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Meus encontros com Kafka


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Nota dos editores: Recentemente, foram publicadas duas traduções dos aforismos de Franz Kafka: uma de Modesto Carone, com todos os 109 aforismos, no primeiro número da revista serrote (março de 2009), e, outra, com 28 deles, em seleção e tradução de Silveira de Souza (28 Desaforismos, Florianópolis: EdUFSC, 2010). O SOPRO republica abaixo uma tradução pioneira de 20 dos aforismos, feita por Otto Maria Carpeaux em 1943, quando ainda não haviam sido traduzidos para nenhuma língua. A publicação original se deu no número 56 da Revista do Brasil (dezembro de 1943, o ano VI da terceira fase da revista, quando era dirigida por Octavio Tarquinio de Sousa). O exemplar consultado pertence ao acervo do NELIC (Núcleo de Estudos Literários e Culturais/UFSC). As imagens que acompanham o texto são reproduções de fotografias da série “As ruínas de Detroit”, de Yves Marchand e Romain Meffre (http://www.marchandmeffre.com/). A premissa dos fotógrafos nas suas atuais produçãos é, conforme se lê no seu website: “Ruínas são os símbolos visíveis e os marcos de nossas sociedades e de suas mudanças, pequenos pedaços da história em suspensão. O estado de ruína é essencialmente uma situação temporária que acontece em algum ponto, o resultado volátil de mudança de era e da queda de impérios. Esta fragilidade, o tempo expirado mas ainda assim correndo rápido, nos leva a observá-las uma última vez: estar consternado, ou admirar, fazendo-nos interrogar sobre a permanência das coisas. A fotografia nos pareceu um modo modesto de manter um pouco deste estado efêmero” (tradução do inglês feita pelos editores)

 


FRANZ KAFKA - 20 AFORISMOS
Seleção e tradução de Otto Maria Carpeaux

Toda a obra de Franz Kafka tem qualquer coisa de parábolas desdobradas em romances e contos; o espírito de Kafka, próximo de Pascal e Kierkegaard, gostava de exprimir-se em parábolas condensadas, em aforismos. Esses aforismos, publicados postumamente, ainda não foram traduzidos para nenhuma língua. A seleção seguinte, vertida diretamente do alemão, baseia-se na edição das Obras completas, por Max Brod, Praga, 1935-1937, vol. V, pg. 279-287, e vol. VI, pg. 198-239.

O tradutor [1943]

1. Pelo próprio ato de viver, ele embaraça o seu caminho. O embaraço, porém, dá-lhe a prova de que ele vive.

2. Certas pessoas negam a miséria, referindo-se ao sol; ele nega o sol, referindo-se à miséria.

3. O motivo de o juízo da posteridade sobre o indivíduo ser mais certo do que o juízo dos contemporâneos, encontra-se no próprio morto. O indivíduo desenvolve-se só depois da morte, quando sozinho. A morte é para o indivíduo o que é a tarde de sábado para o limpador de chaminés: lava-o da fuligem.

4. Todas as virtudes são individuais; todos os vícios são sociais.

5. Ele tem dois adversários: o primeiro combate-o por trás, da Origem; o outro barra-lhe o caminho para a frente. Ele luta contra os dois. Para dizer a verdade, o primeiro, propulsando-o, ajuda-o contra o outro, e, do mesmo modo, o outro, repelindo-o, ajuda-o contra o primeiro. Mas isto só em teoria. Pois não há só os dois adversários: existe também ele próprio – e quem conhece as próprias intenções? É o seu sonho que num momento inesperado – e deveria ser uma noite, tão escura como nunca houve igual – abandona o campo de batalha, elevado que foi, graças à sua experiência na luta, à condição de juiz dos dois adversários.

6. O verdadeiro caminho é o caminho sobre uma corda, estendida não no alto, mas no chão. Corda que parece destinada antes a fazer tropeçar que a ser atravessada.

7. Há dois pecados capitais, dos quais derivam todos os outros: impaciência e relaxamento. Por efeito da impaciência, foi o homem expulso do paraíso; por efeito do relaxamento, lá não voltará. Mas... também pode ser que não volte por efeito da impaciência.

8. O movimento decisivo da evolução humana é permanente. Por isso, têm razão os movimentos de espírito revolucionários, que declaram sem efeito todo o passado: nada ainda aconteceu.

9. Um dos mais eficientes meios de sedução do Demônio é a provocação à luta. É como a luta com mulheres, que acaba na cama.

10. Leopardos irromperam no templo e esgotaram os vasos sagrados; isto se repetiu sempre. Enfim, é possível imaginá-lo, torna-se parte da liturgia.

11. Tu és a prova. Mas não existe aluno.

12. As gralhas afirmam possuir o poder de destruir o céu. Isso está fora de dúvida, mas nada prova contra o céu; pois “céu” significa: ausência de gralhas.

13. É só por nossa noção de tempo que falamos de Juízo Final; na verdade, é um permanente tribunal de emergência.

14. Na luta entre o Mundo e ti, acompanha ao Mundo; não é lícito defraudar ninguém – nem o Mundo, portanto – da sua vitória.

15. Uma fé como a guilhotina; assim leve, assim pesada.

16. Existe conhecimento do diabólico, mas não existe fé nele; pois não existe mais diabólico do que existe.

17. Até mesmo o mais conservador tem força para o radicalismo de morrer.

18. O ócio é o princípio de todos os vícios e o coroamento de todas as virtudes.

19. O Messias só virá quando já não precisarmos dele.

20. Muitos se queixam de que as palavras dos sábios são sempre só parábolas, inúteis na vida quotidiana; e só esta nos é dada. Todas as parábolas dizem apenas que o incompreensível é incompreensível; e isto já sabemos. Disse um: “Porque resistes? Se obedecesses às parábolas, transformar-te-ias em parábola, e estarias livre da vida quotidiana.” Outro disse: “Eu gostaria de apostar em que isto também é uma parábola.” O primeiro respondeu: “Ganhaste.” O outro disse: “Mas infelizmente, só na parábola.” E o primeiro: “Não, na realidade; na parábola, perdeste.”

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.