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El origen del narrador
Actas completas de los juicios a Flaubert y Baudelaire


Buenos Aires: Mardulce, 2011


Julgamento do autor

por Daniel Link

Publicado originalmente no Perfil de 28 de agosto de 2011. Disponível em: http://linkillo.blogspot.com/2011/08/juicio-al-autor.html Tradução de Alexandre Nodari.


Diante da lei

Lidos os julgamentos contra Flaubert (declarado inocente) e Baudelaire (declarado culpado) em seqüência, como propõe a editora Mardulce, conclui-se que Baudelaire não poderia senão ser condenado, precisamente pelas alegações da promotoria (Ernest Pinard) e, ainda mais, da defesa (Antoine Marie Jules Sénard) a propósito das acusações de “ofensa à moral pública e ofensa à moral religiosa” feitas contra Madame Bovary, o primeiro romance de Gustave Flaubert.

Gustave Louis Chaix d'Est-Ange, o advogado de defesa de Baudelaire, cujo livro As flores do mal foi condenado (e seu autor e editor multados), não tinha chance alguma depois do brilhante exercício de crítica literária exercido por Sénard, que fixa de uma vez por todas o sentido de Madame Bovary e, sobretudo, a relação entre o público leitor e as ensonhações poéticas.

Em ambos os julgamentos o promotor foi o mesmo, Pinard, de modo que o ônus da acusação é a mesma e os argumentos são idênticos. D’Est-Ange copia alguns dos argumentos de Sénard, mas o que não pode fazer, em circunstância alguma, é desamarmar a brilhante apresentação de seu colega, segundo a qual a culpa não é de Emma, nem tampouco de Flaubert, mas sim da educação que a moça pobre da província recebeu, elevada demais para sua classe. A culpa é da poesia e das ensonhações, o que se chama, desde então, bovarysmo e que serve para designar uma síndrome da qual sofrem tanto Emma, quanto, antes que ela, Alonso Quijano, pouco tempo depois, a criança imortalizada por Lewis Carroll, autor pré-rafaelita, em Aventuras de Alice no país das maravilhas, e até a fã de La asesina de Lady Di (2001) de Alejandro López.

No processo contra Madame Bovary, Pinard perde. Mas perdem muito mais o próprio romance e, acima de tudo, Gustave Flaubert, cuja crueldade, deplorada até pelo seu advogado de defesa, restará como seu selo distintivo para sempre.

Os livros 
Madame Bovary (1856) e As flores do mal (1857) não se assemelham em quase nada, como tampouco se assemelham seus autores. Um romance (o primeiro de um autor quase desconhecido), por um lado, e uma recompilação poética de toda a obra (em sua maioria já publicada em revistas) de um reconhecidíssimo poeta, por outro.

Assim como Flaubert é cruel como narrador, é mesquinho como leitor, o que é suficientemente provado pelas cartas incorporadas como apêndices na edição destes processos. Baudelaire, em contrapartida, não apenas nos legou As flores do mal, não apenas traduziu Edgar Allan Poe ao francês, mas também propôs, em O pintor da vida moderna, uma teoria das relações entre arte e sociedade que o século XX (através de Benjamin) utilizaria como chave de leitura das vanguardas. O artigo sobre Madame Bovary (que está incluído nesta compilação) é prova de sua generosidade e sua acuidade leitora.

O que Flaubert tem de maníaco e megalômano (seu ódio à burguesia e ao senso comum parte dessa base), em Baudelaire (que chama sua obra organizada de um “mísero dicionário da melancolia e do crime”) é curiosidade e desejo de absoluto. Baudelaire é o autor do Mal, Flaubert é o escritor da estupidez e da maldade.

De fato, o que está em jogo na massa discursiva que constitui a obra de um e outro (e nos correspondentes processos penais) tem a ver, antes de tudo, com a noção (moderna) de autor: seu aparecimento e desaparecimento simultâneos da cena (do crime) e o modo em que a responsabilidade (penal e ética) permite relacionar certos enunciados com certos nomes próprios (não é sobre outra coisa que dão testemunho estes processos, deslocados sob o nome El origen del narrador). A obra, a partir de Flaubert e Baudelaire e para sempre, será um modo de vida, uma fábrica, ao mesmo tempo, de acontecimentos de discurso e de experiências.

Flaubert
Em 16 de janeiro de 1852, Gustave Flaubert escreveu, em uma carta a Louise Colet a respeito de Madame Bovary, o romance que estava redigindo: “O que me parece agradável, o que eu queria fazer, é um livro sobre nada, um livro sem vínculo externo, que se sustentasse por si mesmo, pela força interna de seu estilo, como a poeira se mantém no ar sem que seja sustentada, um livro que quase não tivesse argumento ou, ao menos, cujo argumento fosse quase invisível, se fosse possível. As mais belas obras são as que possuem menos matéria (...). Creio que o futuro da arte está nestes caminhos” (o romance, os manuscritos, suas correções, a análise genética, os materiais relacionados com eles e as alegações do processo podem ser lidas em http://www.bovary.fr/).

Pobre Flaubert. Quão pouco preparado estava para cumprir com esta utopia radical de l’art pour l’art (inimiga, enquanto tal, de toda forma de realismo). Ninguém pôde (nem jamais poderá) ler Madame Bovary como um “livro sobre nada, um livro sem matéria”, na medida em que há nele um conjunto de preocupações éticas e políticas entre as quais se costuma destacar os efeitos da literatura sentimental nos corações e nas mentes febris das pobres garotas, ou das garotas pobres, provincianas. E também a preocupação (moral e pedagógica) pela estupidez, a sólida estupidez da ideologia pequeno-burguesa.

Um exercício mais acabado desta “literatura sobre nada”, de um “relato sem matéria” é Sallambô (1862), romance no qual há muitos momentos adequados para sustentar esta utopia, como o relato da primeira entrada em Cartago. Spendius e Matho, que lideram os mercenários que sitiam a cidade, atravessam clandestinamente a muralha. Entram pelo aqueduto. O relato é vibrante, exato, e faz um uso do suspense que os roteiristas de Indiana Jones ou de Lara Croft aproveitariam depois.

Sallambô sim é decididamente um “relato sobre nada” que se sustenta só pela força interna de seu estilo, que se mantém no ar, como a poeira, sem que o sustentem. É, já, indubitavelmente, a utopia estética do século XX: uma arte sem matéria, uma arte sobre nada. O nada (o vazio de sentido) brilha ali com um esplendor que o próprio Flaubert não chegou a arriscar nem sequer em Bouvard e Pécuchet (1881), essa denúncia da estupidez humana, e que Baudelaire adivinhou nem tanto com suas Flores do mal (1857), e sim com suas traduções de Poe, cujos textos fundam a literatura “de evasão” do século XX.

Mas Madame Bovary ainda se coloca do lado do imoralismo (na perspectiva do promotor) ou do afã moralizador (na perspectiva triunfante da defesa).

Mr. Pinard insiste que a novela é pictórica e que, com suas descrições magistrais (se Flaubert soube fazer algo, foi descrever), embriaga os sentidos e desperta sentimentos lúbricos. É provável que nisso não se equivoque e os fragmentos que seleciona para apresentar ao tribunal são os momentos mais primorosos (nos quais melhor se percebe a tenacidade maníaca do praticante dedicado de le mot juste). Mr. Sénard contra-argumenta: é verdade, mas não se pode descontextualizar. Flaubert fez isso, mas não é um “fabricante de quadros lascivos”, e sim um moralizador. A melhor prova disso é a atroz morte por envenenamento a qual condena Emma, ao fim do romance, “um suplício nunca antes visto”. O advogado de defesa cita o veredito eminentíssimo de Lamartine: “Você me feriu, me fez sofrer literalmente! A expiação é desproporcional em relação ao crime!... Você se excedeu e feriu meus nervos” (p. 63).

Esse é Flaubert: aquele que quis escrever uma morte horrenda e, para poder fazê-lo, inventou uma peripécia que conduzisse a esse final e criou uma vida que atravessará esse transe terrível para sempre.

E esse é o livro leve que Flaubert pretendia que parecesse “como que quase não tivesse argumento”. Para o promotor (equivocado), o argumento é excitar a lubricidade. Para o defensor (que acerta), o argumento é condenar a educação sentimental por meio de relatos, poemas e ensonhações que estão acima da classe social a que Emma pertence, “fora de sua esfera”, por culpa da “autoridade imprudente de um pai que decide mandar educar em um convento a esta garota nascida na fazenda e que devia casar-se com um fazendeiro, com um camponês” (p.71). É possível pensar em crueldade maior, é possível sustentar um ponto de vista mais misógino que esse?

Sim, Flaubert é, como sua defesa pretende, um moralista (o mais cruel, o mais implacável), e por isso seu livro e ele mesmo perdem qualquer possibilidade de sustentar o vivente no próprio instante em que o tribunal os absolve da acusação dirigida contra eles.

Baudelaire
A linguagem encrática da cultura, sustentada pelo Estado, está em todo lado: é um discurso difuso, expandido e pleno. Não há lugar nele para o outro que seria a arte (paradoxo de nosso tempo: a arte como o outro da cultura, a cultura como a antítese da arte). É a hegemonia da cultura industrial, um pan-esteticismo que nos envolve como uma casca pegajosa e opaca. E tudo vem desse desejo não realizado de Flaubert de fazer livros sem fundamentos e sem conseqüências éticas. Poucos meses depois de seu processo, Baudelaire é citado sob as mesmas acusações, por As flores do mal. O poeta perde o julgamento e é condenado a pagar 300 francos de multa (que, depois, a Imperatriz reduz a 50) e seu livro sofre a supressão de seis poemas.

São inúteis as alegações do advogado de defesa, que ressalta que tudo o que Baudelaire escreveu já era conhecido na literatura moderna da França (para não falar nos textos da antiguidade clássica). Inúteis são também seus protestos com relação à apresentação do Mal (sobre o qual Baudelaire assinala que é uma força operante [força tarefa]).

O tribunal aprendeu com Flaubert o risco implicado em distribuir encantamentos, pronunciar palavras proibidas, sussurrar carícias nos ouvidos das garotas recém-alfabetizadas: ao fazê-lo, as camponesas, as fiandeiras, as funcionárias do telégrafo, e as empregadas domésticas se imaginarão a si mesmas como possibilidades de vida (não acorrentadas à moral e aos códigos de comportamento que a época, a classe e a geografia lhes dita), como potências puras.

Emma não teria sido a vítima exemplar dessas leituras enganosas, desses romancezinhos de amor, dessas canções populares, dessas paisagens escapistas, desses poemas equívocos?

Em sua leitura de Madame Bovary, contemporânea ao processo em que é vítima, Baudelaire assinala com extraordinária perspicácia: “Não digamos, pois, como tantos outros afirmam com um rasteiro e inconsciente mau humor, que o livro deve sua imensa fortuna ao processo e à absolvição” (não o digamos, mas registremos essa circunstância: a figura retórica que Baudelaire usa aqui chama-se preterição).

E Baudelaire prossegue, em sua tentativa de resgatar Emma do lugar terrível (“vítima da sociedade”) em que foi colocada, em primeiro lugar, pela obscena tecnologia narrativa de Flaubert, “um titereiro” que não faz outra coisa que combinar mecanicamente uma paisagem (“a província”), os atores mais insuportáveis (“as pessoas comuns”), o instrumento mais miserável (“o adultério”) e uma mulher bonita como algo trazido e levado pelos ventos.

Apesar “de toda a sua dedicação de comediante” (de um Flaubert preocupado acima de tudo pela maldade e pela estupidez), Baudelaire consegue resgatar Emma do lugar mecânico em que o romancista a colocou: “Ao autor, para culminar completamente sua façanha, não restava nada além de despojar-se (na medida do possível) de seu sexo e fazer-se mulher”. O devir mulher (do autor) que Baudelaire ressalta é correlato do devir homem do personagem: “este curioso andrógeno conservou todas as seduções de uma alma viril em um encantador corpo feminino” (p. 180).

Baudelaire, o condenável, salva Emma, a condenada, retirando-a do espaço tecnofílico e equívoco de l’art pour l’art e colocando-a em uma dimensão ética, a partir da qual não apenas se sobrepõe à crueldade misógina de Flaubert (“apesar da sistemática dureza do autor”), como também o arrasta, fazendo-o devir mulher com ela, tornando-se ela mesma guerreiro espiritual, “Palas armada”, Lady Macbeth.

Nada de moral nem de imoralidades: o que está em jogo em Madame Bovary (“insignificante ficção burguesa” para Baudelaire) é sublinhado por um poeta condenado, é a própria política do vivente, a capacidade de pensar-se como possibilidade pura e radiante. Emma triunfa ali onde Flaubert fracassa.

Textos anteriores:

11 Teses para a Universidade Indígena

O Homem Como Suporte Vivo de uma Arquitetura Biológica Imanente

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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.