido, o acidente biográfico brutal só tem interesse porque, por falta de melhor definição, se mostra mais absurdo e mais cheio de lacunas do que a própria ficção. Mas na verdade o jogo parece ainda um pouco mais complicado, já que é a própria separação entre vida e ficção que está em xeque. Portanto nada mais próximo daquilo que Hal Foster, a partir da análise da obra de Andy Warhol, chamou de “retorno do real”, a meu ver o melhor modelo teórico para analisar esse momento da obra de Ricardo Lísias. Bem resumido, Foster argumenta que a obra de Warhol embaralha as duas categorias com as quais se pensava a imagem na década de sessenta, a saber: a imagem é referencial ou simulacro. O que Warhol faz, na leitura do crítico, é levar as duas categorias a uma terceira possibilidade de leitura, que poderia ser avaliada como, vejamos só, “realismo traumático”.

Não é apenas uma coincidência que as primeiras páginas de Divórcio nos apresentem o autorretrato de um cadáver, que deve ser relacionado diretamente com as tantas imagens de morte que Andy Warhol produziu. Tampouco estamos diante de uma mera coincidência quando Warhol faz sua declaração célebre: “Quero ser uma máquina”, sem dúvida tendo em mente Marcel Duchamp e suas máquinas celibatárias. Em Divórcio, a saída do trauma pelos treinamentos não é outra coisa senão a tentativa de transformação do corpo em máquina, sendo a finalização da prova da São Silvestre a realização máxima disso. Daí é possível entender por que o narrador repete tanto os trechos do diário de sua ex-mulher, não bastando apenas reproduzi-lo, e mesmo por que uma frase-clichê retorna mais de 20 ou 30 vezes durante o romance: “Notre Dame é um patrimônio histórico da humanidade.” Se Andy Warhol se entrega ao mesmo almoço durante 20 anos, Lísias se dedica ao atletismo, às listas e a outras maneiras de repetição. “Quando se vê uma imagem medonha repetidamente”, diz ainda o artista americano, “ela não tem realmente um efeito”. O romance, em todo caso, tem a forma da espiral; o diário, por sua vez, é o buraco do real.

Lembrando o narrador do célebre romance de Knut Hamsum, Fome, Ricardo Lísias é justamente o “sujeito em estado de choque” de que fala Hal Foster. Daí a agressividade, o exagero, a aparência kitsch ou mesmo pop, como queira, e finalmente o tom às vezes panfletário de Divórcio, que é criticado injustamente, a meu ver, na resenha de Schwartz, classificado como “tom meio panfletário um pouco fora do lugar”. Ora, trata-se de um romance inteiramente fora do lugar, fazendo disso aliás seu grande assunto, e o tom panfletário, por sua vez, não deve ser tomado como natural, e sim como performance. De resto, o processo traumático, que é a rigor um desencontro com o real, só pode ser repetido – Lacan explica – como exagero. É exatamente o exagero que possibilita a Lísias reviver o jogo de sua vida, revelando as regras de um processo. “A essa altura, verossimilhança não me interessa”, diz o narrador, chamando a atenção para uma espécie de realismo que não deve de nenhuma maneira ser pensado como mimese, como acontece com grande parte da literatura brasileira contemporânea, e sim como mimetismo, e é justamente esse o propósito de nomear o narrador com o próprio nome do autor.

Finalmente, sendo um romance sobre a separação, há também, na outra ponta da história, talvez na linha de chegada, algo do qual se aproxima. Seja como for, talvez a pergunta “em direção a onde se corre tanto?” não seja a mais apropriada, já que não há um sentido final e nem mesmo uma metáfora nos esperando no fim da prova. A corrida, portanto, é o próprio fim. Corre-se para transformar o corpo em máquina, para se “proteger do real”, como escreve Foster mais uma vez, conclusão que a imagem de uma “pele nova” sintetiza com perfeição. De outra maneira, corre-se para sair do próprio livro, pois “o livro é o próprio trauma”. Nesse sentido, Divórcio não deixa de ser, por meio do luto, um romance restaurador e libertário. “Um corpo sem pele não consegue achar nenhuma resposta”, diz o narrador. Corre-se porque a esperança consiste sobretudo em nunca deixar de se mover.

Amor
(Flávia Cera)

[ Edicão integral ]


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.