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O SOPRO republica abaixo o Diário de Terror, de Lúcio Cardoso, escrito em 1952. O manuscrito dos Esboços para uma teoria da danação (subtítulo do texto) encontra-se depositado no acervo do escritor na Casa de Rui Barbosa. Reproduzimos aqui a transcrição presente na edição crítica do romance Crônica da casa assassinada, coordenada por Marco Carelli e publicada na coleção Archivos, da UNESCO.



Diário de Terror
(esboços para uma teoria da danação)

por Lúcio Cardoso

(Tudo)
Toda idéia que nos ultrapassa sem tomar sua medida no homem, nos aniquila. Para nos ultrapassarmos, temos primeiro de atingir o limite-homem. No mais extremo limite, começamos a ser mais do que homens.

Nenhuma proposição para a estabilidade – não há estabilidade. O ser não é uma estrutura fixa num eixo, mas qualquer coisa indeterminada, fluídica que oscila de um pólo para outro, como a noite para o dia.
Tudo é por vir – e esta é a fatalidade.

Num certo sentido, não há futuro para mim, porque não o atual; sinto-me arder como um facho de exceção, e o que me queima não é o meu possível, mas o meu definitivo, e este é permanente. Sinto-me voluntariamente sem perspectivas, porque as perspectivas de há muito deixaram de existir para mim (no sentido em que uma perspectiva designa concentração, redução do ser a um espaço definido) e um caminho no terreno do dilatado onde sou ao mesmo tempo minha vítima e meu algoz, meu ser reconhecido e meu ser sem fronteiras, portanto meu ser sem tempo. – O futuro não existe porque de há muito eu me constitui o meu definitivo futuro. É o único modo de se inaugurar a época do terror.

Chamo terror à época em que é possível o pleno conhecimento do ser, não de suas condições psicológicas, mas de suas prerrogativas abissais e estranhas. Terror é a época do conúbio com o abismo, não porque conquistemos uma fictícia liberdade, mas porque a liberdade nos conquista, somos ela própria, voltados para o segredo que é o nosso verdadeiro clima.
O terror é uma época de ultrapassamento. É um impulso único e violento de todo o ser para regiões de intempéries e de insegurança; é uma dilatação anormal para zonas inabitadas e desumanas, onde somos o único guia, o único farol, além de fronteiras que não nos seria permitido atravessar em épocas comuns, e onde encontramos finalmente a essência esquiva, ambiciosa e cheia de espanto que nos governa.

Não compreendo o romance como uma pintura, mas como um estado de paixão; não quero que o meu possível leitor encontre tal ou tal árvore, tal ou tal banco, semelhante ao banco, à árvore que ele conhece. Quero que através de aparências familiares, ele depare em meus escritos uma árvore e um banco recriados através de um movimento de paixão, e que assim designados, reconhecidos, ele possa situá-los em meu espírito como acessórios da minha atmosfera de paixão e tempestade.

Gostaria que meus leitores se transportassem a um estado de tão alta emoção passional, que isto lhes destruísse o equilíbrio e eles se sentissem fisicamente doentes. As grandes emoções interiores sacodem até o âmago a estrutura física do ser – e como não há maior ambição para um escritor do que causar a emoção mais violenta e mais perigosa, gostaria que aqueles que me acompanham se sentissem dominados, violentados até a saturação, e me rejeitassem com violência, o que seria uma demonstração, da minha força, ou me aceitassem como um mal irremediável, o que seria um sinal da minha profundeza.

O homem de maior espírito, não é o de uma única resposta, nem o da resposta mais constante, mas o de várias respostas ao mesmo tempo, e o mais mutável quanto à certeza delas.

Durante muito tempo procurei obter uma visão pessoal do mundo, e não o consegui senão quando tive uma visão pessoal de mim mesmo; em vez de limitar o mundo por idéias falsas que seriam adotadas por mim, limitei-o a uma expansão do meu ser, a uma dilatação interior que me garantiu um conhecimento e uma avaliação mais ou menos autêntica do existente. Porque não se cria nada vindo do exterior, mas em permanente colaboração com suas forças mais obscuras e mais indeterminadas.

Se me perguntassem o valor essencial desse período de tensão que agora vivo, diria que é simplesmente a impossibilidade de mentir ou de aceitar a existência fora dos seus postulados reais. Esta é a minha liberdade, e tão difícil e perigosa quanto seja ela, é o que garante a autenticidade do que digo, e a certeza de que uma nova época nasceu para mim.

Não há no momento, nada que eu olhe sem desconfiança; nem a minha família, nem os meus amigos, nem as leis que me ensinaram, nem os autores que me foram prediletos, tudo isto foi sacudido por um vento de verdade e o que me faz fugir e preferir o isolamento, é a necessidade de investigar a mim mesmo e a extensão dos destroços que povoam a minha certeza.

O terror não é um movimento de abertura e de esclarecimento, mas ao contrário, uma ocasião de fuga, uma possibilidade de segredo e de renúncia à luz do dia.

Chamo a isto uma completa impossibilidade de viver nos termos comuns do cotidiano; é a vida comum que me expulsa, que me faz vagar, que me torna nômade e sem descanso o olhar calado e ausente do campeiro. Porque, ao admitir a extraordinária invasão de elementos subterrâneos e excepcionais que invadem o meu procedimento comum, teria de viver como escolhi viver agora: só, como as onças da floresta, como esses animais que encontro sozinhos e patéticos – como são reais, como são verídicos no silêncio da paisagem! – e que também participam da consciência e do terror.
Porque o terror é sobretudo a mais espantosa solidão.

Seria fácil, para um curioso, destacar ao longo dessas páginas as atitudes de força e de violência que em todas as situações reclamo para o homem; não é ela no entanto uma atitude superficial, uma escolha feito segundo tendências da sensibilidade, mas uma crença firme, paradoxal e essencial de que só através das situações extremas o homem encontra a si próprio, na tensão completa do seu ser, no despojamento de sua essência cotidiana, no esmagamento de seus postulados comuns e sem vitalidade. Reclamo o ser de emergência e de prontidão, destinado a renovar na angústia e no medo todos os vícios de sua criação moral.  Reclamo a total solidão e a total liberdade; só dessas zonas extremas é possível reinaugurar alguma coisa nova, e se assim falo é porque já sinto no rosto o vento de novas paisagens, e prefiro inventar o mundo sobre os destroços do que foi meu, do que imaginá-lo como poderia ser, debaixo dos restos do que fui eu um dia.

O terror é a época da criação no centro das catástrofes.

Para mim não têm valor as teorias estáticas, os ideais paralisados, o que me toca são os movimentos da dinâmica e da propulsão, ainda que a meta seja o infinito, e o horizonte por descobrir o nada.

Não aprendi propriamente coisa alguma, mas somente assimilei o que fez desenvolver em mim e o que desenvolver ainda o ser que sou. Não há fantasia e nem ornato nesta criação do vivo; apenas, por uma fatalidade, vim removendo de suas brumas e de numerosas sombras, a força que me habita e que me constitui real e independente.
A verdade foi a minha pedra de toque, pois a verdade, no seu sentido mais absoluto, sempre me apaixonou, até à náusea, até ao espasmo. Os seres ou não me interessam, por impossibilidade ou por excesso de conhecimento, ou me interessam até a paixão, até a afronta – os que eu amei, esgotei-os até a saciedade, porque a minha curiosidade era mortal e a minha paixão era maior do que a força deles, e adivinhando-os tanto, eu poderia assassiná-los.
Quando eu ainda não havia descoberto em mim essa ânsia da verdade, imaginava que era a morte violenta o que me interessava em suas almas; soube depois que era apenas a possibilidade de minha ressurreição. De todas essas águas de pântanos acumulados em tantos desertos diferentes, e que no entanto são apenas disfarces da mesma face do deserto, alimentei durante anos o meu ser, e muitas vezes pensei tê-lo destruído para sempre. Mas apenas educava o nômade que hoje sou, e se agora posso bater tantas areias solitárias, é que aprendi a beber água dos charcos, e a pesar na minha carne, o que se transforma em sangue que é vida, e o que se transforma em pus, que é morte.

Interrogo essas folhas para ver o caminho andado, e elas não me causam senão tédio e cansaço, de tal modo eu roço o real sem atingi-lo ainda no seu cerne. Ah, não sou ainda senão o profeta de mim mesmo. A revelação virá a seu tempo – e depois da revelação virá a morte. Em dias futuros, cuja chegada não posso prever, talvez venha a ressurreição. Mas até lá, acima de todo horizonte definido, devo ser ainda o terreno fremente onde se jogam as minhas contradições, a terra onde planto e onde destruo, a matriz onde se forma o húmus que me aniquila e me faz viver continuamente, a minha seara de vida e de morte, pois todo nascimento é oculto e toda verdade solitária.
Mas ainda assim devo dar graças a Deus. Não há conhecimento que não seja pessoal, e tudo o que plantei em mim, as sementes do em e do mal, a terra que revolvi e adubei, que cumpra o seu destino e produza, ainda que a flor azul dos meus olhos, não seja aos olhos alheios, senão um fungo demente e monstruoso, uma rosa de fel e pestilência.

Posso dizer por onde caminho, mas não posso dizer o que me faz caminhar. Sei que esta estrada me conduz a um extremo onde o ar de tão puro é quase irrespirável; mas trago em mim, envolto no mais absoluto segredo, a máquina que me aciona. Posso dizer aos homens que vou por ali, mas não é da minha obrigação dizer o que me leva. No máximo, poderão ouvir o rumor do dínamo que me trabalha, mas tudo o mais pertence a mim e ao meu destino, e nem a minha morte revelará a razão desses esforço, porque de há muito há um pacto firmado entre a minha razão e a minha morte, e de há muito ambas se converteram à mesma identidade, e dentro de mim ostentam o mesmo nome.

Além do homem, o homem que somos além. Não o super-homem, que é um mito de despojamento, desumano e feito de cristal, um ser cuja irrealidade nos enlouquece – mas o homem além, que é o homem com o acréscimo de sua conquista, o homem tal, com uma soma, um a mais, um além do que lhe foi dado como homem.

Sei que d’agora em diante todos os meus escritos, bons ou maus, devem traduzir o sentimento da desesperada esperança. Desesperada porque não acreditando mais no tempo em que vivo, nem em suas possibilidades e nem em sua sobrevivência, isto deve me causar pânico, como todas as transformações essenciais; esperança porque é o homem novo que vislumbro além dessas ruínas. Do momento em que reconheço isto, é criminoso da minha parte não precipitar o caos – é retardar o começo e pactuar com a sobrevivência dos cadáveres. Minha mais constante vontade deve ser a de um arrastamento contínuo. Meu trabalho é o de desagregar e fazer empunhar armas. Porque aí vem o tempo em que não subsistirá pedra sobre pedra, como diz o Evangelho. E o homem novo que deve surgir me impregna de tal entusiasmo, sua intuição me faz vibrar numa tão impetuosa corrente de vida, que eu muitas vezes hesitante ainda, não posso duvidar mais e caminho no mundo conhecido como entre as formas de um universo desvitalisado e sem arrimo.

O mundo novo não exige fé, nem confiança e nem entusiasmo, e nem nenhuma das celebrações que faziam e fazem os atributos do mundo condenado; o que ele exige é uma tal soma de idéias e sentimentos violentos, o que impõe é uma ressurreição de qualidades durante tanto tempo soterradas e tidas por secundárias ou aviltantes, que pode-se dizer que realmente um outro homem surge, e nele se confundem as noções clássicas do bem e do mal, não para situá-lo “além”, o que pressupõe o “outro”, mas para fazer do “mesmo”, o ser exato que ele é, o homem das medidas equilibradas e não o das medidas alteradas para mais ou para menos.

As vezes sinto como se tivesse sido lançado a grande velocidade num destino; ah, nada mais é meu e eu me despeço de tudo. Para onde vou, não sei. Mas o que importa? Sei que estou em viagem e nem mesmo me adianta a bagagem de minhas lembranças passadas. Nada adianta senão o silêncio que me cerca. Nada vale senão a paisagem nova que começo a desvendar. E é tudo tão estranhamente inédito em torno de mim, que as vezes tenho a impressão de ter inaugurado um outro ser dentro do ser que me pertence. A única coisa que me garante a autenticidade, é sentir que este de agora é o mesmo que sempre viveu dentro de mim, no escuro, é claro, mas como um prisioneiro que palpita a espera da liberdade.

O homem mais profundo é o que tiver mais profunda consciência do seu equívoco.

Para se dizer certas coisas são necessários certos leitores; e como certos leitores são raros, é melhor calar do que dizer ao vento, pois certas coisas não podem ser ditas a toda gente.

As afirmações decisivas, para não se ter decisivamente a única afirmação que importa.

A medida do que me desgosta nos homens, é a própria medida do meu amor: todo este vazio onde circula o vento da repugnância, é o espaço que sobrou do meu amor ausente.

Meu elemento, é a natureza; rochas, montanhas, nuvens altas, fráguas e descampados. Aqui me sinto eu mesmo e a minha alma se dilata. São as únicas coisas que sinto à minha alturas, as únicas de acordo com minha paisagem interior.

Afastei-me por já não poder mentir mais, por não poder por mais tempo tornar-me tão mesquinho quanto o exigiam de mim, afim de que eu estivesse de acordo com suas estaturas. Pelo menos aqui sou eu mesmo, e ainda que ninguém me fale, a voz morta nos meus lábios, não é um sopro que me aniquila, nem palavra que me envergonha.

Todas as vezes que o homem pretender se ultrapassar como mito, está errado; como homem mesmo é que ele deve se ultrapassar.
Nada pude aprender (com exceção, é claro, do que é puramente compêndio) porque o que sei trouxe comigo como intuição e pressentimentos. Nunca analiso um homem, porque dele tenho uma visão instantânea, fulgurante, como se o iluminasse uma luz interior. Assim, muitas vezes, minha suposição pôde estar errada em detalhe, mas não seus pontos básicos no que é fundamental na natureza deste homem, ela é certa e definitiva.

Trabalhar-se, criar-se, certo eu o posso, mas somente no sentido de minhas próprias inclinações, pois o que são tendências nos outros, em mim são correntezas fortes. O que nos outros delineia traços, em mim esculpe e aprofunda; as vezes, de tão impetuosas, essas tendências convertem-se em defeitos – porque geralmente os defeitos são qualidades que o excesso tornou em caricaturas – e assim o que me compõe são sombras e erros que flutuam nas águas de minha natureza.

Uma das coisas que mais lamento na minha vida, é não ter, aos vinte anos, conhecido Nietzsche ainda. Conhecia suas teorias e sabia aforismas de cor, mas Nietzsche é uma dosagem massiça, cujo poder só pode ser avaliado inteiro com pleno conhecimento de toda a região que domina.
Eu sou um terreno planificado, oco por baixo e cheio de dinamite.

Não se edifica só com as águas, mas com tudo o que a correnteza traz, limos e detritus; isto é o que auxilia o líquido puro a se transformar em húmus e permite as grandes construções.
Porque não ver no instinto criador outra coisa senão o lado oposto de forças inquietantes e monstruosas que nos compõem? Dificilmente o trabalho artístico é uma face da santidade. Esses instintos bravios talvez até sejam a força propulsora do movimento criador, e devem, ao lado dela, marcharem como os cavalos negros que junto aos brancos arrastam a mesma parelha.

Só as pessoas realmente fortes podem viver na realidade definitiva das coisas; quase todo mundo vaga numa atmosfera morna de fantasia.

Nenhum escritor realmente grande produz antes de uma completa saturação de si mesmo, uma espécie de inflamento dos elementos básicos do seu destino e da sua personalidade. Sofrimentos, experiências, descobertas, aquisições e amputações, tudo enfim o que esculpe sua mais verídica e extrema imagem, é chamado a compor o seu perfil exato.

O verdadeiro existe apenas na tensão absoluta. É preciso imaginar um mundo, e criá-lo, onde as forças latentes sejam levadas a um tal paroxismo, que sua revelação esteja iminente, ou sua morte. É preciso imaginar um mundo com todas as suas possibilidades voltadas para o sol.

Procuro o que existe de mais profundo em mim mesmo, e encontro o medo. O medo do terror. Devo caminhar pela vida como quem marcha sobre o gume de uma faca.

Há um sol que brilha de intensa luz negra e é o sol do conhecimento.

A mim, cavalos brancos, forças do anoitecer...

(Ah, meu Deus, como somos objeto de desgosto e sofrimento para os outros... Só os santos escapam, e quão longe estou eu de ser um santo!)

A “solidão absoluta” a que me referi atrás, não se inventa – é um estado a que se chega gradativamente, por um impulso interior, como uma planta que avança através da obscuridade.

Léautaud é contra as imagens – e realmente a imagem não é um estilo, mas ajuda-nos muitas vezes a esclarecer um pensamento difícil. E do único modo que vale e toda imagem que realmente não servir como um esteio, é não só inútil como prejudicial.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.