Fetiche
por Severo Sarduy
(Publicado originalmente em La simulación. Caracas: Monte Avila Editores, 1982, p. 57-58. Tradução de Rodrigo Lopes de Barros Oliveira)
Há na exibição do fetiche, uma teatralidade fria, posta em cena excessivamente calculada que pertence, por seu modelo de ostentação, ao caravaggismo: projeção brutal da luz – procedimento sumário para enganar o olhar – que se concentra numa parte do corpo, ou numa de suas metonímias: rosto, mão que golpeia, turbante, pés calejados, porosos, trapos. Essa iluminação sectária relega o resto do corpo – um resto paradoxal – a uma zona anônima e distante, excluída da representação e do desejo: sem valor de ereção, obscurecida e torpe.
A tortura e a tatuagem pertencem a esse mesmo registro do desmembramento da fragmentação factícia[1]. Com a dor ou com a tinta se delimita uma parte do corpo, e, a força de “trabalho”, se separa esta da imagem do corpo como totalidade. O membro cifrado ou torturado, marcado pela singularidade, remete a outro: o maternal e fálico do que todo o resto do corpo, convertido em um objeto insensível, em um corpo-zero, se expulsou, desterrado.
Somente o fragmento coberto pela tatuagem – iniciais, âncoras e corações vêm sempre a se inscrever, como por casualidade, sobre os bíceps, os músculos mais eréteis –, realçado pela tinta minuciosa, ou submetido à torção, à dor, tem acesso ao endurecimento, à ereção notória, a golpear com sua tensão[2]. O resto não merece mais que pudor: flacidez e tédio.
A Mimikry-Dress-Art inverte essa fragmentação. Nela – no imediato do presente fotográfico, nesse aqui que é o corpo de Verushka pintado e levado ao verossímil de toda foto – a totalidade do corpo está em ereção, submetida a uma visibilidade absoluta – ou ao contrário, submergida na noite de tinta, devorada pela superfície que lhe serve de apoio. O corpo é como um escudo. Atravessa-o uma genealogia precisa, uma heráldica: emblema fálico.
Ou, se quiser: todo o corpo é um objeto parcial. Mas se o fetiche fascina ao exibir-se, é porque sempre se apresenta como fantasma do separável, do que se pode arrancar: os trajes de Veruschka podem sangrar.
Num filme japonês, Kaiwan, para salvar um monge budista do chamado noturno dos demônios, lhe escrevem sobre a pele um tecido de mantras. Mas os calígrafos, que vão cobrindo progressivamente o corpo cobiçado a partir dos pés, esquecem, apressados, uma orelha. Por ali, o puxam para cima as encarnações maléficas, até lhe arrancarem este fragmento de pele não escrita.
Tudo o que não é textual é castrável.
(Desmaiei no cinema).
[1] Fetiche vem do português “fetisso”, que logo deu “facticio”, mas também, em espanhol, “hechizo”.
[2] Endurecimento: “O texto seria algo (…) que se erige monumentalmente e que haveria que ler em termos de endurecimento”. Roland Barthes, “Suppément” em “Art Press”, 4, maio-junho 73, p. 9.
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