Pesquisador[1]
por Raúl Antelo
Um reconhecimento ao pesquisador é um reconhecimento ao amador. Mas já sabemos:
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co’a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.[2]
Pesquisar é per quaere, querer através de, idéia que o materialismo clássico reprimiu, ao substituir a causa pelo dever ser, o quaere pelo quamobrem, o determinismo pelo destino, o passado pelo futuro. Como já observava Georges Bataille, no papel funcional que, inconscientemente, deu-se à idéia de ciência, a necessidade de uma autoridade exterior impôs o dever ser de toda aparência, sequestrando o querer, esquecendo-se do meio (per) e, assim, para a maior parte dos materialistas—ao menos, dos materialistas sublimes—a conformidade da matéria morta com a idéia de ciência acabou por substituir as relações, no fundo religiosas, estabelecidas anteriormente entre a divindade e suas criaturas.[3] Mesmo Octavio Paz, tão cauteloso sempre, quando de baixos materialismos se tratava, definia o querer como uma busca apaixonada, amorosa. “Búsqueda no hacia el futuro ni el pasado sino hacia ese centro de convergencia que es, simultáneamente, el origen y el fin de los tiempos: el día antes del comienzo y después del fin”[4]. O ativo e o passivo, o informativo e o entrópico, o transitivo e o corolário.
O pesquisador, portanto, pesquisa sempre uma vertigem e um vazio. Cria, aliás, vertigem e vazio com sua pesquisa. Agir de modo contrário seria corroborar a fábula e o mito, quando a tarefa do pesquisador é, pelo contrário, desmontar ficções. Porque talvez o mais importante na pesquisa nem seja tanto o quaere, mas o per. O pesquisador atravessa diversos regimes de verdade para iluminá-los como outras tantas construções discursivas, em nada naturais, necessárias ou infalíveis. Pesquisar é pensar e agir sobre os meios.
Lacan dizia que o saber é algo mais disseminado, no mundo, do que imagina o ensino[5] e, acrescentaríamos, até mesmo mais vasto do que imagina a pesquisa. Porque, a rigor, o trabalho da pesquisa é como o trabalho da imagem, ou o trabalho da política, eles também, um puro meio. A pesquisa é um sintoma (uma interrupção no saber acumulado, meramente opinativo) e, ao mesmo tempo, enquanto experiência, ela é também conhecimento (uma interrupção no caos da simples vivência). Um aspecto estabiliza; o outro, desestabiliza. E o pesquisador equilibra-se entre ambos, desequilibrando-se.
Ao agradecer este reconhecimento, quero dizer que o aceito como reconhecimento ao per, ao atravessamento, que alguns também chamam de sujeito ou, simplesmente, de linguagem.
[1] Discurso proferido quando do recebimento do prêmio Destaque Pesquisador UFSC 50 Anos, no dia 19 de março de 2010. (Nota dos editores) [Voltar ao texto]
[2] CAMÕES, Luis de. “Transforma-se o amador na cousa amada”. In: Lírica Completa, Vol. II: Sonetos. Lisboa, IN-CM, 1980. [Voltar ao texto]
[3] BATAILLE, Georges. “Materialisme”. In: Oeuvres Complètes I, Paris, Gallimard, 1971, p.179-80.[Voltar ao texto]
[4] PAZ, Octavio. Los signos en rotación y otros ensayos. Prólogo y selección Carlos Fuentes. Madrid, Alianza, 1971, p.163. [Voltar ao texto]
[5]LACAN, Jacques. Outros Escritos. Tradução de Vera Robeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p.303 [Voltar ao texto]
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