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 Experiência(s)
 Flávia Cera

As experiências que temos nunca se vão de todo. Suas marcas sempre ficarão à espreita esperando o momento certo para reaparecer. Esses momentos foram denominados por Walter Benjamin como “instantes de perigo” que aparecem como um lampejo e rearmam o sentido das coisas ou fazem desmoronar tudo. O que é bom também. O que importa é que de uma maneira ou de outra, teremos que juntar os cacos e começar com pouco, como diz Benjamin.

É a pobreza de experiência que nos assola. Os amores instantâneos, os tuites com 140 caracteres, a vida na cidade como flashes de civilização e barbárie. De nada disso podemos tirar uma narrativa. De nada disso podemos tirar uma história com pé e cabeça como contavam outrora. Resta-nos essa pobreza. E é aí que está toda a mágica da vida contemporânea. Sua fragmentação e a sua infinita possibilidade de recriação, de reinvenção, de redescoberta.   

Nossa pobreza de experiências não significa, entretanto, que não as tenhamos. A diferença é que essa experiência se configura, segundo Benjamin, como uma “nova barbárie”. Ela não aparece mais para reconstruir um mundo perdido; e sim para revitalizar o mundo em que vivemos, para abrir novas possibilidades. Por isso muitas coisas ainda nos encantam, deixam-nos felizes, arrancam de nós sorrisos, enamoram. A tese de do desencantamento do mundo é falsa.

Mas os encantamentos dos quais falo são de outra ordem; são da ordem do sonho. É claro que sonhar em uma sociedade basicamente virtual, não só pelos meios, mas pela sua capacidade imagética irrefreável, vertiginosa e exaustiva, é um tanto complicado. Tudo é tão dado, tão oferecido, que a impressão que temos é que descobrem nossos desejos antes de nós mesmos, que formulam nossos sonhos quando ainda estamos acordados. Mas isso não é de todo verdade. O sonho de cada um existe: é a nossa capacidade de singularizar todas as imagens do mundo, de elaborarmos nossas possibilidades, de alimentarmos e inventarmos desejos. “Ao cansaço segue o sono, e não raramente o sonho compensa a tristeza e o desânimo do dia, revelando a existência simples e grandiosa para a qual faltam forças quando se está acordado”.

Não é por acaso que Benjamin, autor do trecho anterior citado, reivindica Mickey Mouse e a partir dele elabora uma frase que explica tão bem nosso mundo: “a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização”. “E o faz rindo”. Mesmo que a humanidade esteja em sua condição pós-humana: não há o que resgatar, não há como resgatar. Para experimentamos a vida, temos que saber nos virar com pouco, captando dos nossos sonhos, das nossas marcas, da nossa pobreza, os nossos restos, o que pode aparecer como “iluminação profana” para intervir no mundo, para mudar a ordem das coisas. Nem que seja mínimo. Aliás, é provável que o seja. Mas isso é o suficiente para nos encontrarmos com um pouco de felicidade.

 

 


[Cf. Mickey Mouse (Walter Benjamin)]


A

Amor (D.H. Lawrence)
Amor (Flávia Cera)
Antropofagia (Jarry)
Antropofagia (Tejada)
Assalto ao céu
Assistentes

B
Bares proletários

C
Cadeiras
Cara de Cavalo
Caráter

Cartão de visita
Cauda, A
Como
Coroinhas

D
Devir-animal (ou cinismo)

E
Entidade
Espelho
Exterioridades Puras
Experiência(s)

F
Fetiche
Ficha catalográfica

G
Google

H

I
Intrusos
Intrusos (II)

J
Juridiquês

K

L
Libelo

M
Marginal
Metropolis
Mickey Mouse
Moldura Barroca

N
Negatividade

O

P
Página branca
Paráfrase
Partout
Perspectivismos
Pesquisador
Possessão
Profanação

Q
Quixotismo

R
Rio
Rosto (de Lévinas)

S
Saliência

T

U

V
Vestígios (I)
Vestígios (II)

W

X
Xeque-mate

Y

Z



A hipótese anarquista
(Moysés Pinto Neto)

[ Edicão integral ]



 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.