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Coisas de idioma e folclore

por Raul Bopp

Nota dos editores: Publicado originalmente em Lanterna Verde, n. 8, Rio de Janeiro, 1944. pp. 243-247. O texto teve sua ortografia atualizada.


O contato com a terra faz a gente pensar em ponto grande. O espírito se recobra de valores mais fortes. Vontade de ocupar espaços, reunir distâncias para viagens imaginárias.

O Brasil vinha vindo a passos lentos, recolhendo horizontes todos os dias. Deuz fazia as florestas e os negros trabalhavam no engenho. O barulho do mato e a queixa das moendas criaram vozes que ainda esperam versos. Essas vozes se acomodam e se dissolvem em música. Tomam a métrica inconsciente e caem na boca anônima do povo. Estão aí, como valores incógnitos, os filões do nosso lirismo.

Nas bases da nossa formação história há encadeamentos profundos. As raças se encontraram sem cartões de visita. Sem auto-biografias. Cada uma tinha uma história diferente. O índio vinha do mato, com uma educação imemorial de mato. O negro não tinha história. É como diz aquele verso:


... trazia no sangue a voz de ignoradas origens.

As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história.
A tua primeira inscrição em baixo relevo foi uma chicotada no lombo.

A geografia determinou os nossos tipos rurais, de acordo com a necessidade da vida. E assim, cada grupo foi criando um cancioneiro próprio. O negro trabalhava nas lavouras. Nas horas de folga brincava de rei ou esvaziava a alma no terreiro (lirismo filtrado no carvão de pedra africano).


Ai sinhá, como é teu nome?
Meu sinhô, não tenho nome.
Me chamo chila riscado,
Camisa daquele home.

Têm também significação de alcance freudiano os embalos-de-rede e as “berceuses”, que chamamos cantigas de ninar ou “cata-piolhos”.


Ó Cata-piolho

Me empresta o teu sono
Vou ver o Rei-Congo
Na serra da Fulô

Yayá se deitou-se
Tirou a camisa
Mas veio o Rei-Congo
E... “ningue-ningue nhum”...

Depois fez quentinho
Rei Congo drumiu
Fugiu por uma porta
E... “ningue-ningue nhúm”

Com as canções da ama-de-leite, as sugestões de romance vão se filtrando e ressoando no fundo da alma do nenê brasileiro. Ele traz de berço aquisições longínquas, como idéias ingrávidas. Essas vozes nos acompanham. Um dia elas tomam formam. Incorporam-se e propagam-se no nosso folclore.

*


O caboclo em algumas regiões é um tipo triste. Encerra-se numa nostalgia preguiçosa. Acocóra-se à porta do rancho, enrolando demoradamente o cigarro de palha. Não conversa com a mulher. O gatinho magro no terreiro mia desconsoladamente. Ninguém sabe o que passa atrás do pensamento dele. Ele vai recuando com a linha do mato, como uma sombra – dentro daqueles meio-dias enormes juntando sol. O céu é um acompanhamento. À noite na floresta desembarcam vozes. Árvores incham na sombra. Chega o Curupira. Curupira tem fome. Corta um pedaço da perna. A carne começa a gritar na barriga.

O caboclo crê e não crê nessas coisas. Os seus anais totêmicos não oferecem explicação. A floresta não gosta de ser interrogada.

Eu gosto é dos causos que ele conta, com umas doses de humor, em dias de animação – temas cifrados do nosso fabulário. Por exemplo:

– Um animal que está procurando um outro, ao lhe encontrar o rasto, pergunta com uma cômica seriedade: – Ó rasto, onde está teu pai?

– Do jabuti, que quando se acorda move a cabeça invariavelmente da esquerda para a direita, ele diz: – Esse bicho sabe ler, mas não sabe escrever.

– Um homem estava trabalhando no arado. O índio, espírito de Macunaíma, ao ver aquilo pela primeira vez, pergunta: – Ué. Está estragando terra?

– Para dar idéia da dureza de uma árvore ele conta, por exemplo, que o acapú, madeira muito resistente, 100 anos depois de cortado, sentiu pela primeira vez uma ferroadinha na casca. Então exclamou: – Ai que me cortaram.

*

O índio é de uma raça que não ri. Sombrio. Tem uma sensibilidade escondida. Conversa com as árvores. Entende o mato. Respeita o rio. Quando chega às margens pede: – Benção meu avô. Quando à noite atravessa uma lavoura, urtiga primeiro os pés, para não acordar as plantas que estão dormindo.

Tem além do mais uma filosofia muito simplista. Vou contar uns casos:

– Uma vez, o general Couto de Magalhães passou uns tempos num dos tributários do alto Tocantins e quando estava pra voltar perguntou a um índio que se afeiçoara muito a ele, se ele não queria ir junto conhecer cidade. Ele iria ver uma porção de coisas: casas, umas em cima das outras; andar a toda pressa dentro de carros movidos à máquina. Iria vestir outras roupas, gravata, colarinho. O índio ouviu toda essa explicação. Ouviu. Ouviu. Depois disse: – Ué, meu padrinho. Mas então porque é que o senhor não fica aqui, que a gente não precisa de nada disso?

*

– Em uma certa tribo de índios, de acordo com os augúrios, o cacique tinha poderes totais somente dentro de uma determinada região, por exemplo: limite entre dois grandes rios. Acontece que quando a tribo estava desgostosa com o Chefe, ela não se revoltava, como se dá comumente em outras formas de governo. Eles tinham um processo muito simples: mudavam apenas de lugar e deixavam o chefe sozinho.

*

O caboclo da Amazônia, dentro daqueles cenários grandiosos, com o maior rio do mundo, a maior floresta do mundo, tem tudo o que ele precisa. O rio lhe dá tudo, inclusive o transporte. É comum reunirem-se os caboclos na época das farinhadas, fazerem “putirum”. Uns ajudam os outros. E se divertem fartamente com isso. Talvez uns versos possam dar idéia de uma dessas cenas:


Vamos lá pô putirúm
Putirúm. Putirúm.
Vamos lá fazer tapioca
Putirúm. Putirúm.

Casão das farinhadas grandes,
Mulheres trabalham nos ralos
mastigando cachimbos.
Chia a caroeira nos tachos.
Mandioca-puba pelos tipitís.

– Joaninha Vintém, conte um causo.
– Causo de quê? Qualquerum.
– Vou contar caso do Boto.
Putirúm. Putirúm.

Amor chovia
Chuveriscou.
Tava lavando roupa, maninha,
Quando boto me pegou.

– Ó Joaninha Vintém
Boto era feio ou não?
– Ah, era um moço loiro, maninha,
tocador de violão.
Me pegou pela cintura
– Depois o que aconteceu?

–Gentes...
Olha a tapioca embolando nos tachos.

– Mas que boto sabido!
Putirúm. Putirúm.

 A propósito, talvez seja preciso uma explicação. O boto é uma espécie de Don Juan da Amazônia, sedutor de donzelas. Aparece às escondidas. Depois desaparece. Afunda-se no rio e nunca mais volta. De certo modo ele é responsável por muitos acontecimentos em família. Acomoda casos de paternidade. Ao mesmo tempo o boto constitui por assim dizer uma réplica do caboclo a alguns artigos do Código Penal.

Em certas regiões do fundo da Amazônia encontram-se comumente desses solecismos sociais. Acredita-se por exemplo que certas árvores emprenham moças, quando passam por elas. Daí a explicação de alguns sobrenomes:


– Eu sou filho do Taperebá.
– Sou filho do Inajá, de Sousa.

*

Todo esse material colorido e variado tem naturalmente profundos reflexos no idioma. Manifesta-se em expressões que evidentemente não coincidem com fórmulas vernáculas. As raças trouxeram contribuições inteiramente novas, cheias de música. Expressões idiomáticas que ainda não se aclimataram na atmosfera acadêmica.

Eu mesmo, em minhas viagens pelo interior, com interesse no nosso folclore, catei maneiras-de-dizer que escapam dos moldes comuns da gramática, entre elas, por exemplo, o diminutivo carinhoso de alguns verbos no infinito ou no gerúndio:


Estarzinho

Fazer dórmerzinho
Dóizinho de quem está longe.
Fez quérzinho de experimentar corpo.
Você está com um fedendinho de cachaça na boca

*

Esse é um idioma, pode-se dizer, escrito à lápis de cor. Quase infantil. A ternura de raças em lá-menor manifesta-se em formas próprias, em palavras com íntimas ressonâncias.

O surrealismo brasileiro está aí, livre, desgovernado, fundando sílabas novas, com uma frescura primitiva. É preciso apenas sensibilidade para senti-lo.

*

Numa visão de conjunto – 180 graus de panorama nacional –, a gente se dá conta que o Brasil, com elementos que entraram na sua composição étnica, é radicalmente diferente. Portanto as suas expressões de cultura tem que ser também diferentes.

Não era possível um ajustamento com o que existia. Continuar de mãos dadas com uma literatura ciosa de guardar os “santos óleos” do idioma, com uma casticidade de além mar. Foi preciso um movimento novo, arrancado da terra, com sabor de terra, para advertir-se da realidade brasileira. Acabar com um verbalismo vasto de formas acadêmicas e com “anfitrites” de importação. Mostrar um Brasil novo, sem imitação, desumbigado e livre, vivendo suas paisagens em cores próprias:


Florestas aos empurrões.

– Água, como é teu nome?
Ai que eu era um rio solteiro
Vinha bebendo o meu caminho
Mas o mato me entupiu.

Agora estou com o útero doendo, ai ai.

Grita sozinha lá adiante, dentro do mangue,
Uma seriquára, quára, quára...

*

A literatura que nos vinha da Europa (refiro-me já se vê às épocas normais, d’avant-guerre) não podia de modo algum concordar com o paladar brasileiro. A paisagem e o homem do outro lado do Atlântico são diferentes. Os hábitos são diferentes. Florestas plantadas. Geometrizadas. Árvores brincando de somar: dois a dois. Tudo medido. Calculado. Águas obedientes. Plantas contratadas à prazo fixo. Tanto de fosfato e de nitrato tem que dar tanto de produto. Vegetações medrosas chocando em casinhas de vidro, com medo das geadas.

No Brasil não há disso. A terra briga com o homem. Vem o sol, queima tudo. O rio incha, leva tudo. Daí um certo respeito às forças cósmicas.

Quando houve há tempos uma epidemia no Ceará, o padre Cícero mandou toda a gente soltar foguetes pra espantar os micróbios. O Nordeste parecia uma festa. O mais curioso é que tudo deu certo.

O Brasil é mesmo uma terra com soluções de milagre. Certa ou não, há em tudo isso uma ingenuidade gostosa. O literato é que não sabia acertar.


(Trecho de uma conferência na “Southern California University” – Clube de português).




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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
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