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As estrelas
descem à Terra

A coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária

de Theodor W. Adorno
(Tradução de Pedro
Rocha de Oliveira)

São Paulo, UNESP
(Col. Adorno), 2008


Ler estrelas

por Alexandre Nodari

Causa espanto o fato de alguns apressados frankfurtianos brasileiros se utilizarem da valoração negativa da indústria cultural para desprezar a priori os produtos da cultura de massas como objetos de análise (é o que torna, em contrapartida, as reflexões de Slavoj Zizek, mesmo que também por vezes apressadas, mais instigantes e menos previsíveis). Isso não só porque Walter Benjamin, integrante da tradição a que se filiam, via nesses produtos uma função ambivalente (basta lembrar as suas reflexões sobre Mickey Mouse, um tipo de cinema que desagua não em Godard ou Glauber Rocha, mas nos filmes de Harry Potter), mas também – e principalmente – porque mesmo Theodor Adorno, do núcleo “mais duro” do Instituto de Pesquisa Social, considerava essencial a reflexão sobre as miudezas do cotidiano (o que inclui, evidentemente os produtos dos mass media) para compreender o funcionamento do capitalismo tardio.

É o caso, por exemplo, de Minima Moralia, que recentemente ganhou nova tradução de Gabriel Cohn pela Azougue, e do menos conhecido As estrelas descem à Terra, publicado também ano passado pela Editora UNESP. Neste último, escrito em inglês na década de 1950 e traduzido por Pedro Rocha de Oliveira, Adorno analisa alguns meses da coluna de astrologia do Los Angeles Times, entre 1952 e 1953, lançando mão de sua conhecida combinação de psicanálise freudiana e teoria social crítica para jogar luz sobre a configuração que o capitalismo do pós-guerra passava a adquirir e que só se tornaria claramente nomeável algumas décadas depois quando Guy Debord a chamará de “sociedade do espetáculo”. Nada do que Caroll Righter, o autor da coluna, diz escapa ao olhar de Adorno. Dois exemplos. Primeiro, o tempo: a divisão do tempo do leitor sugerida pelo astrólogo entre períodos favoráveis ao trabalho e aqueles propensos ao lazer é encarada como um modo de conciliar as exigências contraditórias do capitalismo (que necessita que os produtores também consumam, além de subordinar o lazer, caracterizado pelos bens de consumo, ao dever): “A idéia é que, mantendo-se estritamente separadas as esferas do trabalho e do prazer, ambos os tipos de atividade serão beneficiados: aberrações instituais não interferirão com a seriedade do comportamento racional, e nenhum sinal sombrio de gravidade e responsabilidade maculará a diversão. Obviamente, esse dispositivo é, de alguma maneira, derivado da organização social que afeta o indivíduo à medida que sua vida é dividida em duas seções: numa delas, ele funciona como um produtor; na outra, como consumidor. É como se essa dicotomia básica do processo da vida econômica da sociedade fosse projetada sobre o indivíduo”. Tampouco a linguagem escapa ao crivo da teoria crítica: assim, o uso de significantes vazios, como “aquela intuição”, que parecem “indicar que o colunista, com base na inspiração astrológica, sabe exatamente como é o indivíduo que lerá a coluna”, é, ao mesmo tempo geral “o bastante para poderem ser adequadas sem exceção: todo mundo, algum dia, ter um palpite ou uma sensação do tipo indicado”; e também o uso de eufemismos (“a linguagem da coluna como um todo é eufemística”, diz a certa altura Adorno), onde “amigos” ou “conhecidos influentes” referem-se ao chefe ou a algum superior e “família” corresponde ao cônjuge.

Um dos pontos altos do estudo é a relação que Adorno traça entre a irracionalidade sobre a qual se funda o saber do astrólogo – capaz de articular duas esferas racionais (a psicologia popular e a astronomia) sem demonstrar como esta articulação se dá (é um puro argumento de autoridade) – e a racionalização promovida na modernidade, com a divisão social do trabalho e a especialização do conhecimento. A única arma contra este saber autoritário e irracional que a racionalização instrumental produz seria uma teoria crítica capaz da “integração do saber” de que fala Walter Benjamin no seu Curriculum Vitae e no seu comentário ao método do biólogo Edgard Dacqué: “esta integração de áreas, que desmonta as barreiras do conhecimento especializado e do pensar especializado, e que pressiona a unidade e a continuidade da opinião, permanece em contraste distinto com a forma tradicional de tal unidade: o sistema”, pois o sistema não rompe com as fronteiras territoriais entre as disciplinas, apenas as conecta.

Neste sentido, As estrelas descem à Terra abre um enorme leque de outros possíveis objetos de análise, entre os quais (e é o próprio Adorno que sugere) a ficção científica - estudo que, diga-se de passagem, foi recentemente levado a cabo por Fredric Jameson em seu Archaeologies of the Future (ainda que nele não se dê a devida importância histórica tão martelada por Oswald de Andrade ao “descobrimento” do Novo Mundo na literatura utópica, que Jameson associa ao sci-fi). Além disso, as próprias colunas de astrologia permanecem atuais e presentes na maioria dos jornais diários – conforme notado pela apresentação à edição brasileira escrita por Rodrigo Duarte (e que relaciona o estudo sui generis de Adorno ao panorama mais geral de suas reflexões) – e recheadas com novos elementos de conteúdo (pois o modelo padrão do funcionário de “escritório” da década de 1950 em que Caroll Righter baseava a figura do leitor já não vige mais) e de forma (já que, com as novas tecnologias amplificam-se a repetição e o plágio também na confecção da previsão dos astros. As passagens parisienses do século XIX podem até ser bem mais charmosas que os atuais shopping centers. Mas um saber sobre o capitalismo que não se quer autoritário não pode desprezar nem os objetos mais ínfimos deste, sob pena de mimetizar a sua lógica.

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.